Especial 24 de Junho | Carlos Marreiros: “Nunca existiu união na comunidade macaense”

O Dia da Cidade poderá um dia ser feriado, mas agora não é uma questão fundamental. Carlos Marreiros faz a radiografia à sua própria comunidade e defende que os jovens macaenses têm melhor formação, mas devem ser mais activos. Para o arquitecto, a saída dos macaenses da Função Pública está longe de ser uma tragédia

A questão da casa-museu macaense é um projecto que está parado. É um projecto ao qual se pretende regressar?
Temos uma proposta muito detalhada. Há um conjunto do espólio e o museu que serão instalados em duas casas no bairro de São Lázaro, projectadas em 1903 e que estão parcialmente em ruínas. Existe um estudo de viabilidade e uma estimativa de custos, de construção, decoração, criação do museu e aquisição de espólio.

Porque é que ainda não se avançou?
Esse projecto foi apresentado às entidades competentes há uns anos e em condições muito favoráveis para o Governo. A Santa Casa da Misericórdia (SCM) deseja utilizar uma proposta deste espaço para a cedência do museu para 25 anos. Houve expressa vontade de alguns governantes que consideraram muito positiva esta iniciativa que até teria uma parte educativa muito importante. Mas vai o diabo entender, passaram estes anos todos, e nada. A SCM nem sequer teve uma resposta formal sobre isto. Parece que a prática corrente é que as pessoas pura e simplesmente ficam sem resposta.

Vão continuar a insistir?
Eu não vou porque não tenho argumentos para insistir. A SCM, que eu saiba, está um bocado desmoralizada, porque os anos passam, o edifício vai-se deteriorando, as pessoas morrem e depois o projecto já não é válido e precisa de ser remodelado, e isso custa dinheiro.

Considera que este é um exemplo da falta de preservação da cultura macaense que existe por parte das autoridades?
Considero, porque tirando o museu de Macau, na Fortaleza do Monte, é algo que existe sempre no discurso político, mas depois na prática não se verifica. Macau precisa de diversificar. O Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura acabou de inaugurar aquele espaço junto aos lagos Nam Van. Vai fazer também um projecto junto às Casas-Museu da Taipa, mas mais virado para a cultura portuguesa. Eu aplaudo essas iniciativas, mas são iniciativas do foro cultural recreativo e do consumismo. Há falta de museus em Macau e temos de criar bons museus na zona.

Pode dar exemplos?
Temos de pensar naquilo em que somos bons. Compreendemos que temos uma história rica, e não é por acaso que figuras como Camilo Pessanha ou Sun Yat-Sen escolheram Macau. Sun Yat-Sen, que tanto agrada aos chineses por ser o pai da modernidade chinesa, e aos europeus, que o aceitam como um grande reformador e estadista. É uma figura de primeiro plano e internacional com ligação a Macau, e teve ligações provadas com macaenses como Hermenegildo Fernandes. Teve fortes relações com o Camilo Pessanha também. O Governo ou quem de direito não faz estas investigações , não sabe explorar o potencial que é fazer um grande museu sobre o Sun Yat-Sen e a sua ligação com Pessanha, com Vicente Jorge e Francisco Hermenegildo Fernandes. Se este museu, centrado em Sun Yat-sen e nestas personalidades, for bem feito, tem potencial de atractivo internacional, muito mais do que as coisas que aqui têm sido feitas. Se em várias coisas somos os melhores do mundo, porquê contentarmo-nos em sermos o melhor do mundo na jogatana e nos casinos? Eu não me contento. Devíamos pensar num branding em termos de figuras como Sun-Yat Sen e Camilo Pessanha, porque a indústria do souvenir é paupérrima. Agora fala-se muito na questão dos estaleiros de Lai Chi Vun. Fico muito feliz porque a população e o Governo estão a tomar atenção sobre aquele sítio.

Mas não será porque os estaleiros estão prestes a cair e é uma situação urgente? Caso contrário talvez nada fosse feito.
Em Macau é perigoso ser-se avançado. Nunca somos compreendidos, e isto não é um pretensiosismo meu. No estrangeiro quem tem ideias avançadas é reconhecido e apoiado, em Macau é maltratado. É melhor ser mais vulgar. As pessoas estão preocupadas, e é certo que aquilo está prestes a cair. Sabemos que a associação dos moradores está insatisfeita e querem manifestar-se. O Governo deveria criar um grupo privado, com locais, para fazer um levantamento aprofundado e pensar num museu para lá.

Mas o Governo afirma que já foram feitos estudos.
Não está feito nenhum estudo. Sou membro do Compasso Volante, um concurso internacional de estudantes de arquitectura de todo o mundo, organizado pelo Instituto Politécnico de Milão. Em Macau eu e o José Sales Marques somos membros do júri. Em Macau foi escolhida, por duas vezes, a povoação de Lai Chi Vun, houve prémios, fizemos duas exposições. Fizemos estudos, propusemos ao Governo, não há resposta. Há uma parte para viabilizar a construção, para construir e ganhar dinheiro.

Com habitação?
Construção de residências de luxo, com apenas três andares, integradas na colina. Fazer uma pequena marina e um museu, incluindo uma super cobertura integrada com a actual estrutura dos estaleiros. A iniciativa privada fazia as suas contas, o Governo adquiria isto e geria-o.

