VozesEspecial 24 de Junho | Tem na únde, Macau-filo? Hoje Macau - 24 Jun 2016 – Tenho trinta, quase quarenta anos de Macau, porque não sou macaense? – Mas … juntas-te à malta? – Huh?… [dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uem subscreve este artigo não é especialista algum, quando muito um mero curioso nestas coisas de Identidade, matéria complexa, nem sempre condensável em escassas páginas. Mas, vamos a isto. Quando me interrogam, “o que é um Macaense”, adopto aquela postura de não a responder directamente, porque assaltar-me-ia invariavelmente a frustração antecipada de quão vã é tentativa de o definir. Ao meu interlocutor limito-me apenas a fazer um paralelismo: “o que é um português?”. Não é uma questão fácil e é por isso que tenho alimentado, através da Associação dos Macaenses, a constante organização de Colóquios sobre esta temática. Como já era de esperar, nunca se vislumbrou conclusão alguma, pois quanto mais se indaga mais dúvidas somam, e talvez por esta razão, alguns dos meus amigos muito simpaticamente até me perguntaram: “Ó Miguel, já encontraste a tua identidade?!” Ela de facto permanece no segredo de Deus que deve estar a rir-se dizendo “Procura, filho, que vais longe, vais!” O paradigma Corresponde à ideia corrente que o Macaense é o euroasiático de ascendência portuguesa e chinesa, nascido em Macau (passe-se o pleonasmo), culturalmente católico, de língua materna portuguesa. A miscigenação continua a ter um peso preponderante nesta matéria. Isto não deixa de ser verdade, na grande maioria dos casos, mas o Macaense vai mais além disto. Não me parece que uma definição o possa conter. Além do mais, a Macau moderna com as novas regras sócio-culturais que o tempo se encarregou de impor. Macau de hoje situa-se numa zona geográfica de grande expansão e de rápido crescimento económico. O Delta do Rio das Pérolas é hoje zona de explosão económica, de uma China que acordou poderosa e imperial, onde se concentram interesses financeiros transnacionais de valores nunca imaginados. Henggin – ou Montanha, se quisermos – afirma-se como plataforma tecnológica do futuro, a que Macau terá de aceder para a sua sobrevivência económica. A nossa cidade, por sua vez, constitui uma importante peça deste “puzzle” destinada a ser o eixo de indústria de jogo da China, embelezada com a sigla “centro de turismo e de lazer”. É também o “rendez-vous” dos Países de Língua Portuguesa, no âmbito de uma ousada e inteligente estratégia económica global da China. E ela é tão impressionantemente pequena que basta usarmos o aplicativo “Google Earth” para assim o reconhecermos. E aí se situa o Macaense actual. Tal como os seus antepassados, com a sina de ter de se adaptar a todos os contextos sócio-culturais a que se sujeita, ele molda-se para fazer parte integrante e tirar o melhor proveito desta nova realidade. Se a estratégia do casamento (com elementos de etnia chinesa), foi importante para a sua afirmação social, a língua torna-se um instrumento que lhe abre as portas para outros horizontes. O Macaense moderno é fluente no Mandarim e no Inglês. Contudo, sem querer menosprezar a língua que deu origem ao seu nome, ele adopta, em relação a ela, uma atitude pragmática: “lamento, mas há outras prioridades.” Por mais cruel e estigmatizante que possa parecer para a susceptibilidade de alguns, ela traduz o instinto de sobrevivência para o Macaense e para a sua prole que resiste em ficar numa cidade, que há muito deixou de ser aquela dos brandos costumes e bairrista dos tempos de outrora. O Macaense actual deixou de ser o mero funcionário público. Ele procura sair de Macau e é licenciado pelas universidades de toda a parte do mundo. Os que regressam à terra natal, trazem outros valores, outras visões da vida. Ele é hoje um profissional livre, um realizador de cinema, gestor de títulos, estilista, mestre e doutor. Ele está “por dentro” desta Macau nova até esta o pode levar. Novos veículos de comunicação foram adoptados. Porém. reagem os da “velha” guarda e de forma nem sempre simpática. “Acabaram-se os macaenses! “, clamam uns. “Se eles não falam Português como podem ser macaenses?”, bradam outros. “E os seus filhos que estudam nas escolas chinesas e internacionais?” e outras interrogações semelhantes, todas elas legítmas não cessam de se fazerem ouvir nos Colóquios sobre a Identidade. E porque “teriam” de o falar para serem Macaenses? A aceitar isso como verdade, teriamos que rejeitar essa condição a tantos outros que estão na Diáspora, para os quais a língua de Pessanha não faz parte do seu dia-a-dia. Todavia, nenhum dos “degenerados” deixa de se sentir Macaense. “I am Macau-Filo”, “Ngó hai Tou sang (sou macaense)”, “Me? Macau-Chai”. E o tom é de ostensivo orgulho. O que pode estar por trás disso? A diferença como ponto de partida. Macau e a Portugalidade Sem pretender um tom de autoridade, julgo que tentar explicar o Macaense através da enumeração das suas características palpáveis, provou que não levaria a sítio algum por ser manifestamente insuficiente. E porque não inverter o processo através da diferença. A diferença aqui, não no sentido discriminatório, nem de qualquer complexo, mas apenas como: O que temos de diferente em relação a outras comunidades e povos? Ao tentar responder a isso, vejo o forte laço de pertença a Macau. Não apenas aquela minúscula terra no Sul da China, mas também e sobretudo o espaço cultural específico que representa, feito de memória, tradições, História e histórias, noção de família, vivências, relatos, registos, transmitidos de geração em geração. Um Macau de contrastes e de povos que se mesclam, que se entendem numa linguagem comum. E vejo algo mais. Este laço de pertença é especial, pois vai-nos remeter por sua vez para um espaço ainda mais global (civilizacional), que explica a nossa ascendência, como povo “sui generis” neste sudeste asiático. A Portugalidade é um palavrão inventado para designar muitos fenómenos identitários que têm por base a noção de pertença a Portugal. Mas ela nada tem, necessariamente, a ver com a nacionalidade ou a língua portuguesas, enquanto tais, ainda que ambos sejam importantes para a sua afirmação. Mas é ela que justifica por que certas pessoas – e não são poucos neste mundo – são portuguesas… sem o serem juridicamente. Linguisticamente. A Portugalidade explica a génese de Macau do Macaense, pelo périplo português que deixou aqui sementes que germinaram uma cultura diferente – de Portugal e da China – cultura de uma comunidade singular. Ser Macaense é ter esta noção de diferença pela sua ligação a este mundo global, através do seu nome e da sua ancestralidade, ainda que não fale mais português, ainda que para si Portugal seja apenas CR7 e Benfica. Quando um Macaense diz “nossa Malta”, “nos-sa genti” ou “we Macaista” ele fá-lo com orgulho, porque sem ele querer, ele exprime este duplo legado que o torna diferente da imensidão de gente que o circunda, nesta absorvente China Nova. E que interesse tem isto tudo? Tem. Ele dá-nos alento para continuar. Miguel de Senna Fernandes