VozesAi de mim, que sou orgulhoso Leocardo - 19 Mai 2016 [dropcap style=’circle’]Q[/dropcap]uanto mais anos me demoro por Macau – e tenho como quase garantido que estou aqui “radicado” – vou ficando cada vez mais chocado com o que vejo passar-se em Portugal, local onde me foi afixada a etiqueta de origem. O mesmo se passa cada vez que lá vou, e os intervalos de tempo em que isto acontece vão-se tornando maiores, também. Verdade seja dita, da última vez que lá estive deu-me mesmo a sensação que estaria…NUM PAÍS ESTRANGEIRO! UAH! AH! AH! Fora de brincadeiras, falando a sério. Não sei se acontece o mesmo com o leitor, mas aposto que pelo menos lhe saltam à vista algumas diferenças, nomeadamente no “toque”. Os empregados dos cafés, pastelarias e afins, por exemplo, e aproveito para abrir uma excepção para aqueles da restauração (pelo menos alguma), que na sua maioria são educados e respeitadores. Agora pensem como é aqui em Macau, quando vão lá tomar a bica e são atendidos pela “pina” da ordem, que vos pergunta quase a cantarolar “what do you wish, sir? ”. Mesmo que não tenha muito jeito para tirar cafés da máquina, ou traga a garrafa de água mineral já aberta para a mesa, a gente dá-lhe um desconto, lá está, pelo menos somos tratados como todo o Zé Pagante devia ser. Enquanto isso, em Portugal, não são raras as vezes que batemos de frente com um pinguim de avental, de mal com a vida, quem em alternativa a servir-nos, opta antes por nos “aturar”: – “Então vai ser o quê, diga lá”. – “Queria um folhado de salsicha, um sumol de…tem Sumol de limão”. – “O que temos é o que está à vista, e despache-se que não tenho o dia todo”. – “Ok, pronto, traga-me antes um copo de água”. – “Copos de água não temos, só copos com água. Nhe, nhe, nhe”. Nunca se cansam desta piada fatela, estes tristes, e nem vale a pena explicar que aqui “um copo de água” é entendido como uma medida. Deixem lá, é exactamente por ser assim que o gajo anda ali a fazer figura de imbecil. E não é só nos cafés, é claro, pois em quase tudo no dia-a-dia lá no “rectângulo” dou comigo de queixo caído de perplexidade, e acho que para me tornar num copinho de leite, tipo lorde inglês, já só me falta mesmo puxar de um monóculo e exclamar num carreegado sotaque “british”: “Say, I’d never”! Já vos contei aquela que me aconteceu uma vez no mini-mercado ao pé de casa? Fui comprar umas bebidas e uns “snacks”, e enquanto esperava pelo troco fui metendo os itens dentro dos sacos de plástico ao pé da caixa, quando de repente, e quando nada o fazia prever, fui interrompido pela jovem caixista, que num misto de raiva e dores nos joanetes, arranca-me um dos sacos da mão e urra: “os sacos de plástico são 10 cêntimos cada!”. Que diabo, vejam lá, que venho eu de tão longe para roubar sacos de plástico, e nem a esse pequeno “plaisir” tenho direito. É o que dá, tantos anos a viver aqui, onde no início a passividade dos indígenas também nos causa alguma estranheza, dando-nos mesmo para sussurrar “inter pares” que os tipos de cá “têm sangue de barata”. E agora nós também, e se que lhe quiserem chamar isso, tudo bem, porreiro, eu antes prefiro pensar que cheguei aqui com uma casca dura, que depois de uma temporada de molho, foi cuidadosamente escamada e substituída por uma outra. De seda. Sim, claro, modéstia à parte, porque não? Ainda no outro dia assisti num daqueles enlatados que a nossa RTP teima em pensar que “os emigrantes adoram”, a uma reportagem sobre um festival qualquer em Oliveira de Azeméis. Um festival qualquer mesmo, não me perguntem qual, pois o que me chamou a atenção mesmo foi a velocidade com que os populares se embruteciam ao ponto da humilhação quando se apercebiam da presença da televisão, acotovelando-se para se chegarem à frente e “mandar beijinhos”. Se fosse para alguém longe, especialmente no estrangeiro, desatavam a chorar, a babar-se, em suma, não havia um fundo onde bater – era para a desgraça. E ai da jornalista (coitada…) que ignorasse um dos “beijoqueiros televisivos”, e não se pense que eram só senhoras de idade. Era um autêntico “tutti-frutti” rústico, como se aquela fosse a única oportunidade em toda uma vida para granjear os tais 15 minutos de fama de que Warhol falava. Sim, pela segunda semana consecutiva faço uma referência a Andy Warhol. Não estou com isto a renegar as minhas raízes, a trair a Pátria ou seja lá o que for que estão aí a pensar. Estou radicado, apenas, lembram-se? Sim, é grave e não tem cura, que tal terem pena de mim? Na verdade penso que os portugueses, e claro que não me excluo do lote, são um povo “orgulhoso”, se nos quisermos descrever numa palavra apenas. Mas a grande dúvida que subsiste é esta: orgulhoso, do quê, afinal?