Desvão

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ão há livros absolutos, muito menos em poesia. A poesia impõe-se mais pelo que deixa ler do que pelo que escreve. Não digo que a palavra escrita não seja importante, por que é, mas que o que a palavra deixa ler é mais. Aquilo que se consegue ver, ou que o poema deixa ver, que sugere, é mais importante do que o que escreve. E é nesta esteira que encontramos os poemas de Miguel Martins. Num dos seus livros mais recentes, Desvão – “num”, porque Miguel Martins é um poeta prolixo, que edita vários livros por ano, contando já quase com 30 livros de poesia editados –, debatemo-nos com esta tradição de entendimento e vivência da poesia.

Desde logo o título é fenomenologicamente rico. Para além da evidente semântica da palavra, que diz um espaço entre o telhado e o tecto do último andar de um prédio ou de uma casa, usualmente chamado de águas-furtadas, e que por si só já nos remete para um espaço de mistério, um espaço “entre”, entre o útil e o inútil, entre o necessário e o acessório, sugere também a leitura da divisão da palavra em des-vão, remetendo-nos para um neologismo, que faz todo o sentido neste livro. Tal como já Camilo Pessanha usara “desviver” – uma vontade de desviver – para melhor nos mostrar o seu sentimento perante não só a vida, mas o modo como sentia o seu lugar no mundo, Miguel Martins usa “desvão” e faz-nos ver, não ele no mundo, mas nós todos no mundo. O substantivo é transformado em verbo, um desverbo. Nós estamos não a ir, não a não querer ir, a não ir, mas a des-ir. A vida é um contínuos des-ir, não só através da memória, como nos mostra logo no início do livro – Num refúgio de sombra, / abrigado de tudo menos deste desvão da memória / assídua como um roncar de uma besta turva (…) –, mas também através da insónia, esse modo especial de estar alerta, como nos indicam os versos “a minha maneira de bocejar sem sono” (p. 19), “a eternidade dá-me sono” (p. 9) ou “sem insónias nem gritos” (p. 18). Eles, que des-vão na vida, entre a insónia e os gritos, e que somos nós todos, até o próprio poeta quando não é poeta, é o assunto deste livro. Mas entender o nosso modo de estar no mundo como um contínuo des-vão faz toda a diferença. Fazer ver, o que quer que seja, faz sempre toda a diferença. “Agora, és outra pessoa, / cheia de banalidades e pequenas alegrias. / O tempo e a distância encarregaram-se disso.”, diz-nos o início do poema, à página 18. Porque nós não podemos nada, de nós, das nossas coisas e dos nossos actos, deles encarregam-se o tempo e a distância. E não somos sempre outra pessoa, para os outros e para nós próprios, quando o tempo e a distância se encarregam disso? Não é esta mesma a condição inexorável daquele que está a des-ir? “Foi há muito tempo. Somos ridículos, hoje, quando evocamos / escaramuças ou risos, lábios fendidos ou beijados / como se quinhentas vezes o nevoeiro não tivesse feito gritar / entretanto a sirene do nosso cabelo em recessão, como se” (p. 11) E esta trágica condição, de tudo o que somos ser posto a ridículo pelo tempo e pelo espaço, a cada esquina, não invalida, não risca a necessidade de se viver “como se”. A memória não serve para nada, se não para nos dizer que tudo foi há muito tempo. A memória, adivinha-se neste livro, é uma máquina de cobrar a existência, uma espécie de pica-bilhetes, que quando menos se espera nos exige a comprovação de que estamos a des-ir no sentido certo, que realmente tivemos um lugar antes e estamos a des-ir na direcção de um depois. Não serve de nada, mas é como se servisse. Não serve de nada naquilo que é mais próximo ao coração, daquilo que é mais próximo à alma, daquilo que é mais próximo de algo como metafísica. A memória só serve para não nos esquecermos de fazer contas, é o mundo da tabuada. Pois só os números não mudam. Só os números podem ser recordados como eles mesmos são, pois na realidade só eles são, só eles nunca mudam. Nunca ninguém disse a um número “agora, és outro número” ou “já não és o número que conheci”. A memória não muda os números, mas muda as pessoas e as acções praticadas. A memória é o reino do “como se”, só existe na matemática. E isto é visível até quase à náusea, neste livro de Miguel Martins. A memória é uma espécie de insónia. Mais: insónia e memória estão tão ligadas que inventaram a noite, a noite “de todas as praias a que não voltaremos.”, como o poeta termina um dos seus poemas, onde a memória macera a carne, ou aquilo “a que se chama vida quando se tem ainda a vida intacta.” Eu sei que não basta morrer para acabar com a memória. Sei que não basta morrer para dar razão à sua pouca eficiência. Mas sem memória seriamos melhores? Sem memória não morreríamos?

