Eventos MancheteMatilde Campilho, poeta: “A escrita tem muitos caminhos” Andreia Sofia Silva - 24 Mar 201628 Mar 2016 Com “Jóquei”, Matilde Campilho fez uma revolução na poesia e na sua própria vida. Dois anos depois da sua publicação, a poeta portuguesa vive com um pé entre a sua Lisboa e o Rio de Janeiro que a levou a escrever. Assume que tem de se distanciar do seu primeiro livro e todos os dias rabisca palavras, mas não sabe sequer se vai publicar novamente. “Não tenho pressa nenhuma”, assegura Comecemos por “Jóquei”. Mudou imenso a sua vida. Alguma vez pensou que o livro teria este impacto? Não, o livro mudou absolutamente tudo. Nunca pensei que teria este impacto, porque o primeiro livro fazemo-lo sem pensar sequer em publicar. É boa a inocência do primeiro livro e se calhar nunca há mais nenhum como esse, fazemos porque temos de o fazer, porque é o nosso trabalho. Mas tudo o que surgiu depois disso foi completamente inesperado. O que fazia nessa altura para além de escrever poesia? Tive vários empregos, antes de me dedicar só à escrita. Digo sempre que a escrita é o meu trabalho mas tenho muitos empregos. Antes do livro, antes de me focar só nisso, desde que saí da faculdade, trabalhei sobretudo em televisão e em publicidade, mas sempre muito ligada à escrita e à parte criativa. O que a levou a ir para o Rio de Janeiro? Quando acabei o curso fui viver para Madrid, fiquei lá uns anos, e depois decidi voltar para Portugal, porque Madrid não tinha mar e isso dava-me uma certa angústia. Mas ao fim de um ano já estava meio inquieta e decidi ir ver o Rio de Janeiro, do qual toda a gente me falava. Tinha um bocadinho de medo de querer ficar e não estava pronta para ficar em lado nenhum ainda. Mas foi isso que aconteceu, fui para ficar 15 dias e fiquei três anos. E depois disso nunca mais parei de ir e vir. Já vivo em Lisboa há dois anos mas continuo a ir muitas vezes ao Rio de Janeiro, é muito casa. O Brasil mudou a sua percepção de escrita? Sem dúvida. Em parte por eu ser estrangeira. E já tinha isso em mim, o facto de ser estrangeira num lugar tão distante. Apesar de parecer tão semelhante, é distante fisicamente e em muitas coisas: gestos no dia-a-dia… e quando somos estrangeiros estamos mais atentos, por um lado, às coisas pequenas e mais focados no que somos. Por um lado há mais espanto e novidade, mas por outro há mais silêncio por dentro, porque não temos os gestos e amigos habituais. Houve um conjunto de circunstâncias que me levaram a focar naquilo que se tornou no meu eixo. Escreve poesia de forma diferente, usando três linguagens diferentes. Acredita que trouxe algo novo à forma como se pode escrever poesia? Não sei, é difícil para mim ser tão crítica de mim mesma. Fiz o que pude e o que consegui fazer. Acho que ajudou o facto de ser estrangeira e de não estar ligada a nenhum grupo, porque hoje em dia, apesar de ser menos visível, continua a haver nas cidades grupos de gente que escreve e acaba muitas vezes por usar o mesmo tipo de linguagem, mesmo ao nível das artes plásticas. E eu estava a fazer o caminho mais sozinha, mas por outro lado estava a receber influências de vários lugares diferentes. E talvez tenha sido isso que levou a que a voz poética seja tão misturada com tantas coisas e lugares e dialécticas. É uma grande mistura de muita coisa que já existia. Essa mistura de linguagens, do Português de Portugal, do Brasil e do Inglês, surgiu espontaneamente? Surgiu disso, das influências dos vários lugares, dos poetas portugueses, dos meus poetas, dos escritores brasileiros, da América Latina, com os quais eu começava a tomar muito contacto. Ao mesmo tempo começava a ler os norte-americanos e os ingleses e tudo isso se misturou tudo neste livro (“Jóquei”). Foi quase como se nos sentássemos todos à mesa e eu os tivesse chamado para conversar. Há inclusivamente um poema que faz referência a Walt Whitman. Mas que outros nomes, portugueses ou brasileiros, a inspiram para escrever, ou que são uma referência? A pergunta das referências é sempre complicada porque, primeiro, as minhas influências agora talvez já não sejam as mesmas, porque este livro, na verdade, já o publiquei em 2014 e já estava terminado em 2013. Já passaram esses anos, e trabalho todos os dias, e as influências mudam muito. Há umas muito firmes. Volto sempre ao [T.S.] Elliot, [Walt] Whitman e há poetas portugueses que andam sempre no meu bolso, como o Rui Belo, o António Franco Alexandre, o Fernando Assis Pacheco, o Mário Cesariny. Depois na minha geração há gente a fazer coisas boas, os