Diário (secreto) de Pequim – Outubro de 1977

Pequim, 10 de Outubro de 1977

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]nteontem espectáculo memorável pela companhia de Cantos e Danças Dongfeng (Oriente), no velho Teatro Tianqiao, lá para sul, para os lados do Templo do Céu.
Pleno o aproveitamento político que os camaradas chineses estão a fazer da reaparição, do renascer deste grupo artístico criado em Janeiro de 1962, por proposta de Zhou Enlai, primeiro-ministro, com o objectivo de “estimular e desenvolver a amizade entre o povo chinês e os povos dos países do Terceiro Mundo.”
Estes bailarinos, acrobatas, cantores encheram o palco durante quase três horas com um repertório que incluía temas musicais e danças folclóricas da Ásia, África e América Latina. Tudo muito bem imitado, tudo muito bem conseguido, tudo alegre, colorido e bonito. Dizem-me que nestes anos recentes de políticas e delírios esquerdistas, Jiang Qing, a viúva de Mao e membro principal do “bando dos quatro” terá afirmado que a música deste Grupo de Cantos e Danças “é decadente” e Zhang Chunjiao, outro figurão proeminente do execrável “bando” emitiu a seguinte opinião: “Afinal para que serve este conjunto artístico se eles se limitam a copiar os macacos de África? A dança africana e o rock and roll são uma e a mesma coisa.”
Este Grupo do Oriente reapareceu agora após quase dez anos de silêncio e apresentou um espectáculo de muita qualidade. Os números sucessivos, com inúmeros bailarinos e músicos em palco, mostraram não só o trabalho e as lutas do povo chinês mas também as de outros países. Assisti a cantos e danças do Kampuchea, do Mali, do Peru, da Birmânia, da Argentina, da Etiópia, do Vietname com os chineses bem ataviados e garbosos (até a cara pintaram de negro!) exemplarmente travestidos de gentes das nações do mundo. Foi um ar fresco a soprar na vida cultural tão limitada desta China.
A 1 e 2 de Outubro, feriados nacionais comemorativos da fundação da República Popular da China, tive também o privilégio de assistir em três parques diferentes de Pequim a dezenas e dezenas de espectáculos onde grupos de crianças e actores profissionais representavam, cantavam, dançavam. Muitas vezes a encenação tinha um forte objectivo político, a denúncia e combate ao “bando dos quatros”. Por exemplo, um grupo de crianças bailarinas, quase no final da dança, ia buscar pequenas granadas de mão, em madeira e, ritmando gestos e música, saltavam no ar e lançavam as granadas contra um grande painel com a figura pintada, velha e feia, exactamente da senhora Jiang Qing, quarta mulher de Mao Zedong e cabecilha do “bando dos quatro.”
Libertos do recente despotismo cultural, é verdade que escritores e artistas começam a aparecer um pouco por toda a parte. Do que me vou apercebendo aqui nas conversas com os dezanove camaradas chineses com quem trabalho e a quem ensino português, as diferentes editoras publicam outra vez livros de poesia, romances, teatro de autores que tiveram grande importância na história da moderna literatura, alguns deles muito próximos do Partido Comunista mas proibidos, censurados até há pouco. Homens como Tian Han, Cao Yu, Ai Qing, Mao Dun, Ba Jin.
O velho Mao Zedong indicava justamente que “o antigo deve servir o actual” e assim surgiram agora reedições de algumas das mais importantes obras clássicas da literatura chinesa, como a “Poesia Completa de Li Tai Bai” , e antologias de poemas das dinastia Tang, Song, Yuan, Ming e Qing, ou seja todos os ciclos dinásticos desde 618 a 1911.
Vão também ser reeditadas reproduções de pinturas célebres de diferentes dinastias, e também cópias de quadros de Rembrant. Reapareceram traduções para chinês de peças do teatro clássico grego, algumas comédias e tragédias de Shakespeare, obras de Heinrich Heine, Nicolau Gogol, Balzac e Vítor Hugo. Voltou também a música clássica ocidental. Já se podem comprar partituras e ouvir discos com música de Mozart, Beethoven, Chopin, Bach, etc.
Parece ser assim verdade que, aniquilado o “bando dos quatro” (a linha esquerdista radical de Jiang Qing, Zhang Chunqiao, Wang Honwen e Yao Wenyuan) a literatura, a dança, a música, a arte em geral retomam na China o importante lugar que lhes cabe na construção de uma sociedade mais justa, mais educada, mais fraterna, mais humana, mais livre.

Pequim, 15 de Outubro de 1977

Olha o muro e edifício nunca crido
Que entre um império e outro se edifica,
Certíssimo sinal e conhecido
Da potência real, soberba e rica

Os Lusíadas, canto X, 130

Luís de Camões, em pleno século XVI, dá testemunho da existência do “muro”, da vasta Grande Muralha da China.
Fernão Mendes Pinto dedica-lhe todo o capítulo 95 da Peregrinação e dá-se mesmo ao rigor de explicar:

“Este muro vi eu algumas vezes e o medi, que tem por todo em geral seis braças de alto e quarenta palmos de largo.”