(…) Resta-nos

a compostura de uma gravata nova, do cabelo aparado

até ao pavilhão auricular, e a talha dourada de uma partitura de Bach

para enganar a flacidez da carne, como se a carne precisasse de nós

(…)” (p.11)

Esta consciência aguda de nós não sermos carne ou, talvez melhor, que nós somos para além da carne, “como se” a consciência da mesma, mas ao mesmo tempo também não somos memória, faz desta nossa existência um des-ir contínuo para nada. E nada se sabe enquanto se desvai. Desvaímo-nos a medo, é o que nos resta, medo e tristeza, como escreve Miguel Martins  página 12:

“(…)

São esses os instantes em que se torna óbvio sermos apenas

gente, gente condenada a uma tristeza perene, pano

de fundo de breves alegrias, ao sabor dos jogos de cartas

e da meteorologia. (…)”

Este retrato da existência não é, contudo, um retrato pessimista, um retrato do humano como alguém perdido, esquecido no desvão, entre a memória e a carne flácida. Pois precisamente o que parece ser um mal, o não se saber o que andamos aqui a fazer, acaba por se tornar um estranho aliado, ou pelo menos um estranho companheiro de estrada, como se pode ver pelos últimos sete versos do poema à página 22:

“(…)

Tem idade para ser sua filha, provavelmente namora

um tipo que de Monteverdi não ouviu nem o nome.

É ruiva como um pêssego maduro, pequena como um pónei

de feira. E ele, impotente vai para dois anos, observa-a

como se fosse um quadro num museu de província, cheio

de condescendência e abandono. Pensa na arma que herdou

do tio, pensa que é chegada a hora de tomar uma decisão.

Mas, sem dúvida, aguardará a chegada e a partida

do 39, que vai, sem pressa, para não se sabe onde.”

E eis este nosso des-ir a fazer-se sentir em todo o nosso ser como uma forte trovoada. Um livro feito de espanto e de fazer ver, como se estivéssemos acabado de chegar à vida e nos debruçássemos na janela a ver as estruturas da existência a passar. Ainda antes de darmos as últimas palavras ao poeta, resta dizer que esta edição da editora “não [edições]” teve uma tiragem de apenas 200 exemplares, com composição e desenhos de João Concha.

Queimar tudo. Alugar uma casa num lugar sem história

na história da minha vida, um lugar de postais antigos,

desbotados, e do passado guardar apenas uma urna

de cinzas, no compartimento por baixo do lava-louças.

Ver filmes sem mérito, ler livros sem arte, ouvir óperas

cómicas e inêxitos impopulares e anacrónicos. Tentar,

sem sucesso, pescar, e ir ao mercado comprar peixe

miúdo e roupas com defeito às ciganas. Ser anónimo

por fora e por dentro, criança que não se conhece

nem quer conhecer e que procura apenas o início e o fim

de um carreiro de formigas, revelação suficiente

par aquém ainda não desperdiçou a vida a perscrutar

os gloriosos fundos de um oceano de merda. Beber

pouco. Foder com a moderação que a improbabilidade

do diálogo impõe. Emular os pioneiros americanos,

pecadores em busca de recomeço e horizonte, longe

das catedrais e de si próprios, longe dos quiromantes

e das sílabas e, sobretudo, da inexorável morte do amor.”

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