contemporâneos. Só que isso é um fluxo contínuo, há uns que ficam e aos quais voltamos sempre, mas há outros em que já estamos diferentes e eles dizem-nos outras coisas. Mas continua, por outro lado, a existir a influência da rua. Estou aqui, na Ásia, e tudo isto me influencia, ainda ontem fiz uns rabiscos sobre as luzes dos casinos. Ainda são só notas, mas a influência da rua é talvez a mais importante. Macau será então uma influência para o próximo livro ou, pelo menos, para alguns poemas. Não faço ideia, está a ser influência no hoje, no agora, mas o que isso vai dar em termos de poesia feita e fechada, não sei. Às vezes pode até ser invisível, porque quando falo em influência da rua, muitas vezes as referências não são assim tão claras. Posso ter Macau no meu subconsciente e sair um poema sobre uma praça em Lisboa. Uma das críticas publicadas no livro diz que “Jóquei” é um álbum de Verão. A sua poesia é leve, fala do amor mas não de uma forma pesada, por exemplo. Concorda? Acho que é um livro que tem várias camadas e talvez a primeira que se veja seja essa, das bofetadas da alegria. Mas na verdade mesmo quando um poema termina com a palavra alegria, para chegar até ali muitas vezes passa por cavernas de breu. A questão é o que queremos apresentar no “big picture”. Escolhi apresentar-me no livro de uma maneira mais luminosa, não deixando de dizer toda a escuridão que foi preciso atravessar para chegar ao fim dele. Como a vida mesmo. No dia-a-dia a vida acontece-nos, a maneira como reagimos às coisas somos nós que decidimos. Isso foram todas decisões, de ir pela via mais suave, mas sem esquecer tudo o resto. Porquê o nome “Jóquei”? Essa vai ser uma resposta muito longa. Foi difícil chegar ao nome do livro, porque acompanhou-me durante muito tempo e teve nomes muito diferentes. Foi como aqueles nove meses em que uma mãe conversa com o pai para decidir o nome do bebé. Sabia que seria o nome que o iria acompanhar para sempre, porque é o meu primeiro livro. Mas tudo isso antes de publicar, eu queria dar um nome aquilo que estava a fazer. Há várias razões para se ter chamado “Jóquei”. Uma vez estava a falar com um amigo sobre um poema americano que falava de um cavalo e fiquei com aquilo na cabeça. Nem há referências a cavalos nesse livro. A outra razão é que há um jóquei no Rio de Janeiro e outro em Lisboa, um Jóquei clube, também há aqui. Gostava muito do jóquei clube do Rio de Janeiro, passei muito tempo sentada naquelas bancadas vazias a ver aquelas montanhas. Depois há uma explicação mais longa e foi essa que me levou a decidir “ok, é isto”. O Jóquei, que monta o cavalo, na minha ideia quando começa a correr é para ganhar. E com o tempo, quanto mais corridas se fazem, vamo-nos apaixonando pelo cavalo e não por vencer ou perder, mas sim pelo correr. E então a poesia acaba por ser um cavalo. Apaixonei-me pela poesia, pelo cavalo, e a questão já não era só ganhar ou perder, mas fazer a corrida. Como são os seus rituais de escrita? A escrita tem muitos caminhos. Tenho estado aqui e tenho tirado muitas notas, no telefone, num guardanapo. Tenho um ritmo de trabalho que implica acordar de manhã, às sete da manhã, beber café, ficar a ler e começar a escrever uma ou duas horas depois. Sendo que há a influência da rua e de dentro, nos livros, é depois à mesa que isso se mistura. O exercício de escrita, com o tempo, revelou-se uma questão de limpeza e não de acrescentar. Tirando, tirando, até ficar só aquilo. É uma poesia mais trabalhada. Por outro lado já fiz poemas inteiros na rua que é aquilo e está fechado. Mas isso é mais raro. Decerto já está a trabalhar no segundo livro? Como é que será? Não faço ideia, nem sei se estou a trabalhar para o segundo livro. Escrevo, mas não faço ideia quando haverá o livro. Pode não haver? Por enquanto estou só a viver e a trabalhar, é cedo ainda. Preciso de me distanciar um pouco mais dele, a minha voz mudou muito nos últimos anos, está a mudar muito, e assim como demorei muito até fechar este livre e sendo que a minha vida mudou tanto depois dele… Tem que se separar de “Jóquei” para seguir em frente. Não só de “Jóquei”. A minha linguagem mudou, a minha escrita, o meu tipo de vida. Até encontrar de novo uma voz que eu diga “ok, és tu” vou continuar a trabalhar. Não tenho pressa nenhuma. O facto de ser o primeiro livro não ajudou ainda a definir essa voz? A nossa voz muda muito, todos os dias. Mesmo quem não escreve… estamos em constante mutação. Os temas são outros, a maneira de viver é outra, e estou a fazer as coisas muito devagar.