O estranho lugar das palavras

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á dias em que de súbito acordo num momento qualquer do dia como se pela primeira vez. De novo, mas com uma sensação de estranheza desmesurada, e como se desentranhada à força e antes da hora, a um sono tumultuoso e insuficiente. Arrancada do lugar. E quando mergulho nas palavras sei. Que estas são sempre um lugar estranho. Insustentável estranheza ou lugar.

Há lugares tão estranhos. Para lá de qualquer indizível sensação de reconhecimento. Não que a estranheza seja inscrita no lugar. Os lugares são imanentes como as coisas, como a matéria. Como o corpo, até. E há corpos estranhos. Estranhos que ficam para sempre e para lá da intimidade aparente da pele. Irreconhecíveis enquanto lugares familiares, alheios. Há lugares e pessoas e nomes que nos ficam estranhos para sempre. Ou exteriores. Tive um lugar assim. Pessoas. Talvez não tanto porque não estivesse recamado de todos os objectos que me acompanham a vida, a memória, e dos quais me penduro para não soçobrar sem bússola. Perder. Mas porque foi escolhido com mais liberdade do que outros, utilidade e não paixão, por uma vez. E, de repente ali, tive o tempo de ver nos dias esse não reconhecimento. Talvez um lugar de não encontro. Uma ligeira coincidência de passagem. E só.

E, para afundar a sensação bem num âmago completo de estranheza, e a ferir de inevitabilidade, como se uma verdade qualquer acordasse sequiosa de validação, sento-me no lugar destas palavras, dias depois, sem de todo as reconhecer. Uma manta espessa e contínua, de nós e pontos apertados, que tive de desfazer. Desmanchar, em parte. Porque era hoje. A elas, ao lugar delas e ao lugar que me ocupou no tempo delas. Um lugar outro que não vejo ali. A estranheza completa e desconhecida desse lugar perdido na memória e que aqui serve. E que está bem. Assim. Certo nas palavras e estas na sua lonjura, já. Custo a reconhecê-lo e só muito a custo, abrindo parágrafos e afastando ramos estranhos numa confusão de sentidos desorientada, como num lugar entranhado de floresta sem momentaneamente ver de onde vem a luz. E desse lugar abstracto em que de repente acordo, espreito inúmeras possibilidades de significado. Várias estranhezas outras de territórios alternativos ao que, insignificante, moveu as palavras de início. Porque de significante, só deixou a recordação de deixar.

Mas, outras vezes, caio de repente até numa única simples palavra. Simples e familiar, e deparo-me também com uma equívoca e indeterminada sensação de pura estranheza. Não sei porquê. Talvez não esteja nela. E sim no lugar em que me encontro. O mesmo mas, por erro de percepção. De paralaxe, de novo. Eu lia dantes. E relia e retomava o prazer intenso de algumas palavras quase até ao desgaste da sua superfície doce. E relia-as cada vez mais suaves e niveladas dos volumes e texturas da emoção. Quase a tornar-se inócuas. Depois tinha que parar. Deixá-las regenerar todo esse perfume antes de consumi-las de novo. Depois, muito depois foi como se as palavras tivessem enlouquecido. Mutáveis, ambíguas, irónicas e fugidias na sua perversão. De querer seduzir magias e de querer recobri-las de dúvida.

Mas o lugar de que falava. Nem sequer chegado a ser desconfortável. Nem de perto. Apenas uma distância, no conforto, de não ser a minha pele. Uma pele alheia, familiar e anódina. Há lugares assim como pessoas. Esse confronto de múltiplos contornos entre familiaridade e desconhecimento, entre conforto e indiferença, fez-me um dia mudar de casa. Com toda a nitidez. Houve uma música e uma emoção forte. E, de súbito a certeza de ter que mudar e o ânimo para todo um terramoto dos objectos e de tudo. Como mudar de pele. Mais complicado do que de face ou de roupa. E há lugares que se nos colam imediatamente como uma seda fina, uma musselina etérea se quiser vê-la com essa separação do que é o corpo que se transporta, ou simplesmente e invisível ao próprio, a pele. E outras estranhezas. E outros lugares. Igualmente feridos dessa imaterialidade que lhes imprime interrogações e inúmeras sensações dentro do leque do visível aos olhos ou do visível à cegueira dos olhos. E de entre lugares estranhos, o amor. Assim, a dizer de repente.

