VozesMemórias de Alecrim Fernando Eloy - 6 Out 2016 [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]lecrim não era um amigo íntimo, nem um amigo, longe disso. Terei trocado meia dúzia de frases com ele nesta década e meia que levo de Macau. Mas era impossível viver aqui todo este tempo e não saber quem era o Alecrim. As suas histórias esvoaçaram sempre de ouvido em ouvido, exportadas de boca em boca, com a mesma ligeireza e alegria com que ele as contaria. Das mais libidinosas às mais heróicas, as histórias do Alecrim ecoam imagens de um passado que nos permitem ver para além deste mar de vidro e luz em que navegamos, sentar-nos nos recantos mais esquecidos da cidade, onde todos os passados ainda são possíveis, e tentar compreendê-la, senti-la, ficar mais próximo, desta urbe milenar que a tantos parece tão pouca coisa. Alecrim era embaixador de um tempo (o passado parece sempre romântico porque, no fundo, a nossa dificuldade de relação é com o presente – o passado era bom e o futuro vai ser uma maravilha), uma verdadeira janela para um passado que nos permite ver esta cidade para além da mera percepção, esta terra que tanto acolhe como repela. Alecrim era daquelas personagens maiores do que a vida, motivo de inspiração para qualquer romancista que se preze, como o era, também e por exemplo, o Padre Manuel Teixeira que ainda consegui ver no seu calcorrear diário da ponte Nobre de Carvalho. São personagens com história e com histórias. Personagens que quando calhamos estar no mesmo espaço do que elas sabemos estar na presença de alguém fora do normal. São personagens como estas que encarnam a verdadeira dimensão desta terra que vai muito para além dos seus 28 kms, ou 29, ou 30, ou… Alecrim era um símbolo de uma geração que viu o mundo transformar-se de uma forma inaudita. Da independência de Goa à invenção do iPhone 6, para ser mais prático. Os nossos filhos, seguramente, verão transformações superiores em menor espaço de tempo, mas o mundo de Alecrim não fica a dever ao deles em nada. Para além de ofuscar as luzes, o Alecrim permitia-nos ver, e perceber, porque tantos estrangeiros escolheram Macau como casa ou abrigo de longa duração. “Porque às Costas do Sul da China arribam apenas loucos e aventureiros?”, interrogava-se um historiador chinês num qualquer livro que li algures. Alecrim caberia, provavelmente, na definição daquele historiador, como muitos de nós que para aqui andamos, imagino. Alecrim era ainda um símbolo desses que, demandados para além de São Vicente, não mais voltaram encontrando “casa” num local tão improvável como Macau, sugerindo-nos interrogações muito pessoais sobre esse deixar, sobre esse permanecer. Alecrim dedicou a vida a Macau, provavelmente porque a colecção de memórias que aqui congregou terá sido tão incomensurável que não mais poderiam ser deixadas. As memórias são a última energia que nos restará quando nada mais houver que nos sustenha. Fazer memórias é, por isso, mais do que uma necessidade, uma obrigação para connosco próprios se ambicionamos a uma velhice decente. Alecrim é um excelente lembrete dessa necessidade. Porque se a memória de Alecrim é indissociável das suas memórias, a sua debanda deste mundo é uma oportunidade para reflectirmos na nossa própria fábrica de memórias e perceber se está a funcionar em pleno, se estamos de facto a extrair o máximo desta nossa vivência por estas bandas (que a nossa cultura crê exóticas) tal como Alecrim o fez. Não desejo paz eterna ao Alecrim mas sim vivacidade eterna. Como desejo para mim, e para si caro(a) leitor(a). Música da Semana “Saviour Machine” (David Bowie, 1970) “I need you flying, and I’ll show that dying Is living beyond reason, sacred dimension of time I perceive every sign, I can steal every mind”