Manchete SociedadeIec Long | CCAC considera nula permuta de terrenos com Governo e fala em violação à lei Joana Freitas - 14 Jul 2016 Violações graves à antiga Lei de Terras, competências ultrapassadas e um acordo nulo. É conhecida a conclusão da investigação do CCAC face à troca de terrenos da Iec Long com o Governo, numa história tão complexa que mete o ex-Procurador, o Secretário Ao Man Long, o ex-director Jaime Carion e muitas empresas [dropcap style=’circle’]O[/dropcap]acordo que o Governo fez com os proprietários da antiga Fábrica de Panchões Iec Long é nulo e viola a lei. A conclusão é do Comissariado contra a Corrupção (CCAC), que diz que o acordo para a permuta de terrenos feito em 2001 está errado em vários princípios, que vão desde violações “graves à lei”, a falta de competência do director dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes (DSSOPT) e a um cálculo de valores de terrenos prejudicial à RAEM. “O CCAC verificou algumas práticas da Administração Pública que violaram manifestamente o princípio da legalidade”, começa por apontar o organismo liderado por André Cheong. “As formas, os procedimentos e os princípios da permuta de terrenos estão previstos expressamente na antiga Lei de Terras, mas os adoptados na permuta do terreno da Iec Long desviam-se gravemente do disposto na lei. O [acordo] firmado pelo director da DSSOPT e pelo representante da Sociedade da Baía da Nossa Senhora da Esperança não está em conformidade com o disposto na antiga Lei de Terras.” Entre as falhas apontadas, estão o facto do director nem sequer ter exigido à Sociedade a apresentação do documento comprovativo dos seus direitos sobre todo o terreno da Fábrica de Panchões e o facto do valor do terreno da Iec Long incluir coisas que não devia. “Inclui não só o valor das parcelas que constituem propriedade privada e das aforadas, mas também o valor das arrendadas já devolvidas ao Governo, das parcelas vagas e das parcelas da propriedade do Estado. [Tudo] foi deduzido do prémio, o que violou manifestamente a igualdade das prestações consagrada na antiga Lei de Terras.” Contornos de novela O caso da troca de terrenos da Iec Long, na Taipa, voltou à baila em 2015, quando a Macau Concelears deu a conhecer que o Governo e os donos do terreno da Iec Long tinham celebrado um acordo onde o Executivo se comprometia a conceder um lote na Baía de Nossa Senhora da Esperança, na Taipa, com 152 mil metros quadrados, em troca do terreno da fábrica, com 28 mil. A ideia do Governo era construir um parque temático no local e, depois de diversas sugestões e desacordos, o Executivo finalmente cedeu outros lotes. Foi em 1950 que o terreno da Fábrica foi concedido por arrendamento a Tang Kun Hong e Tang Ming Hong, proprietários da Iec Long, para que pudessem continuar a actividade. Na década de 1980, o Governo decide retirar a concessão devido ao declínio da indústria. Com a “fábrica parada”, não fazia sentido os terrenos estarem nas mãos dos empresários. O terreno da fábrica contava, contudo, com mais de 3200 metros quadrados de lotes privados, que pertenciam aos dois proprietários. Cada um deles acaba por passar essa parte, igualmente dividida, a herdeiros. Estes, por sua vez, acabam por fazer negócio com outras empresas, entre as quais a Companhia San Tat. O desejo de trocar os terrenos da Iec Long por outros continua e os titulares apresentam por mais do uma vez sugestões: primeiro pedem um terreno na ZAPE, que o Executivo rejeita, propondo a troca de um no Pac On. Mas o tamanho inferior leva a que os concessionários desistam da troca e apresentem, em 1997, um projecto de reaproveitamento de todo o terreno da Iec Long: no local querem construir 11 edifícios de habitação e comércio, mas tal não é autorizado pelo Governo. No mesmo ano, em Dezembro, os proprietários voltam a pedir um terreno da Baía de Nossa Senhora da Esperança. No ano seguinte, o Executivo aceita dar três lotes com pouco mais de nove mil metros quadrados e os proprietários não querem. Dedo de Procurador O caso começa a ficar mais complicado quando o herdeiro de um dos proprietários, Kong Tat Choi, passa não só a ser titular de parcelas privadas no terreno da Iec Long, mas