Em modo de perguntar h | Artes, Letras e IdeiasVasco Gato: “Se há território que não me apetece pisar é o da qualidade poética” Paulo José Miranda - 20 Jan 2017 [dropcaps tyle≠’circle’]T[/dropcap]ens 12 livros de poesia publicados, em outras tantas editoras, tão diferentes como o podem ser a institucional Assírio & Alvim (que faz parte do grupo Porto Editora) e a provavelmente mais “underground” de todas as editoras de poesia, a Tea for One. E acabas agora de editar o teu Contra Mim Falo (o conjunto dos teus 12 livros anteriores) noutra editora onde nunca editaras antes, a Plural. Essa contínua mudança de editoras é algo que procuraste, ou que foi acontecendo desse modo? Quais os lados positivos e os lados negativos desse teu percurso único, do ponto de vista editorial? Essa vadiagem editorial tem a sua génese na recusa de um segundo livro por parte da Assírio & Alvim, onde julgava ter encontrado à primeira a minha casa. Era, na verdade, um conjunto precipitado de poemas. Ainda bem que me fecharam a porta. Tive de seguir caminho e procurar outros lugares. Ganhei-lhe o gosto, a essa sensação de não ter morada, de ter de construir a própria possibilidade do livro a partir do zero. Desde então, publiquei com editoras e pessoas que procurei e que me procuraram. Nunca houve um programa, até porque pende sempre a ameaça de não mais escrever, de não mais publicar. Não vejo lados negativos neste percurso. Não me interessa se a editora é grande ou pequena, se tem canais de distribuição bem oleados. Interessa-me a árvore genealógica do seu catálogo, a cumplicidade que se gera, o empenho a várias mãos para que o objecto cumpra tanto quanto possível o seu fim: ser testemunho de uma recusa do artifício. Há umas semanas atrás escrevi aqui no jornal acerca do teu precioso livro Fera Oculta, Douda Correria, 2014. Além de muito bom, é um livro muito particular. Gostava que falasses sobre ele, como o escreveste e como depois o levaste a editar. Esse livro foi escrito da forma mais despojada de intenção. Isto é, os poemas foram escritos como uma espécie de correspondência a um destinatário que se anunciava. São uma sondagem da minha situação no momento, da concomitância de uma angústia material com uma promessa que abrange tudo, que guinda tudo a uma exigência de humanidade — e que humanidade? com que terminações nervosas? Essa iminência da paternidade trouxe, não um elogio ou exaltação do próprio facto do nascimento, mas o pressentimento de uma relação que nos interpela na nossa mais funda solidão. De que materiais nos munimos ao longo dos anos para receber alguém que, não se cingindo à concha das nossas mãos, surgirá como invenção nossa? O livro, parece-me, faz ecoar esse tactear no próprio sangue, essa dificuldade em admitir que traremos o cúmulo do nosso amor para um lugar que, sabemo-lo já, tem um enorme talento para nos confundir e esmorecer. A publicação só foi equacionada posterior e inesperadamente. Aliou-se dentro de mim um convite-desafio que o Nuno Moura me fizera ao desaforo de quebrar o sigilo e dar circulação a essas palavras que, tendo destinatário, não eram mais do que a fractura do esterno para ver o que ainda por lá palpitava. Para quem, como tu, já publica há quase duas décadas (sim, o tempo passa), encontras alguns pontos de ruptura na tua poesia? Ou vês antes os teus livros como uma continuidade? Essa é uma questão que me transcende. Ainda agora, na preparação da colectânea, dei por mim a fazer algumas reformulações, sobretudo nos poemas mais antigos. Não queria de todo realizar uma purga, mas também não pude evitar a exigência de confrontar cada poema com o seu centro de gravidade. Isto para dizer que a escrita e a reescrita se focam numa experiência de desassossego, de inabilidade com as palavras, sem um horizonte programático ou uma aspiração de coerência. Quando digo que a questão me transcende não quero dizer que me passem ao lado temas recorrentes, obsessões, certas tendências discursivas. Quero dizer que nada disso é uma preocupação, que nada disso tem importância no momento em que se parte para o poema. É possível não querer repetir-se e ainda assim repetir-se clamorosamente. Se a pergunta for: tentas escrever diferente? Sim, tento. Sem garantias dessa diferença. Mas essa é a derrota que tem de se aceitar como um pequeno veneno. Está perdido, ponto. Agora começa. E quais as diferenças que encontras entre o tempo em que começaste a publicar e hoje, em relação à poesia em Portugal? Julgo que a principal diferença é a fragmentação. Quando comecei a publicar havia grandes ilhas editoriais que chegavam a ser uma espécie de calafetagem a ventos nascentes. De seguida, houve entre os mais recentes publicados uma arregimentação quase bipolar, com um aparato crítico posto ao serviço dessa urina territorial. Felizmente, tudo se estilhaçou: as editoras são hoje várias e os nomes circulam em caminhos de cabras sem uma tangente ao desfiladeiro. Se há território que não me apetece pisar é o da qualidade poética. Será maior hoje? Serão tempos de mediocridade? Assumo nesse âmbito uma posição cautelar: não estou em condições de o aferir, não é esse o propósito e será a lâmina da história a cortar as goelas que tiver de cortar. Com toda a injustiça, com toda a falência. És também tradutor, não só de poesia, mas principalmente de poesia. É uma actividade que favorece a tua própria poesia? Sou um tradutor de poemas por obstinação e sobrevivência. Fascina-me esse exercício de endireita, de tentar compor músculos e ossos para que, nessa sua nova somatização, o poema possa andar. Claro que há a possibilidade de contaminação com o que escrevo, mas não é nada que me intimide. A escrita sempre foi uma caixa de ressonâncias, sempre teve variadíssimos pretextos, mais ou menos conscientes. Prevalece a maravilha de ir encontrando os poemas alheios nas línguas que conheço e de poder contrabandeá-los.