h | Artes, Letras e IdeiasTragédia grega II Paulo José Miranda - 27 Set 2016 [dropcap style=’circle’]P[/dropcap]or sua recorrência, algumas cenas se destacam nas tragédias gregas e são tão típicas do género quanto é, por exemplo, uma cena de perseguição num filme de acção. 1. Catástrofes: catástrofes são cenas de violência que, em geral, são ocultadas aos olhos da plateia e narradas posteriormente por um actor – como em Os Persas, que narra a destruição da expedição contra os gregos. Representa a reviravolta para pior no destino de um personagem. No drama Agamémnon, o seu assassinato por Clitemnestra. Em Édipo, a cena final onde o protagonista aparece em cena com os olhos perfurados e sangrando (nós não temos acesso à acção de Édipo a furar seus olhos, mas a acção é-nos contada). 2. Cenas patéticas: cenas de explicitação de sofrimento, de dor, em cena. Por exemplo, as cenas em que Electra dá vazão à sua dor pela morte do pai e pela situação humilhante a que sua própria mãe a obriga. 3. Agón ou cenas de confrontação: tratam-se de cenas onde, através de acções ou de diálogos entre personagens, se explicita o conflito trágico no palco. Exemplos maiores seriam o diálogo entre Clitemnestra e Orestes antes da cena de catástrofe, onde Clitemnestra é morta pelo próprio filho em As Coéforas, ou em Édipo Rei, na cena que Édipo discute violentamente com o adivinho Tirésias, ou ainda nas cenas de reconhecimento, isto é, naquelas em que se dá a passagem da ignorância para o conhecimento, quando um personagem se descobre parente, amigo ou inimigo de outro. Pode também tratar-se da descoberta de algo que se fez ou não. O exemplo clássico de uma cena de reconhecimento é a descoberta de Édipo como assassino do pai e esposo da mãe em Édipo Rei. As técnicas usadas para este reconhecimento em si poderia se dar de modos muito diferentes. Uma das técnicas mais usadas era através de sinais exteriores, como quando Electra reconhece seu irmão Orestes por causa de uma peça de roupa que este usa. É importante deixar claro que não se trata de uma cena em que o público toma conhecimento de algo. É o personagem que toma consciência desse facto significativo para o seu destino. Depois de um breve olhar para a forma da Tragédia, regressemos ao seu sentido, à sua natureza. Vimos anteriormente que, contrariamente à epopeia ou à lírica, a tragédia é a representação de uma acção. A tragédia está a acontecer. A epopeia trata do que já aconteceu, a lírica de uma subjectividade intemporal, mas a tragédia está a acontecer. A tragédia está ali em frente dos nossos olhos, em frente de nós, é o presente a acontecer. A tragédia, literalmente, faz-se diante de nós. O presente, o a acontecer é o fundo onde a acção se move. Que acção é esta que se move neste tempo, que acontece aqui e agora diante de nós, espectadores? A acção é um acontecer aqui e agora através daquilo a que Aristóteles chamou de “alma da tragédia”: o mytho, o enredo. Na Poética, em 52b 9, Aristóteles escreve que as duas partes do enredo são a peripécia e o reconhecimento; apontando ainda uma terceira a que chama de patético, isto é, pathê, ser afectado. A peripécia está estritamente ligada à metabolê, à mudança. Não se trata de uma simples mudança, mas de mudança que traz em si a negação do seu oposto, isto é, a acção converte-se no seu contrário. Por conseguinte, esta mudança é na realidade uma reviravolta – e neste sentido a tragédia é a arte mais próxima da vida humana. Como exemplo máximo de reviravolta, ou de peripécia, Aristóteles refere o Édipo Rei, de Sófocles, no episódio em que um arauto chega a Tebas, vindo de Corinto, com a mensagem da morte de seu pai e, vendo que Édipo ainda sentia preocupação em relação à possibilidade do oráculo de Delfos estar correcto e ele poder desposar sua mãe, revela-lhe que sua mãe não é realmente sua mãe, pois ele foi-lhe entregue em criança pelas mãos de um pastor que pertencia à casa real de Tebas. Ora, aquela que deveria ser uma revelação auspiciosa, acaba por tornar-se precisamente no seu contrario, afundando mais Édipo em preocupação, que agora é já quase uma certeza; trata-se da reviravolta por excelência, segundo Aristóteles. Mas esta reviravolta é simultaneamente um reconhecimento, pois Édipo passa de uma situação de ignorância em relação ao que de facto aconteceu no passado, para um conhecimento quase pleno daquilo que realmente se passou. No fundo, todo o reconhecimento é