Um Cântico Agónico e a Nostalgia do Tempo que Passa (continuação)

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]esde o princípio se percebe que Lampedusa não é socialmente neutro e que portanto a sua tipologia social — e não nos podemos esquecer que o romance é tipológico — se insere na linha da captação dos chamados ideal tipos weberianos embora o sociólogo de eleição para o autor seja Vilfredo Pareto, com a sua Teoria dos Resíduos e da Circulação das Elites. Em qualquer dos casos o romance é histórico no plano factual, no plano do cenário escolhido e no plano do enquadramento epocal, mas profundamente sociológico na medida em que aparece centrado sobretudo nas transformações sociais que se dão nessa época da história. Claro que o romance poderia continuar a ser considerado apenas histórico na medida em que foi escrito nos anos sessenta do século XX e portanto algumas décadas já depois da eclosão da Escola do Annalles que se manifestou muito sensível às durações, às conjunturas e estruturas mas ainda mais às oscilações de conjuntura por um lado e sobretudo às grandes mutações estruturais (A Escola dos Annalles é muito sociológica). Essas épocas de grande mudança são de uma enorme riqueza, pois os arquétipos na sua oscilação fazem oscilar tudo à sua volta. As transformações sociais e económicas entrelaçam-se com transformações culturais e de mentalidade e até com profundas revoluções no gosto e com as actividades estéticas. Lampedusa foi de uma enorme coragem ao escolher a época que escolheu, ao escolher o tema que escolheu, no enquadramento histórico em que o fez, ao escolher as personagens que escolheu, portanto na decisão que teve de elaborar um romance genuinamente tipológico. Claro que não é caso único na História da Literatura, e bastaria, sendo parcimonioso nos exemplos, referir apenas no mesmo século o Homem Sem Qualidades de Musil ou Os Sonâmbulos de Broch, ou mudando de século, O Vermelho e o Preto de Stendhal, e até As Ilusões Perdidas de Balzac. Embora o paradigma por excelência e o clássico dos clássicos do género, seja o Dom Quixote de la Mancha de Cervantes.

No plano do conteúdo factual em sentido estrito o romance narra uma parte da vida de uma família aristocrática e em larga medida feudal, onde contudo se evidencia a personalidade fascinante de Fabrizio Corbera, Príncipe de Salinas. Na pena de Lampedusa, Fabrízio representa uma espécie de anti-herói ou de anti-clímax, na medida em que assiste de forma indolente à decadência do modelo social que protagoniza e da estrutura política que a suporta, a Monarquia Absoluta, embora anémica, dos Bourbons. O cenário é a Sicília, região italiana imobilizada no tempo e tão idiosincrática que todos ou quase todos, seja qual for a classe social, a pensam inviolável nos seus pressupostos socio-culturais. Uma espécie de inércia atávica que não é indissociável do clima e da história, mantém ou parece manter inalteráveis os quadros de referência mental, embora saibamos, historicamente falando, que o tempo esse grande escultor vai modulando lentamente outras realidades. Contudo Tancredi, sobrinho órfão do Príncipe Salinas, o Tiozão, é de facto certeiro e premonitório quando diz ao tio a frase mais célebre do livro: “Se queremos que tudo fique como está, é preciso que tudo mude“. A frase fica melhor invertida e foi talvez nessa forma mais incisiva que se imortalizou: “É preciso que tudo mude para que tudo fique como está”, quer dizer, que tudo fique na mesma. Com o tempo o primeiro tudo acabou por dar lugar ao mais moderado e sensato, “… que alguma coisa mude …”. E assim o apotegma gnómico acabou por cristalizar na forma: “É preciso que alguma coisa mude, para que tudo fique na mesma”. O tempo histórico é o abrasador período do Risorgimento e da Unificação Italiana tardia sob a liderança de um condottieri de nome Garibaldi, mas sob a égide da Republicana Jovem Italia de Mazzini e Cavour. Porém, no ambiente já de si abrasador mas indolente da Sicília nada parece mudar o que permite ao Leopardo continuar a mover-se com elegância entre os chacais.