Há lugares tão estranhos. Lembro-me de quando era pequenina, e mesmo mais tarde, um bocadinho menos de tudo, e agora tudo isso em muito mais. E encantada por uma pedra bonita, e como uma formiga, por isso pensava levá-la para casa. Naqueles gestos lentos de pontinhas dos dedos a tentar fugir aos grãos de terra, de olhos postos e só na pedra de uma cor curiosa, ou de uma textura lisa, lisa e boa de tocar. E, no preciso momento de levantá-la da terra em que repousava há tempo suficiente, uma miríade de vidas de vermes ou de insectos por debaixo. E o susto, a repugnância ante a possibilidade do tacto por engano das expectativas dos sentidos. Essa vida surpreendida escondida e em paz nos seus desígnios. Mais perturbadora, muito mais do que a pedra que por erro ou injustiça me detivera a deslocar do nicho original. A roubar à harmonia. Ainda hoje, o prazer fresco de encher as mãos de punhados de terra, neles construir camas para rebentos, mudas, sementes, ou raízes já feitas, é inquieto por essa possibilidade da vida minúscula e oculta nos seus grãos. A eminência do tacto, arrepiante. Dos vermes. Que se tratará, para além da leitura associada à morte, de uma repugnância estranha, é.  E perante os bichos queridos quando partem de si. Como se com a temperatura do corpo se esvaísse deles a alma que os distancia dos objectos e nessa ausência injustamente tornados menores do que eles. Os objectos que, mesmo frios, agarramos com prazer nas mãos. Não os bichos.

Um dia uma mulher estranha com quem trabalho, e poucas devem ser mais estranhas do que ela,  quando, no entanto, sempre que fala eu reconheço de dentro as palavras que acho bem, e porque lhe toquei no braço no decorrer de um diálogo, afastou-se com agressividade e disse horrorizada não me toques, eu odeio que me toquem…respeito tanto isso que muitas vezes não toco aquilo de que gosto. Tenho medo que mais alguém odeie que eu lhe toque. É odioso fazer isso a alguém. E no entanto faz-se de muitas maneiras cuja escala não intuímos. Coisas de esconder o afecto. De o recobrir de ironia. De agressividade. Eu tenho saudades desse tempo de álbum de fotografias e da parte em mim que pertence a esse tempo. Em que as pessoas se tocavam com o tacto.

Lugares estranhos. Viver com essa outra de mim que não domino. Toda uma vida, vendo bem. Aquela que é fabricada do lado de lá e de que não conheço contornos nítidos. Que sou. Ou pareço. Mas esse é um conflito que imagino que nos tolhe a todos. Esse fantasma instalado em nós pela percepção de quem é exterior e dessa paisagem exterior olha. Resguardado também pela invisibilidade inerente a essa película grossa de que nos recobrimos. Mesmo sem querer. Com aversão, ódio. Ou exterioridade. Só. Mas lugar certo Sem força e sem saber o gesto alógica, a regra. Há sempre o momento a surpreender. Esse olhar extrínseco. Não inerente à essência. Inventado, até. Tantos conflitos se geram nessa gestão descontrolada de representações de nós e em nós de cada um desse que somos.  E, curiosamente é na subjectividade inteira para dentro desse casulo tão inviolado, estanque e translúcido quanto muito, que melhor sinto o que sou.  Nesse conflito triste de um vulto a que falta o perfume daquele calor intenso de sentimentos puros soterrados por mil cuidados e mil cobardias. Se algo em mim quereria ter cura é esse lado externo a mim e que anda pelo mundo como se fosse eu. Um eu que não reconheço ter a competência de me representar. Todo o calor de sentimentos, toda a solidez de que se faz o etéreo, toda a alma em desvelo. Pelo que gosto. Mais ainda pelo que amo. E nada. Quase nada transpira dessa mortalha grossa de que me sinto recoberta. Pelos outros. Alguns. Algumas vezes. Esta insularidade intransposta do ser. Talvez por isso sou só. Não em mim. A solidão não é em nós, mas sempre nos outros. Sou só nos outros. Se me não veem e me não vivem. Nessa representação de nós, que muitas vezes penso como uma peça de roupa oferecida. Raramente a reconhecemos. Raramente acerta em nós com um tiro certeiro de maravilha. Ego contra ego. Com ego.