também ele uma reviravolta, pois o personagem passa de uma situação de ignorância para uma de conhecimento pleno, isto é, para o seu contrário. Aristóteles acrescenta ainda que a reviravolta ou peripécia é apenas apanágio das tragédias mais complexas, e também mais perfeitas do ponto de vista do trágico ou patético (não há uma clara diferenciação entre trágico e patético em Aristóteles). Ora, porque razão ele conecta complexidade do enredo, através da reviravolta, com amplificação do trágico? Precisamente porque a reviravolta é um mecanismo de acção trágica especialmente apropriada para suscitar o terror e a piedade ou compaixão. Mas estas reviravoltas surtem o seu efeito maior se conectadas a actos patéticos, pathê, como lhe chama Aristóteles. Em 53b 20, ele exemplifica quais são esses actos patéticos: um irmão que mata ou pensa em matar um irmão; um filho, o pai; uma mãe, o filho; ou um filho, uma mãe. Mas estes actos patéticos e a reviravolta não podem ser usados aleatoriamente, isto é, há situações de reviravolta com actos patéticos que não suscitaria o terror e a piedade, mas sim a repulsa. Por exemplo, ver um justo passar da felicidade à desgraça ou um injusto passar do infortúnio à felicidade. O que estás agora aqui em causa é o apuramento daquilo que efectivamente suscita piedade. E, em 53a 5, Aristóteles escreve: Sente-se piedade por aquele que não merece o infortúnio e não por quem o merece. Muito bem, se pensarmos já, adiantadamente no livro do Eça, poderíamos dizer que se Basílio caísse em desgraça nós não seríamos afectados de piedade, de compaixão por esse personagem. Contrariamente, sentimos toda a piedade por o que acontece a Édipo, que tenta tudo para não errar, age sempre justamente, mas não consegue escapar ao infortúnio que tinha já sido ditado pelos deuses. Por outro lado, não basta o personagem não merecer infortúnio, é necessário que possamos identificar-nos com ele. É preciso que a infelicidade atinja um nosso semelhante, acrescenta Aristóteles. Por conseguinte, e em forma de conclusão em relação à alma da tragédia, a reviravolta do enredo deve ir da felicidade ao infortúnio, devido não à maldade do herói, mas a uma grande falta cometida por ele ou por seus familiares. Para terminarmos, não poderíamos deixar de mostrar o modus operandi daqueles que as compunham. A técnica que os tragediógrafos usavam na composição de um tema é a que podemos chamar hoje de técnica do zoom. Em que consiste esta técnica? O zoom é uma possibilidade técnica e material dos nossos dias que permite aumentar uma determinada imagem. Neste aumentar de imagem acontece duas coisas: 1) o campo do que se vê fica mais reduzido; 2) vê-se mais desse reduzido do que se via na imagem alargada. Para quem viu o Blow Up de Antonioni, sabe muito bem do que estou a falar. Um fotógrafo num parque tira uma foto a uma mulher em campo alargado de imagem. Mais tarde, em estúdio, vai fechando esse mesmo campo, deixando mesmo de ver a mulher e passar só a ver os arbustos e, nesse fechamento do campo, nessa diminuição do espaço, há um ganho de conhecimento, isto é, passa-se a ver algo que ainda não estava a ser visto. Neste caso, como também acontece na tragédia, passa-se a ver um revólver a disparar, causa pressuposta da morte dessa mulher. É precisamente este o método utilizado pelos poetas trágicos. Passemos a ver. Há uma situação conhecida, um campo alargado de imagem, que é o rapto de Helena ou a sua fuga com Páris para Tróia. Pois bem, usemos agora uma lente que permita fazer um enorme zoom sobre este campo alargado de imagem mítica. Imagine-se que, com este zoom, deixamos de ver tudo excepto Menelau no seu quarto às voltas com dores e decisões. Ou seja, através do zoom o poeta trágico faz-nos pensar, faz-nos ver o que poderia ter acontecido a Menelau naquela situação. O zoom não inventa uma imagem, não inventa um mito, antes reproduz um deles numa ampliação que não existia. Este é o método do poeta trágico: aplicar zooms aos seus mitos. Por conseguinte, e porque se trata de uma amplificação de uma imagem “real”, o final da tragédia também não poderia contrariar o curso normal do mito tratado pela tragédia e conhecida do espectador, isto é, o final não poderia revelar o que a imagem não ampliada não mostrava. Acontecesse o que acontecesse com Menelau, nesse zoom, ele teria sempre de partir para a guerra de Tróia. Na próxima semana iremos ver de perto a arte de Esquilo.