Domingo passado, iluminado por um ameno sol de Outono, foi tempo de viagem curta até ao troço da Grande Muralha da China que passa oitenta quilómetros a norte de Pequim.
Por má estrada, são quase duas horas de caminho. O autocarro chinês, meio decrépito, avança por terras planas nos arredores da capital, com pomares, campos verdes de trigo, milho, sorgo, algodão, mais pequenos rios e lagos onde patinham grandes bandos de patos. Cruzamo-nos com milhares de bicicletas, camiões, carroças e inúmeros grupos de camponeses, indo e vindo da azáfama dos campos. Aqui e acolá umas bandeirolas vermelhas espetadas no terreno indicam grupos de trabalho. Na China, os domingos são dias normais para o labor agrícola, é preciso dar de comer a 900 milhões de almas e este velho império, com um quinto da população mundial, conta apenas com 1/14 avos da terra arável existente no globo.
Chegamos a Changping. Acabou a planície, a estrada começa a subir e a paisagem muda rapidamente. Estamos a entrar no maciço montanhoso, a Grande Muralha não está longe. As montanhas elevam-se abruptas e nuas, como que talhadas a cinzel entre o fundo de vales pedregosos e o céu azul.
O caminho que seguimos foi outrora uma via estratégica. Por aqui, vindos do norte passaram hordas de invasores mongóis que atravessaram a Muralha, conquistaram e governaram a China durante quase um século (dinastia Yuan, 1279-1368). Era também o percurso, o itinerário das caravanas que se dirigiam para norte. Caravanas autênticas de cavalos, camelos, carroças carregadas de “sacos de lã e peles da Mongólia a caminho de Pequim ou transportando volumes de folhas de chá de Tianjin, a caminho de Kiakhta, na fronteira da Sibéria”, (in Mournier, L’Émpire du Milieu, Paris, Plon, 1903).
Esta estrada continua a ser hoje uma importante via de comunicação. O trânsito é intenso, camionetas e camiões, de todos os tipos e formatos, sobem e descem, carregados dos mesmos produtos de outrora mas também de muitos outros. O dia está bonito por isso são incontáveis os autocarros de passageiros apinhados de chineses, que vão, tal como eu, de visita à Grande Muralha. Dizem-me que o troço de Badaling que vamos percorrer chega a receber mais de dez mil visitantes num só dia.
Paralela à estrada, mas do outro lado do estreito vale, segue a via férrea, furando túneis, escondendo-se debaixo das montanhas, reasparecendo, subindo, subindo sempre. Chegamos a uma aldeia chamada Juyongguan, com casas pobres dos camponeses, baixas, com janelas envidraçadas e, à volta, pedaços de terra encravados nos socalcos da montanha. À entrada da aldeia levanta-se um grandioso pórtico em pedra construído em 1345, no período mongol, com baixos relevos representando Buda e com inscrições em seis línguas, chinês, sânscrito, tibetano, mongol, uighur e targut. Nesses tempos recuados a estrada passava sob este pórtico, daí as frases que são uma espécie de encantamentos (dharani, em sânscrito) destinados a viajantes de tão longínquas paragens. Em Juyongguan encontramos ainda trepando pelas encostas um par de muralhas menores, muito destruídas pelos séculos. Trata-se de fortificações recuadas, antes da Grande Muralha que se situa uns dez quilómetros mais para norte.
A estrada continua a subir, as curvas sucedem-se em cotovelos apertados, um comboio avança pachorrentamente a nosso lado, cheio de chineses que espreitam às janelas e procuram, tal como eu, descobrir a Muralha. Mais uma curva, um chiar de travões, uma guinada do volante do autocarro e aí estão os topos das nervuras das montanhas devassados pelo engenho do homem. A Grande Muralha serpenteia um pouco por toda a parte, sobe, desce, volta a subir, flecte em ziguezagues, acompanha os picos e as quebras dos montes.
A construção da Muralha da China iniciou-se no século V antes da nossa era. Durante o período dos Reinos Combatentes (476 a.C.-221 a.C.) alguns príncipes feudais viam as suas terras constantemente invadidas por tribos nómadas vindas do norte. Para assegurar a defesa dos seus territórios, também nas lutas que travavam entre si, mandaram construir extensas muralhas para protecção das fronteiras. Mais tarde, o primeiro imperador da dinastia Qin, que se chamou Qin Shihuang, unificou a China pela primeira vez e deu ordens para se ligarem entre si as muralhas já existentes. Na dinastia Ming (1368-1644) foram construídas novas muralhas para delimitar, com rigor, as fronteiras do império. O resultado foi esta extraordinária obra que se estende por quatro províncias, duas regiões autónomas e dois municípios centrais, a saber, Hebei, Shanxi, Mongólia Interior, Shaanxi, Gansu, Ningxia, Pequim e Tianjin.
(continua)

António Graça de Abreu
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