é-o também de um outro lote na Taipa. O BT27, na Rua de Fat San e Rua de Bragança, foi concedido em 1989 para a construção de um prédio de habitação. Quatro anos depois, Kong Tat Choi passa o lote à Companhia de Investimento e Fomento Predial Samtoly. Nesse mesmo ano, o Governo aceita uma alteração no plano de aproveitamento desde que a Samtoly pagasse 87 milhões de patacas de prémio adicional. “A Samtoly pagou a primeira prestação, bem como outras três prestações, no entanto recusou-se a pagar a última prestação do prémio vencida em 1995, no valor de 14,1 milhões de patacas.” Um conflito de pagamento leva a que os proprietários da Iec Long peçam ao Governo para ter “em consideração a resolução da disputa no processo da permuta do terreno da Fábrica de Panchões Iec Long”. O conflito dá-se porque os donos de dois lotes ao lado do BT27 pagaram “muito menos” do que a Samtoly para a alteração do projecto. A empresa pede para pagar menos, mas o Governo rejeita e a Samtoly passa ao ataque em tribunal porque não só não viu o preço do prémio do seu terreno reduzir, como não se viu satisfeito o pedido de permuta dos proprietários da Iec Long. E é aqui que entra o Ministério Público (MP). Em 1999, pede às Obras Públicas o processo do BT27 e pede ao organismo que fixe um novo prémio “mais razoável” para a Samtoly, de forma a existir uma conciliação das duas partes. A DSSOPT diz que a empresa pode ser isenta do pagamento da última prestação de 14,1 milhões e ser restituída de 12,5 milhões e, em 2000, o Procurador convoca uma outra reunião onde se decide que, como os donos do BT27 e da Iec Long são os mesmos, a questão passa a ser resolvida no processo de permuta de terrenos da Fábrica. “O Secretário para os Transportes e Obras Públicas aceitou a proposta do Procurador e no processo de negociação sobre a permuta do terreno da Baía de Nossa Senhora da Esperança, além do terreno da Iec Long é tida em consideração a restituição do prémio do Lote BT27”, explica o CCAC. A Samtoly vê a DSSOPT sugerir a restituição de 66 milhões de patacas, contando com o pagamento da última prestação, e o terreno da Iec Long a ser avaliado em 136 milhões. O Secretário concorda e os titulares do terreno da Iec Long e os representantes da Samtoly dizem à DSSOPT que qualquer negociação e assinatura de documentos sobre a permuta do terreno na Baía de Nossa Senhora da Esperança ficaria a cargo da Sociedade de Desenvolvimento Predial Baía da Nossa Senhora da Esperança. É neste contexto que o director da DSSOPT assina em 2001 um acordo para a permuta de um terreno com 152 mil metros quadrados na Taipa, para construção de um complexo turístico e habitacional pela Sociedade. A empresa tem de pagar prémio, mas desse são deduzidos 428 milhões de patacas. Não acaba aqui É no ano seguinte que a Shun Tak entra na história. Em Fevereiro de 2002, a Sociedade da Baía pede a divisão do terreno no local homónimo em duas parcelas: uma delas, a A – com 99 mil metros quadrados – para ser entregue à empresa Shun Tak para a construção de um hotel. O Governo autoriza e a Shun Tak paga 500 milhões de dólares à Sociedade para poder desenvolver o terreno. Mas a Shun Tak não fica satisfeita e, três anos e um requerimento conjunto com a Propriedades Sub F depois, consegue que o Governo ceda à parceira uma área de mais de 18 mil metros quadrados nos NAPE para a construção de um hotel e habitação. Em troca, cede o mesmo espaço ao Governo na parcela A da Baía Nossa Senhora da Esperança. Não chega e, em 2006, a Shun Tak apresenta outro pedido, que não é aceite pelo Executivo: a troca do resto da parcela A, agora com 80 mil metros quadrados, por um terreno no Cotai com 65 mil metros quadrados, para a construção de um casino, hotéis e comércio. O ano passado, depois de ter sido dado a conhecer o caso, alegações de falta de transparência, transferência de interesses e dívidas ocultas do Governo foram imediatamente levantadas. Raimundo do Rosário, Secretário para os Transportes e Obras Públicas, pediu ao CCAC que começasse uma investigação. A conclusão chega agora e não é meiga, sendo que a única empresa que fica com alguma coisa deste negócio é a Shun Tak. “O [acordo] não constitui