Entrevista MancheteDavid Gonçalves, académico: “Macau tem níveis de desperdício muito grandes” João Luz - 11 Jan 201712 Jan 2017 Numa cidade que enfrenta múltiplas ameaças ambientais, as soluções políticas carecem da análise objectiva, fria, da ciência. Nesse sentido, o HM esteve à conversa com David Gonçalves, director do Instituto de Ciências e Ambiente, da Universidade de São José [dropcap]C[/dropcapomo apareceu a oportunidade de leccionar em Macau? Foi uma oportunidade que surgiu a convite do reitor da Universidade de São José, para trabalhar a área mais ligada às neurociências e ao comportamento. Na altura vim experimentar durante um ano, e depois decidi ficar. Isto foi há cinco anos e meio. E cá estou. Há dois anos e meio foi criado o instituto para desenvolver investigação e dar formação na área das ciências naturais, com foco no ambiente. Focando agora as questões ambientais. Macau parece virar as costas para a água. É verdade que algumas zonas foram fechadas por urbanizações, que antes estavam abertas para o mar, para o foz do rio. Isso traz uma série de problemas do ponto de vista ambiental, como impedir uma boa circulação de ar em alguns corredores da cidade. Talvez haja uma diferença cultural na maneira como olhamos para o mar. Nós, portugueses, sempre fomos um povo muito virado para o mar e com muita vontade de sair e ir por aí fora, ver o que havia do lado de lá. Não sei se aqui é tanto assim, pelo menos acho que não há tanto contacto com a natureza, e com o mar em particular, nomeadamente entre a população chinesa. Como vê o planeamento urbano da cidade? Acho que há uma falta de planeamento urbano, isso é algo que se vem discutindo na cidade. A lei é relativamente recente, creio que foi aprovada em 2013, mas falta haver a implementação efectiva, precisamos de planos directores que indiquem quais serão as zonas dedicadas a espaços verdes para o futuro, e quais as que são para urbanizar. Também se discute a possibilidade de explorar o turismo de navios. Para tal não existem infra-estruturas, teriam de ser criadas. Mas toda esta questão parece ter sido despoletada por agora termos estas águas territoriais para gerir, e essa é uma das opções que se pode equacionar. Que impacto poderá trazer em termos ambientais? O impacto depende muito da zona onde ficar localizado o terminal de passageiros turísticos. Há zonas onde o impacto não seria, provavelmente, grande na fauna e na flora. Há outras áreas que são mais sensíveis. Por exemplo, qualquer zona que fique mais perto dos mangais, portanto, aquela zona ali do Cotai que tem mangais que vão quase até Coloane. No fundo, toda a faixa de Coloane, que é uma zona sensível que deveria ser protegida. Coloane necessita, portanto, de uma atenção especial. As pessoas, provavelmente, não sabem disto porque olham para aquelas águas castanhas, mas não imaginam que têm uma biodiversidade relativamente interessante. Inclusive, temos espécies de mamíferos marinhos ameaçados, os chamados golfinhos cor-de-rosa, que habitam aqui nesta zona. São uma espécie muito estudada do lado de Hong Kong, mas relegadas para segundo plano do lado de Macau, mas aparecem por cá regularmente. Na zona de Hac Sa é frequente avistar-se indivíduos destas populações. Portanto, algo tão grande como um porto que permita receber navios de grande porte tem de ser equacionado com cuidado porque vai interferir com estas populações que já estão com uma grande pressão antropogénica sobre elas. Voltando às águas marítimas atribuídas a Macau. Que oportunidades trazem ao território? Não conheço bem os aspectos técnicos da legislação, mas acho que temos de articular com a China Continental o que vai ser desenvolvido nessas águas. Precisamos do sinal verde de Pequim. É uma oportunidade interessante, podemos fazer algo que falta em Macau, que é decidir quais as áreas que queremos protegidas para as gerações futuras. Nomeadamente, se olharmos para o território, talvez fizesse sentido ter uma zona integrada de protecção que incluísse não só a parte emersa, como a parte imersa, restringindo actividades potencialmente prejudiciais ao ambiente, como pesca, passagem de determinadas embarcações, etc. Creio que seria algo que todas as gerações futuras iriam agradecer se houver, de facto, a coragem de tomar essa decisão e legislar nessa matéria. O que acha da construção da ponte que ligará Hong Kong, Zhuhai e Macau? Obviamente que esse tipo de projectos tem sempre impactos significativos no ambiente. Do que sei, foram feitos estudos de impacto ambiental extremamente exaustivos no âmbito deste projecto. Tentou-se minimizar os impactos no meio marinho. Não quero estar a fazer juízos de valor, se foi bom, ou se foi mau, aprovar-se este projecto porque acho que cabe aos decisores