Arriscava dizer que também os outros sofrem desta distância. De embarcações frágeis enviadas para longe sem ter visto de perto. Temos um problema com intimidade. Temos um problema com confiança. Temos um problema de entrega. E temos problemas por ter problemas. Destes. E dos outros. Dos dos outros. Mundo complicado como uma nave de loucos (em) que somos. Outros lugares estranhos. Alienamos nessa zona etérea do mundo que é a fantasia, o desespero d a realidade. A revelar-se escorregadia como um verme, e impalpável como uma ideia. Ou o ruído dos passos nas pedras do caminho e o intransponível poder de um abraço.

Interrogo muitas vezes as coisas nessa lamela de laboratório científico, debaixo das lentes de microscópio. A incredulidade tem crescido em mim, comigo, a passar a outras idades. Mas não é que os sentimentos me ofereçam dúvidas em mim. Emprestam-me de forma permanente em dúvidas de mim nos outros. Cada vez mais estamos menos sós mas em lugares estranhos de nós. Nos outros. Por isso e sempre voltar ao lugar do silêncio. E não poder querer permanecer. Reduzir por momentos o ruído de dentro e de fora. É no silêncio que melhor me encontro no que de melhor deve haver em mim. Ou baixar os braços. Nesse silêncio onde não se entra nem ninguém facilmente. E de onde falo para dentro destas palavras quando posso. Sim. Quando posso sentir-me recoberta pela casa e pelas roupas sem despir menos que o necessário. Senão, é também aqui que me prendo a esse fantoche que vejo de fora como se fora eu não sendo. Eu que conheço outras camadas que os fios não gerem, os dedos não manipulam, e os olhos não tolhem.

Um dia vivi num lugar pequenino e talvez feio, que nunca foi estranho. E todo um chão em malmequeres. Podia parecer uma metáfora no mosaico da memória. Mas é rigor. Longe. Um lugar longe de tudo. E que nunca foi estranho. Com alguém que nunca foi estranho e até hoje está ali. A uma distância em quilómetros e em meses que nunca foi mais matéria do que isso. Que o tempo tem inexoravelmente diluído do quotidiano e está ainda, mesmo assim ao alcance. Deixou-me e ao lugar, num dia em que o ar e o mundo precisava de estabelecer regras de distância física mas só, um manuscrito. Folhas de uma caligrafia azul, reconhecível e tatuada do gesto, em folhas grandes e pautadas de finas linhas. Azuis. Como eram dantes. Um ensaio sobre a angústia. “A superação da angústia”. Escrito em dias a dois metros de mim porque o lugar não esticava mais de pequenino. Mas com toda a distância entre mim e o segredo das palavras a cair lentamente nas folhas, como gotas, de folhas, muito depois da chuva. Da angústia. Que era necessária verter num espaço curto. Em palavras ditas. Contadas. No espaço curto longitudinal, com o abismo pelo meio. Em si. Escritas, durante anos e anos não li. É esse o lugar estranho do amor. Um. Ou estranheza é o lugar em si. Para além da ética ou da estética. Quando visto do lado de dentro, umas vezes. Ou quando visto de fora e outro. Estranheza é um lugar. Que é um não lugar. Por isso. Não o amor. Lugar entranhado de si. O lugar estranho do amor, de tanto ser estranho não ser lugar nem estranho, mas ser em si.

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