instrumento legal através do qual o Governo possa conceder ou prometer a concessão de terrenos, face à sua desconformidade com o disposto na antiga Lei de Terras (…) e porque violou o disposto na antiga Lei de Terras, tornando-se assim impossível que se considerem quaisquer efeitos jurídicos relativamente à permuta ou ao compromisso da permuta daquele terreno. Não é possível considerar que o mesmo configure um contrato de concessão legalmente vinculativo. Poderia considerar-se a possibilidade de o [acordo] ser considerado informal na perspectiva da sua natureza jurídica, mas, ainda assim, tal acordo informal dificilmente pode constituir fonte de direitos ou deveres jurídicos, devido à impossível concretização do respectivo objecto”, frisa o CCAC. O organismo aponta o dedo directamente às Obras Públicas, para dizer que a responsabilidade é deles e é “iniludível neste caso”. Diz ainda que o “dever de fundamentação” não foi cumprido pelo Governo em algumas decisões. Por exemplo, a sugestão do procurador na restituição à concessionária do Lote BT27 de mais de 60 milhões, sem qualquer indicação que justificasse esta mudança e o valor do terreno da Fábrica, que passou de 42,4 milhões para 136 milhões “sem fundamentação”. Apesar do terreno na Baía de Nossa Senhora não ter concedido nos termos da lei – o que impedia a Sociedade de dividir o terreno e ceder as parcelas divididas, “os procedimentos da concessão [à Shun Tak] foram realizados em conformidade com o disposto na antiga Lei de Terras. E, ao abrigo do contrato de concessão, a Shun Tak já concluiu o aproveitamento do terreno”, tendo até o hotel entrado já em funcionamento. As caras envolvidas Sociedade de Desenvolvimento Predial Nossa Senhora da Esperança: tem como administradores Sio Tak Hong, membro de Macau no Comité Nacional da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês, presidente-fundador da Associação dos Conterrâneos de Kong Mun de Macau e membro do Conselho Executivo e da Comissão Eleitoral do Chefe do Executivo, e Tat Choi Kong, membro do quadro da Universidade de Macau e da Câmara de Comércio Director das Obras Públicas: Jaime Carion, agora reformado Secretário para os Transportes e Obras Públicas: Ao Man Long, agora preso por 29 anos e meio por corrupção Procurador da RAEM: Ho Chio Meng, agora detido preventivamente, por acusações de corrupção Shun Tak: Pansy Ho Propriedades Sub F: Daisy Ho À espera de mais O Chefe do Executivo, Chui Sai On, já reagiu ao relatório, tendo admitido que já incumbiu entidades de continuar a dar acompanhamento ao caso. Uma dessas entidades é Raimundo do Rosário, que vai perceber os desenvolvimentos advindos da falta de vinculação jurídica da troca dos terrenos. O líder do Governo admite ainda que o CCAC vai agora investigar eventuais indícios criminais, “por exemplo de corrupção ou burla” e põe em cima da mesa a instrução de um processo disciplinar caso “se verifique infracção disciplinar cometida por funcionário público”. A DSSOPT diz apenas estar a fazer uma análise do caso e o HM não conseguiu estabelecer ligação com Jaime Carion, na altura director do organismo. Sobre as eventuais infracções penais neste caso o CCAC diz não ter “nesta fase” quaisquer comentários a fazer. Decisões que pesam O acordo de permuta “não está em conformidade com o disposto na antiga Lei de Terras e, do ponto de vista jurídico, tem por base um objecto impossível. Não é legalmente vinculativo para o Governo, sendo nulo” “O Governo não tem qualquer encargo para com a Sociedade de Baía da Nossa Senhora da Esperança ou quaisquer outras empresas a nível de concessão de terrenos” “Desde a sua celebração em 2001, o [acordo] nunca foi publicado no Boletim Oficial, o que viola a antiga Lei de Terras” Nem o acordo, nem o processo “foram remetidos à Comissão de Terras” “Todas as parcelas da Iec Long são propriedade do Estado” “Uma vez que o terreno na Baía de Nossa Senhora da Esperança não foi concedido nos termos da lei, a Sociedade da Baía da Nossa Senhora da Esperança não podia dividir o terreno e ceder as parcelas divididas. [Mas] os procedimentos da concessão [à Shun Tak] foram realizados em conformidade com o disposto na antiga Lei de Terras. E, ao