A personalidade olímpica de Fabrizio Corbera, a sua oposição de fundo à mudança, o seu conservadorismo aristocrático constitui o elemento chave do romance para o mal e para o bem. Passo a explicar-me melhor. Compreende-se que um aristocrata de meados do século XIX, membro de uma elite já completamente obsoleta e anacrónica se oponha a qualquer transformação que seria e representaria sempre o princípio do fim. Esta atitude contém um elemento de galhardia e grandeza, mas também de insensatez. Mais avisado e astucioso é o seu sobrinho, Tancredi Falconeri, que de resto não tem património próprio e vive a expensas da magnanimidade do tiozão, o Grande Predador solitário, o Leopardo. Daí que seja de Tancredi e não de Fabrízio a célebre frase citada que também, só por si, imortaliza o livro.

No plano da estrutura narrativa a opção pelo narrador omnisciente com um pé fora e outro pé dentro dos factos e da época permite um realismo e uma verosimilhança muito ambivalente e nesse plano muito sedutora. E é esse estratagema que permite conferir ao mesmo tempo realismo e romantismo às personagens. No plano estilístico a obra de Giuseppe Tomaso di Lampedusa tem um poder descritivo arrebatador usando de uma forma inédita, penso eu, uma forma de intertextualidade entre os elementos físicos do décor e os elementos simbólicos, associados, para reconstituir a materialidade tridimensional da natureza da realidade e dos elementos artísticos decorativos e tudo isto através de um jogo tão sedutor que se torna por vezes abstracto e irrepresentável. Nesse domínio o autor logra uma obra quase inultrapassável no plano do esteticismo decadentista, aqui e ali com alguns desnecessários excessos barrocos. O início do romance em que o autor usa os murais dos seus salões como signos que pontuam o ritmo da descrição e do discurso é para mim sinceramente digno de figurar numa antologia de primeiros capítulos de todos os romances que conheço. Permitam-me um parágrafo só para estimular o desejo:
“«Nunc et in Nora mortis nostrae. Amen.»

Terminara a oração quotidiana do rosário. Durante meia hora, a voz pacata do Príncipe tinha evocado os Mistérios Dolorosos; durante meia hora, misturaram-se outras vozes tecendo um murmúrio ondulante em que se destacavam as florinhas de ouro de palavras invulgares: amor, virgindade, morte; e, enquanto durava aquele murmúrio, o salão rococó parecia ter mudado de aspecto; até os papagaios que abriam as asas irisadas na seda da tapeçaria tinham o ar de intimidados; a própria Madalena, no meio das duas janelas, mais parecia uma penitente em vez de uma bela louraça, distraída sabe-se lá com que devaneios, como se via sempre. Agora, tendo-se calado a voz, tudo reentrava na ordem, ou na desordem, habitual. Pela porta por onde tinham saído os criados, entrou abanando o rabo o alão Bendicò, magoado com a sua exclusão. As mulheres levantavam-se lentamente, e o oscilante refluir das suas saias a pouco a pouco ia deixando descobertas as nudezes mitológicas que se desenhavam no fundo leitoso da tijoleira. Só restou coberta uma Andrómeda a quem a batina do padre Pirrone, retardado pelas suas orações suplementares, impediu a visão do argênteo Perseu que sobrevoando as vagas acorria em seu auxílio apressado pelo antegozo do beijo. No fresco do tecto despertaram as divindades. As alas de Tritões e de Dríades, que dos montes e dos mares, por entre nuvens cor de framboesa e ciclame, se precipitavam sobre uma transfigurada «Concha de Ouro» para enaltecer a glória da Casa de Salina, pareceram de repente colmadas de tanta exultação, que se descuravam as mais simples das regras da perspectiva; e os deuses maiores, os Príncipes dos Deuses, Júpiter fulgurante, Marte carrancudo, Vénus lânguida, que haviam antecedido a turba dos menores, sustinham de bom grado o brasão azul-celeste com o Leopardo. Eles sabiam que, agora e durante vinte e três horas e meia, retomariam a posse da villa. Nas paredes, os macacos recomeçaram a fazer gaifonas às catatuas. Por baixo daquele Olimpo palermitano, também os mortais da Casa de Salina desceram à pressa das esferas místicas(…)”.

