Singularidade e nada 

[dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uando chegamos ao Tártaro, aquilo que primeiro nos damos conta é da linguagem. Damo-nos conta de que ela existe como textura, como material, como algo que está diante de nós e é necessário apreciar, ou não, pois a linguagem neste livro está nos antípodas da linguagem do quotidiano, da linguagem que usamos no dia a dia, ainda que seja para expressar sentimentos profundos. O primeiro verso do livro mostra-nos logo isso mesmo: “É-se um pano impoluto / (…)”. Não estamos a falar do uso de palavras difíceis ou eruditas ou que a linguagem chegue mesmo a um hermetismo. Não. A linguagem é tão somente aquotidiana. A pergunta que agora faz sentido ser feita é: e esse aquotidiano da linguagem é somente um jogo retórico ou tem um sentido mais profundo? Parece que começamos a encontrar uma boa resposta com este verso: “Alma à escâncara, /(…)”. A alma, assim, à escâncara faz-nos parar. Não pela dificuldade da palavra, mas por ser incomum. Repare-se que não estamos diante de uma metáfora, estamos diante de um mostrar melhor a alma, de lhe encontrar um modo dela fazer sentido num poema. Se pensarmos bem, uma alma fica melhor à janela do que entre quatro paredes. Mas à janela não é o mesmo que à escâncara, porque nenhuma palavra substitui outra, como nenhuma pessoa substitui outra. Dizer as pessoas são todas iguais é como dizer que uma palavra substitui outra. Nesta poesia, de Catarina Santiago Costa, as palavras são insubstituíveis; nenhuma ocupa em nosso coração, no verso, o lugar de outra. As palavras aparecem estranhas para que reparemos nelas, para que reparemos melhor no que está a ser escrito. A estranheza tem esse poder de curto-circuitar o modo habitual de andarmos desligados do que nos acontece e do que lemos.  Apesar da técnica, isto é, do modo peculiar da poeta tratar os seus poemas, o uso de palavras longe do seu uso quotidiano, ou mesmo do uso em poemas que não os dela, não se prende com musicalidade, com prosódia, com ritmo, mas com o sentido, apesar do verso “– ouço o que cantas, não o que dizes.”.

O sentido é tudo, nesta poesia, embora à primeira vista, a um olhar mais precipitado, possa parecer tratar-se de retórica. Sem dúvida, a linguagem confere singularidade a este livro, mas a singularidade desta linguagem não é um jogo de linguagem, mas uma existência de linguagem, um existir na língua ao avesso do existir no mundo. E deriva daqui, deste avesso, esta técnica particular da linguagem. Não se inventam palavras ou artifícios linguísticos por desporto, por ser diferente, mas por se ver na linguagem do mundo, na linguagem dos dias a cara do mundo, a cara dos dias, que aterram, adivinha-se, a poeta. Por isso, a questão fundamental neste livro pode ser enunciada de modo interrogativo, nestas duas perguntas: como dizer a estranheza do mundo com as palavras do mundo? Como dizer o nada enunciando as coisas? Escreve no último poema: As coisas inexistem porque estamos não-aqui, (…) ao final de um dia qwertico.” Só assim, de um modo de quem se vira do avesso, Catarina dá conta do mundo, dá conta de si, dá conta da realidade que tem de carregar aos ombros de um corpo que lhe deram, ao ombros da consciência de ter um corpo que lhe deram e que tem de carregar pelos dia afora. Todos nós temos esse fardo, com maior ou menor consciência. E quem escreve para apagar-se a si e ao mundo, escreve assim:

Esquecer não é mudar de pele,

semear epiteliais no tapete,

pelos lençóis,

pelas almofadas,

na água que me lava,

não é passar um obsessivo pano

onde os teus dedos pousaram,

naquilo que pressionaram e vergastaram.

Esquecer é cirandar com erupções tapadas,

assustar memórias,

despejá-las como a uma família cigana em propriedade

alheia.

É negar dias,

negar filhas,

recusar víveres,

lacrar a vagina,

engolir idioma e língua,

fazer dos olhos salinas

– ver nada,

ver-me agora nada.

O poema não começa nem termina na citação acima, mas dá para ver bem que o título do livro lhe assenta como uma luva, Tártaro, a parte do mundo onde se vive o pior, para onde os deuses enviam aqueles que odiavam. Negar tudo, a si e ao mundo, ver-se nada, é uma forma de viver o lugar que os deuses reservam àqueles que, como escreve a poeta, dormem com um cadáver (na página do livro aparece “Dormirás com um cadáver”). No fundo, e aqui é mesmo no fundo e do fundo que se fala, a vida é simples: “cada qual no seu reino de nadas.”

Apesar de tudo, apesar do nada e suas manifestações em vários versos que percorrem o livro – “Daqui por diante, nada”, “– a desistência será o meu tributo.”, “cada qual no seu reino de nadas”, “Não há mais nada”, “Ignoro a morada do equívoco / mas ele é”, No entanto, tu e eu não arrulhamos nada” –, não estamos diante de um livro pessimista, muito menos de um livro de tom queixoso, umbilical, de alguém que carrega uma dor de corno da vida, ou da imagem que tinha de si na vida. Estamos diante de um livro que assume a vida como o lugar aonde se tem de ir, por onde se tem de passar apesar de tudo. Há que ir à vida, não há nada a fazer. Ir à vida é como ir trabalhar. Levantamo-nos, sem querer, e lá vamos ao trabalho, à vida, expostos intempérie dos sorrisos desastrados e das palavras porcas, de tanto se usarem sem serem lavadas, sem serem renovadas, sem serem pensadas. A vida para a maioria de todos nós é assim como ela a canta, um tártaro, porque a poeta não fala da vida dela, fala da nossa vida, daqueles que não têm  privilégios, quer seja  material quer seja ideal, de não se dar conta das dores de existir, por exemplo. E num dos poemas mais rente aos muros do quotidiano da linguagem, escreve:

Ataviada com a touca branca,

avental branco sobre a alva bata,

a cozinheira frita as iscas

ante os nossos fígados e vesículas atordoados

com os copos, os salgados e a manteiga de alho

de um recente passado

(…)

A manteiga de alho de um recente passado, ainda assim é muito melhor do que o destino da senhora “acantonada na fritadeira / nunca lhe vemos a cara / que imagino sob o signo da adstringência.” Mas a nossa tenacidade em arrancar sorrisos às pétalas, em não imaginar nada, distrairmo-nos de tudo, que é uma forma de imaginar poder haver um futuro melhor, faz-nos caminhar pelo tártaro como se não fosse o tártaro. “O dia é uma espargata, / uma ampla abertura de pernas por onde o sol desova, uma promessa de décadas (…)”.

Antes de terminar com um poema de Catarina Santiago Costa, resta-me dizer que o livro não tem número de página e os poemas não têm título. A composição do livro é de Joana Pires, como usualmente nos livros da Douda Correria, e a capa é de António Poppe.

És um merlo azul-ígneo,

Os meus tímpanos vibram com os teus gorjeios

– ouço o que cantas, não o que dizes.

Pergunto-me se preferia ser magnólia

pesada de folhas e flores gordas

que terias por morada

ou um parasita mínimo,

alfaiate de bainhas de mielina,

que se aconchegasse no teu cérebro,

assomasse à escotilha do olho

a ver-te o voo.

Sairia depois pelo teu bico em sinfonia

perguntando “queres que regresse?”

e “sim” ou “não” seriam respostas boas

desde que me mantivesses por perto.

Mas é hora de chegar a termos com a dieta aérea

E acolher o vazio infinito de Deus

até ele forjar mar e terra.

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