políticos e às populações fazerem ouvir a sua voz, porem tudo nos pratos da balança e decidirem o que querem. Mas é possível ter um equilíbrio. Macau está a crescer, precisa de mais casas, mas é preciso equilibrar isto com a protecção de zonas protegidas onde não se pode construir. Pequim parece estar num momento de virar a página em termos ambientais. O desenvolvimento da China não tem sido assim tão diferente daquilo que aconteceu noutras partes do mundo. Há 50 ou 60 anos tivemos problemas semelhantes na Europa. Por exemplo, Londres tinha problemas gravíssimos de poluição atmosférica por causa da queima do carvão e pela emissão de poluentes por outro tipo de indústria, e tínhamos chuvas ácidas na Europa Central. Isto deu-se quando a Europa fez a transição de uma sociedade mais agrícola para a industrialização, que é precisamente o que estamos a observar na China, mas de uma forma muito acelerada, altamente industrializada e urbanizada. Está a haver um grande êxodo das pessoas dos campos para as cidades, isso leva a muita construção sustentada na indústria do aço e do cimento. É necessário alojar estas pessoas que estão a sair do campo. Mas os problemas não são apenas do sector da construção. Ao mesmo tempo, temos o aumento no consumo médio, o nível de vida melhorou, o que é bom. Há mais pessoas a ter telemóvel, carro, e a consumirem mais produtos, para tal é preciso produzi-los, e isso tem um efeito no ambiente. Portanto, a China tem um problema grave em termos de poluição atmosférica, essencialmente por causa da produção de energia, ainda muito garantida com base na queima do carvão altamente poluente. As emissões dos veículos são também muito elevadas. Mas estamos, certamente, num momento de virar de página. Assinaram o acordo do COP 21 para tentar travar as emissões e, mesmo que não tivessem assinado, há uma pressão muito forte da própria população para que as coisas mudem. Estão a investir muito em energias renováveis – solar, eólica, hídrica. Porém, a China está em crescimento em termos de consumo interno, o que levará a uma sobrecarga nas indústrias que ainda são poluentes. A transição está a ser feita, mas ainda vai demorar algum tempo para que os efeitos ambientais se verifiquem. A minha previsão é que nos próximos anos vamos continuar a assistir a alguma degradação dos parâmetros ambientais. O ajustamento desses valores, à semelhança do que aconteceu noutros lados, virá mais tarde. Como está o Delta do Rio das Pérolas? Tem havido uma pioria nalguns parâmetros, e melhoria noutros. Por exemplo, os metais pesados, aparentemente, têm diminuído as concentrações; outros poluentes, como os orgânicos, têm piorado as concentrações. Mas, sim, recebemos uma carga significativa de poluentes através do rio. É verdade que, estando aqui na foz, basta ir à praia de Hac S, para percebermos que aquilo está cheio de sacos de plástico e de outro tipo de detritos que vêm do Rio das Pérolas. Outro problema são as zonas de agricultura mais a montante. Há uma grande preocupação com os pesticidas utilizados, e com outro tipo de poluentes, e o seu impacto na segurança alimentar. Muitos produtos frescos que são consumidos em Macau vêm de regiões agrícolas que estão aqui à volta, onde a qualidade das águas e do ar não são as melhores, e isso influencia a qualidade dos produtos que comemos. E a nossa responsabilidade deste lado? Aqui em Macau achamos que não temos nada que ver com isso, porque é um problema que está na China, e temos muito a mania de nos queixarmos da poluição que vem de lá. Mas a verdade é que Macau tem níveis de desperdício energéticos muito grandes. Cada vez que estamos a sobrecarregar a rede eléctrica estamos a contribuir para essas emissões que são feitas do lado de lá da fronteira, e que depois recebemos. Uma estratégia que, a meu ver, poderia ser desenvolvida era tentar reduzir a poluição atmosférica, as emissões locais, nomeadamente através de adopção de veículos eléctricos. Macau podia ter ao mesmo tempo um papel mais activo no investimento em energias limpas. Provavelmente, no território não temos espaço para isso, mas podemos fazer parcerias com a China para a construção de parques eólicos, solares, e ir lá buscar a energia de que precisamos. Que mais podemos fazer? Toda esta região precisa de técnicos qualificados que possam intervir nestas várias áreas. Temos muitos outros problemas ambientais que afectam Macau e que precisam de profissionais qualificados. Desde a parte do tratamento dos resíduos sólidos à gestão das zonas verdes, passando pela água de consumo. A inovação nestes campos, mesmo do ponto de vista económico, é uma área interessante em que poderão surgir empresas que encontrem soluções para melhorar o ambiente, gerando na mesma receitas com isso.