Arnaldo Gonçalves organiza ciclo de palestras sobre religião

 

“Há um regresso do sagrado à preocupação das pessoas”

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] “Sagrado e o Profano – Diálogos no Delta do Rio” é o lema do ciclo de palestras que tem início no próximo dia 25, pelas 18h30, na Livraria Portuguesa. Uma iniciativa do Fórum Luso Asiático que pretende discutir a religião e o seu papel na sociedade contemporânea. Arnaldo Gonçalves fala ao HM da motivação que deu origem à iniciativa

 

De onde partiu a ideia para o tema do ciclo “O Sagrado e o Profano – Diálogos no Delta do Rio”?

A ideia de fazer um ciclo de palestras acerca da religião veio de um sentimento que se foi acumulando ao longo do tempo. Achei interessante pegar numa temática que ainda não foi tratada em Macau mas, sobretudo, porque se sente que há uma grande inquietação. Enquanto cientista social, sinto que há um regresso do sagrado à preocupação das pessoas. Durante muito tempo, desde Weber no século XIX, que se começou a acreditar que as pessoas não precisavam da religião para nada e que a religião era uma coisa já acabada, de séculos anteriores, e que só através da ciência e do uso da razão é que as pessoas podiam descobrir a felicidade. Esta ideia, de alguma forma, revelou um mito com pés de barro, porque as pessoas procuram sempre algo.

Que encontram na religião?

Nesse aspecto assistimos, um pouco por todo o mundo, ao regresso das preocupações de foro religioso – num sentido diferente em relação a outros períodos, porque não é tanto um retorno às chamadas religiões institucionais que têm igreja, um corpo hierarquizado, um clero ou um dogma, mas sim um regresso a múltiplas formas de espiritualidade. Achei que era interessante trazer este tema que, no fundo, se trata do confronto entre o sagrado e o profano, isto é, o confronto entre o apelo à religião e um mundo material que é o que nos rodeia. É no cruzamento de ambos que foi associada uma outra ideia que, pessoalmente, sempre achei curiosa no budismo, e que é a questão do “rio”. O budismo é uma religião que acredita na reencarnação e que nós vamos num rio a atravessar de uma margem à outra. As próprias escolas do budismo são definidas de acordo com esta analogia da jangada pequena e da grande jangada. Aqui temos o Rio das Pérolas e, por outro lado, a metáfora ao rio também representa um caminho. Um rio é uma coisa que não pára, é uma fluência que não é estática porque nunca voltamos a repetir a mesma secção do trajecto e experimentamos sempre partes novas. Vamos também abordar as grandes religiões monoteístas que são as que se impõem à nossa cultura, mas também outras não monoteístas e que estão muito enraizadas, especialmente aqui na Ásia, sem esquecer outras formas de espiritualidade que, se tivermos tempo e houver público, iremos tratar.

Falou de um regresso às preocupações religiosas e ao sagrado. O que é que está a acontecer socialmente para que se esteja a assistir a essa transformação?

Penso que é uma resposta, de certa forma, a uma instabilidade que se sente no mundo. O mundo nunca esteve tão instável como agora. Neste momento somos confrontados com surpresas praticamente todas as semanas acerca de coisas que acontecem e põem em causa o que podemos chamar de uma certa normalidade. Isto traduz-se na tal intranquilidade vivida pelas pessoas. As pessoas não se sentem seguras, estão preocupadas com os problemas que possam ter. Por exemplo, quando viajam estão mais preocupadas com isso, no contacto com outras comunidades que desconhecem também não se sentem seguras e essa intranquilidade não é resolvida pelos governos, não é resolvida pelos sistemas políticos. E é uma coisa que fica no coração das pessoas.

É aí que a religião tem um papel?

Sim, acho que esse apelo à religião representa a procura de uma iluminação e de uma paz interior. É algo que as pessoas pouco a pouco têm descoberto enquanto forma de usufruírem daquilo que têm, de se conhecerem a si próprias e de terem uma relação de abertura em relação ao outro que desconhecem e de que desconfiam, porque é diferente, porque ora diferente ou porque pensa diferente. Acho que esse apelo é consistente.

O ciclo de palestras vai abrir com a temática do Islão. Alguma razão em particular?

Não foi intencional, mas é a religião da maioria da população asiática. Por outro lado, há uma grande curiosidade pessoal em relação ao Islão que também passa pela formação em estudos internacionais e pelos actuais estudos que estou a desenvolver há três anos que abordam os estudos religiosos. O Islão é a religião mais praticada na Ásia, tem um bilião de seguidores nesta região do mundo. Acabou por se juntar o útil ao agradável e começar por tentar perceber o que é o Islão, como é que é uma doutrina que dá resposta à intranquilidade das pessoas, como é que o apelo ao divino pode preencher uma parte desta inquietude.

A seguir ao Islão o que é que vem?

A segunda palestra vai debruçar-se no judaísmo. Vai ser dada por um professor da Universidade de Macau, judeu praticante e um fervoroso conhecedor do Antigo Testamento. Prevemos ter o evento no início de Janeiro, mas depende da disponibilidade do espaço. Depois seguem-se o cristianismo, o budismo e por aí fora.

Como é que se vai organizar cada palestra?

Queremos que seja uma conversa em que o convidado faz a exposição acerca da forma como vê a religião e em que há espaço para que o público coloque as suas questões, de modo a suscitar um debate.

Qual é a sua relação com a religião?

Não tenho qualquer religião. Mas por exemplo o professor James D. Frankel, que vai abrir este ciclo de palestras, é uma pessoa muito interessante. Tem formação em Estudos Comparados na religião e é um convertido ao Islão. Pessoalmente acho curiosíssimo que um americano, formatado pela cultura em causa, branco, caucasiano, tenha sentido este apelo. O que é que o Islão lhe terá trazido para que se tivesse convertido? Comecei a viajar muito cedo por uma série de países islâmicos e, da experiência que tenho, a imagem que nos dão do Islão, nebulosa e bélica, não corresponde à realidade que vi nestes países. É uma religião doce. Nunca senti a pressão de que tanto se fala.

Como vê a religião em Macau?

Em Macau, a religião cristã tem um peso muito forte e somos levados a pensar que é a única que existe, até porque é o fio ideológico da comunidade macaense. Mas também temos o budismo que é a doutrina praticada pela maioria. O Islão aqui é praticado por uma pequena comunidade que nem templos tem e é pouco visível, mas que integra pessoas de várias comunidades. Esta palestra só é possível com a ajuda da associação muçulmana local que me auxiliou na escolha do perito orador e nos contactos que fiz.

 

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