abrigo do contrato de concessão, Shun Tak já concluiu o aproveitamento do terreno e construiu neste terreno um complexo constituído por um hotel e por uma área residencial, sendo que tal hotel já entrou em funcionamento” IC gasta cinco milhões em conservação que “não devia” O CCAC atira ainda críticas face à conservação da Fábrica de Panchões, que custou aos cofres do Instituto Cultural (IC) mais de cinco milhões de patacas. Para o organismo, as reparações feitas de 2009 a 2015 deveriam ter sido paga pelos proprietários da Iec Long. “Nas acções de conservação da Fábrica, o IC não exerceu de forma plena as competências que o regime jurídico lhe atribui, dando origem a situações de incumprimento da lei e de embaraço. O IC suportou as despesas resultantes de trabalhos de reparação e reordenamento, mas nos documentos disponibilizados pelo IC não se encontra fundamento que justifique o facto de tais despesas terem sido adiantadas pelo IC e também não se constata que o IC tenha cobrado ao ‘proprietário’ o montante de mais de cinco milhões de patacas entretanto despendidos.” O CCAC acrescenta ainda que a abertura do procedimento de classificação da Fábrica como património “é necessária e premente”, até porque já foram feitas as conservações. O organismo critica ainda o IC por não ter pedido quaisquer informações junto dos serviços de Obras Públicas sobre a propriedade da fábrica, ainda que tenha pedido ao proprietário autorização para lá entrar. Cronologia 1950: concedido terreno a Tang Kun Hong e Tang Ming Hong, proprietários da Fábrica 1986: Administração portuguesa declara a rescisão dos contratos 1995: proprietários pedem a permuta entre os terrenos da Iec Long e um terreno situado na ZAPE. Governo não aceita, mas admite dar um terreno no Pac On. Proprietários não querem 1997: proprietários da Iec Long apresentam um projecto de concepção de reaproveitamento de todo o terreno, pretendendo construir 11 edifícios de 42 pisos, destinados a habitação e comércio. Não recebem autorização Dezembro 1997: proprietários pedem novamente permuta do terreno por um da Baía de Nossa Senhora da Esperança 1998: Governo aceita permuta em troca dos direitos e interesses sobre o terreno da Iec Long. Mas a área de 9417 metros quadrados era diferente da fábrica, pelo que não é firmado qualquer acordo 2000: Procurador convoca uma reunião com a DSSOPT onde se decide que, como os donos do BT27 e da Iec Long são os mesmos, a questão é resolvida no processo de permuta de terrenos da Iec Long. O Secretário aceita 2000: Terreno da Iec Long é avaliado em 136 milhões de patacas e é calculado um prémio do terreno de troca. Proposta merece a concordância do Secretário e a DSSOPT continua as negociações Novembro de 2000: os titulares do terreno da Iec Long e os representantes da Samtoly dizem à DSSOPT que qualquer negociação e assinatura de documentos sobre a permuta do terreno na Baía de Nossa Senhora da Esperança ficaria a cargo da Sociedade de Desenvolvimento Predial Baía da Nossa Senhora da Esperança 2001: director da DSSOPT e representante da Sociedade firmam acordo sobre a entrega de um terreno na Baía de Nossa Senhora da Esperança com 152 mil metros quadrados para construção de um complexo turístico e habitacional. A empresa tem de pagar prémio, mas desse são deduzidos 428 milhões de patacas 2002: Sociedade da Baía da Nossa Senhora da Esperança pede ao Governo a divisão do terreno na Baía de Nossa Senhora da Esperança em duas parcelas – uma com 99 mil metros quadrados e outra com 53 mil. A empresa pede ao Governo para autorizar a cedência da maior parcela à Shun Tak, para a construção de um hotel 2002: Governo aceita e a Shun Tak paga 500 milhões de dólares de Hong Kong à Sociedade da Baía da Nossa Senhora da Esperança 2005: Shun Tak e Propriedades Sub F apresentam um pedido de concessão conjunto para um terreno na zona B dos NAPE, com 18.363 metros quadrados, para construir um hotel e residências. Em troca davam parte da sua parcela A do terreno na Baía da Nossa Senhora da Esperança 2006: Governo concede por arrendamento à Propriedades Sub F um terreno com 18.344 metros quadrados nos NAPE. A Shun Tak abdica do mesmo espaço mas na parcela A