Único museu do país dedicado à Revolução Cultural silenciado

Em 2005, Pen Qian, um antigo ajudante do presidente da câmara de Shantou, ao saber que muitas das vítimas dos linchamentos dos guardas revolucionários foram enterrados na zona, construiu o museu. Ao reformar-se entregou a gestão ao governo. Agora foi tapado por cartazes de propaganda comunista e, no local, polícias à paisana disfarçados de turistas, impedem a imprensa de fotografar e filmar e interrogam os jornalistas que se aproximam

[dropcap style=’circle’]S[/droopcap]ituado numa montanha nos arredores da cidade de Shantou está o único museu da China que presta homenagem às vítimas da Revolução Cultural (1966-1976), um local que neste ano, quando o início do movimento completa 50 anos, foi silenciado e passou a correr perigo.
Não é tarefa simples chegar ao museu. Os guias de viagens poucas informações dão e não há placas indicativas ao longo da estrada que leva ao Tashan Park, um parque natural de espessa vegetação onde está o memorial. Para passar despercebido, o museu tem aspecto de templo tradicional, embora nem muros ou lápides mostrem imagens budistas, mas sim os nomes de mais de 300 pessoas acusadas de serem “contra-revolucionários” durante os anos 60 e 70.
Logo na está uma estátua e um retrato, respectivamente, de Yu Xiqu, um prestigiado juiz local que sofreu, como outros aí mencionados, graves abusos por parte dos guardas vermelhos.
A 16 de Maio deste ano foi comemorado, com quase total silêncio da imprensa oficial e das instituições, o 50º aniversário do início daquele período turbulento e, desde então, todo o museu foi tapado por cartazes de propaganda comunista.
Na entrada, sobre o cartaz que indica que ali fica o museu é possível ler outro que diz “Acto de promoção dos valores nucleares do socialismo”. Alusões ao “Sonho Chinês”, o mantra ideológico do actual presidente Xi Jinping, repetem-se nas paredes forradas de cartazes, decoradas com foices e martelos e imagens da porta da Praça da Paz Celestial.
Não é fácil observar outros detalhes, já que polícias à paisana, que se fazem passar por turistas, tentam impedir a imprensa de fotografar e filmar o lugar, e interrogam os jornalistas que se aproximam.

Existir é milagre

O museu foi construído em 2005 e é quase um milagre continuar de pé mais de dez anos depois, tendo em conta que, embora o governo chinês reconheça oficialmente, após a morte de Mao Tsé-tung, que a Revolução Cultural foi um erro, evite relembrá-lo publicamente e, menos ainda, citar as vítimas concretas. Neste caso, foi um líder comunista local que decidiu criar o museu. Peng Qian, um antigo ajudante do presidente da câmara de Shantou, construiu o espaço e foi o que, possivelmente, salvou a estrutura de ser demolida.
Contou Peng que decidiu criar um lugar para homenagear um assunto tão delicado na China, após ficar a saber que muitas das vítimas dos linchamentos dos guardas revolucionários foram enterradas na Montanha Pagoda.
Nos primeiros anos de funcionamento, o museu chegou a atrair uma certa atenção dos média, e até recebeu doações milionárias para a sua manutenção. Todavia, em 2014, pouco antes de se aposentar, Peng cedeu a gestão ao governo, o que fez com que este caísse no esquecimento e que, nas últimas semanas, viesse a ser presa da censura.

É melhor esquecer

Shantou, um dos principais portos do sul da China, está a mais de dois mil quilómetros de Pequim, o epicentro da Revolução Cultural, mas a distância não a livrou, como ao resto do país, dos excessos da época, na qual milhões de pessoas foram indiscriminadamente perseguidas. Embora a Revolução Cultural seja tema de livros e filmes na China – o facto de que quase toda a população do país naquela época tenha sofrido dificulta a censura total – o Museu de Shantou é o único dedicado integralmente a este período.
Existe pelo menos outro museu no país que menciona o período de terror dos guardas vermelhos, o de Jianchuan (centro do país), mas não está dedicado de forma exclusiva a esta matéria, e dá uma imagem neutra ao facto histórico, sem mencionar as vítimas.
Apesar do silêncio no aniversário de 16 de Maio, o jornal oficial do Partido Comunista, “Diário do Povo”, que possui uma versão online em português, publicou no dia seguinte um editorial admitindo que a Revolução Cultural foi “um caos interno que trouxe enormes catástrofes” e aventurou-se mesmo a dizer que nunca se repetirá.

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