Acima deixei passar impune a questão dos chacais, é chegada a hora de voltar ao tema. É Giuseppe Tommasi di Lampedusa, ele próprio um aristocrata, quem assim designa a classe ascendente, a burguesia, através de alguns dos seus membros, mais fáceis de caricaturar, como é o caso de Dom Calogero, pai da bela e sensual Angelica. Angelica que se virá a tornar a esposa de amor e conveniência do azougado, sedutor e pragmático Tancredi.
Ora, esqueçamos lá agora por um bocado a figura altaneira e imponente do Príncipe de Salinas e o carácter rapace e agiota de Dom Calogero e centremo-nos momentaneamente no processo histórico real, tal como o conhecemos através de muitas narrativas quer no plano dos documentos da época quer no plano das reconstituições globais, analíticas, sintéticas e racionalmente compreensivas. Quem eram afinal os chacais!? Quem levou a exploração sobre o mundo camponês até ao patamar da mais torpe ignomínia. Quem é que abusou de forma tão imoral dos mais desprotegidos, destruindo-os nas suas capacidades vitais e atentando de modo infame contra a dignidade de seres humanos reduzidos a coisas sem préstimo e sem quaisquer direitos, ultrapassando até o limiar da racionalidade pois o excesso de exploração e de humilhação foi tão grave que amenizando os camponeses feriu de morte a fonte das suas próprias rendas. Isso foi algo que Marx teorizou muito bem: a sobrexploração torna-se contraproducente e irracional. Mas foi o que aconteceu um pouco por toda a Europa ao longo do Antigo Regime. Portanto quem foram os verdadeiros chacais senão essa aristocracia terratenente que asfixiou a própria fonte dos seus rendimentos levando o seu parasitismo até ao limiar da destruição do hospedeiro que o alimentava. E é por isso que o aristocrata Lampedusa ao construir como paradigma do fim de uma época uma figura tão romanticamente concebida de algum modo falha o scopo da perfeição. Não se pode falhar tanto a realidade e a verdade histórica. De algum modo, é uma questão de decência. Claro que existiram os Príncipes de Salinas e claro que existiram também os Calogeros, mas como no romance só aparecem estes, eles tornam-se paradigmáticos dos grupos sociais que representam e é nesse sentido que o romance no plano tipológico fica empobrecido e algo maniqueísta. E em termos históricos, pode-se dizer que falseia a realidade. E é injusto! O mundo não era assim. O mundo de Antigo Regime era bem diferente e as relações entre os terratenentes feudais cobradores de rendas eram muito mais cruéis, desumanas e rapaces também à sua maneira e finalmente as relações entre os camponeses miseravelmente sobrexplorados e os seus senhores não eram nada idílicas como o romance faz subentender. Com todo o respeito pelos Príncipes de Salinas, que os havia, pululavam indivíduos pérfidos e prepotentes que exploravam de uma forma vergonhosa e ignóbil os camponeses e que os tratavam pior do que tratavam os animais. Lembrem-se dos mecanismos de tortura que esses senhores possuíam e utilizavam nos seus cárceres privados no exercício de uma justiça privada também. Lembrem-se de filmes como O Amante da Rainha onde um camponês é encontrado morto num instrumento de tortura e de morte, designado por O Cavalo, ou como no Rob Roy, os aristocratas ingleses abusam das mulheres de uma aldeia praticamente nas barbas dos maridos e do filhos. Lembrem-se do direito de pernada do qual há provas em França até 1789 e que na nossa querida Sicília terra de Leopardo, chegou até meados do século XIX. Será que dá para fazer uma pequena ideia para os camponeses sicilianos em pleno século XIX, a humilhação de terem de oferecer as filhas e futuras mulheres ao senhor feudal. Afinal quem eram os chacais? Claro que alguns autores têm vindo a procurar reduzir o alcance deste abuso monstruoso numa Europa já tão humanizada e civilizada e eu próprio admito que não fosse uma prática corrente, mas que há fundamentos factuais ao nível das fontes textuais, lá isso há. Mesmo que não fosse, no final do século XVIII e na primeira metade do século XIX, uma prática generalizada… seria sempre, como foi, infame.
Volto no entanto a um ponto importante e faço-o para que estes últimos parágrafos não possam ser mal entendidos, O Leopardo de Giuseppe Tommasi di Lampedusa é uma obra prima e um dos meus livros preferidos. Pois que, com o senão de ser uma abordagem parcial, conta magistralmente o lado decadente de uma aristocracia moribunda a estrebuchar, no caso com dignidade, contra os ventos inexoráveis da História. Há sempre algum lirismo e alguma melancolia em todas as épocas que se confrontam com os seus demorados processos de agonia. Vem por vezes ao de cima a par do desespero um profundo sentimento da beleza que pode haver na fragilidade humana e também na sua grandeza caída. O Príncipe de Salinas irá prevalecer sempre, e Tommasi di Lampedusa é o responsável, como o que de melhor podem produzir as aristocracias e como um exemplo de como podem cair os gigantes.
E por aqui me fico!

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