O Governo não faz, mas também não deixa fazer?
O actual Chefe do Executivo pode agradecer a sua fortuna porque tem cinco super secretários que dão o corpo ao manifesto e abrem o peito para receber as balas. Edmund Ho não teve o luxo de ter Secretários dessa qualidade. Não percebo porque é que o Governo continua a andar ao passo de uma tartaruga cega, surda e com as quatro patas coxas. Aliás, ultimamente com algumas iniciativas até deram tiros no próprio pé.

Voltando à preservação da cultura macaense. As autoridades estão a falhar, ou a própria comunidade também está?
Ambas. Cabe ao Governo a liderança, mas cabe à sociedade privada a iniciativa. Que eu saiba nenhuma das instituições macaenses propôs um museu. Mais uma vez a SCM foi pioneira em fazer um núcleo museológico na actual sede, pois é a maior representante da comunidade macaense, com 450 anos de existência. As outras associações contribuem, mas quem tem autoridade para falar em nome de todos os macaenses é a SCM.

Hoje celebra-se o Dia da Cidade. É uma data esquecida? Deveria ser feriado novamente, ou deveríamos recordar o dia de outra forma?
Feriado acho que não, porque é um dia que diz apenas respeito à comunidade macaense. Caso contrário teríamos de ter um dia da comunidade de Fujian ou de Cantão. Hoje temos um arraial que em boa hora começou a ser organizado pela Associação dos Macaenses (ADM) e Casa de Portugal em Macau (CPM). Quem me dera poder contribuir mais com o Albergue SCM para o festival popular. marreiros.1.sofiamota

Porque é que não o faz?
Não tenho meios. Mas não é contribuir com sardinhas, mas com um estudo aprofundado e edição de livros sobre este dia. Não tenho qualquer complexo em dizer que este não tem de ser um dia oficial, porque há o dia oficial da existência da RAEM. Macau, Cidade nome de Deus, é passado. Agora a comunidade pode continuar com isso e um dia, se se justificar, também possa ser um feriado. Para já acho que não tem importância.

O Governo iria acolher bem essa ideia, de ser feriado um dia?
No futuro, porque não? É uma parte da comunidade, mas o Governo teria de pensar nas outras comunidades que também têm relevância em Macau, como os filipinos, que festejam o seu dia nacional, ou os birmaneses. Não têm feriado, mas eles festejam. A ADM e a CPM são os vértices desta actividade e devem continuar por muito tempo, até porque o Governo apoia.

Os macaenses têm de se unir para voltar a ter poder na cultura, na política, o poder de decidir em Macau?
Sei que sou irritante porque ponho o dedo na ferida. Os macaenses têm de ser mais activos e os portugueses também, porque é o segundo sistema. Em 450 anos nunca existiu união na comunidade macaense, porque é que ia existir agora? A comunidade já provou em momentos importantes do passado, quando a sua soberania estava em causa, que a sua união é importante. Quem é que veio a favor da casa-museu macaense? Os jornais e houve três pessoas que falaram: o provedor da SCM, eu e o Pedro Barreiros. Quem mais veio da comunidade macaense e portuguesa? Ninguém. Falar tem consequências, a verdade dói. Pessoas como nós, estas três pessoas que disse, sofremos represálias. Na prática depois há auto-censura por parte de serviços.

Pode dar exemplos?
Não vou dar exemplos, mas quem está calado está melhor. Macau é uma feira de vaidades e as carpideiras e os talibãs funcionam.

Falando na presença na Função Pública e na AL, é mais importante essa união?
Não temos a força motriz da sociedade para eleger por sufrágio directo. Mas essa é uma realidade que vem desde o 25 de Abril. Quanto à Função Pública, os jovens macaenses estão hoje mais bem preparados. Mas têm de sair, intervir. O macaense naturalmente vai a pouco e pouco sair da Função Pública e isso é um fenómeno natural, e quem não encara isso de frente está a errar.marreiros.3.sofiamota

Não deve ser visto como uma tragédia.
Antes pelo contrário. Para o macaense poder criticar e ser independente tem que ter poder de compra e para isso tem de ser patrão dele próprio e não pode ter o Governo como patrão. O problema da comunidade macaense no passado era esse.

Coloane | “Planos do passado estão ultrapassados”

Carlos Marreiros diz não compreender como é que, 16 anos depois da criação da RAEM, Coloane continua sem um plano urbanístico. Marreiros defende a manutenção do pulmão verde mas com uma construção organizada, focada para os idosos, crianças e turismo de saúde.
“O plano feito por Manuel Vicente está ultrapassado. Os planos do passado estão ultrapassados. Têm, no máximo, cinco anos de validade no mundo, em Macau têm no máximo dois. É preciso fazer um Plano Director porque é inacreditável que 17 anos depois não haja um plano para Macau e as Ilhas. Fazer o plano de urbanização das ilhas, que significa construir, mas não alto, denso, mau e feio. As Ilhas devem continuar a ser os pulmões verdes da RAEM. Deve-se construir com rigor, uma construção de baixa densidade e focada nos equipamentos sociais”, disse o arquitecto, que pede uma aposta ecológica no fornecimento de água para esta zona e construção de jardins nos terraços. Quanto aos prédios altos, devem ir para os novos aterros, aponta.

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