Que estamos nós aqui a fazer, tão longe de casa? 5- Ele

* por José Drummond

[dropcap style=’circle’]P[/dropcap]or onde ficaste? Por onde andas? Por onde tenho eu saudades tuas? Consome-me este espaço em que me sinto a perder-te cada vez mais. Este espaço onde não reconheço a memória. Este espaço onde não reconheço a palpitação das coisas. Não sei o que te disse que tudo alterou. Onde estava que nada fiz? Nada mais que estar perto e longe, e amedrontar-me, e desaparecer sozinho na escuridão da noite. E desaparecer sozinho no nevoeiro da manhã. Sozinho. E agora? Onde estou que me preparo para um perigo muito maior? O perigo de me abandonar a este espaço. De me abandonar neste espaço. Este espaço onde o oxigénio carece. Onde tudo se transforma em limbo. Este espaço onde não reconheço a palpitação das coisas. Eu! Um eu qualquer que realmente não quero reconhecer. Um eu, em que, no qual, infelizmente, não posso pensar. Um eu qualquer. Um eu que não tem objectivo. Um eu que não se oferece. Que não tem corpo. Que não se indemniza. Que não é tangível. Atentamente eu. Atentamente eu. Desatentamente eu.

Por onde ficaste? Por onde andas? Naquele café em Viena enquanto nos deliciámos com bolo de chocolate? Naquela banco de jardim em Budapeste onde nos perdemos e nos encontrámos? Naquela praça em Praga onde o relógio da igreja tocou nove badaladas e as minhas palavras fizeram correr uma lágrima no teu rosto? Naquela praça em Praga onde ao mesmo tempo me disseste que estavas triste? Por onde ficaste? Por onde andas? Porque te quero tanto? A ilusão é jovem e imortaliza-se. Não é errado iludirmo-nos. É assim como uma bomba. É assim como uma explosão. Aquela explosão que recordamos sempre com nome de romance. Aquele romance que tão bem ilustra a impossibilidade do amor. Aquele romance que me faz pensar em nós. É assim e aos trinta e quatro anos és linda. Na verdade. É assim e és linda qualquer que seja a tua idade. Espera. Deixa-me dizer-te agora. Calmamente. Amo-te. Amo-te como nunca pensei. Amo-te até ao ponto de ser incapaz de te tirar retratos. Amo-te até ao ponto de fazer auto-retratos. Eu? O que significa isso afinal? Eu isto e eu aquilo. Quantos eus tem um eu? O eu do café em Viena é diferente do eu naquela rua em Budapeste e diferente daquela praça em Praga. Um eu dissemelhante? Um eu mesmo? Que eu fiz eu? Eu sei que sou um eu melhor quando estou contigo. Contigo sou um eu como o eu naquela canção do Lou Reed. “Just a perfect day/You made me forget myself/I thought I was/Someone else, someone good.

Mas deixa-me perguntar-te de novo por onde ficaste? Por onde andas? Deixa-me dizer-te de novo que fugi porque tenho medo de mim. Porque vejo em mim todos os tipos de fealdade. Porque quando tu visses o que eu vejo em mim irias ser tu a ir-te embora. E eu iria acabar a odiar-te se o fizesses. E as pessoas iriam pensar que eu era bom. E eu não sou bom. E eu não podia deixar que isso acontecesse. Porque eu só sou bom contigo. E isto não tem nada a ver com o amor. Ou tem tudo a ver com o amor. Talvez tenha medo de mim porque aquilo que vejo quando olho para mim incorpora todos os tipos de fealdade. E não importa se estou nu ou vestido. Porque os dias perfeitos só existem contigo. Porque me fazes esquecer de quem sou e penso que sou um outro e até penso que sou bom.

Recordo-me daquele dia em que parecias imperturbável. Parecias imperturbável mas, na realidade, o teu coração batia apressado e disseste-me estas palavras. “Estou tão feliz!” Como elas ecoam agora em mim. “Estou tão feliz!” Palavras que se insinuam. Que misteriosamente se insinuam. Recordo-me da tua pele enquanto as disseste. Do teu corpo quase encostado ao meu. Em abstracto recordo-me dessa ondulação suave e perfumada. E de como cheiravas. Recordo-me do teu rosto que me deste a ver de tantas formas. Em formas que não deixas os outros ver. Um rosto tão perfeito que quando me lembro dele o meu coração inunda-se de uma vontade de te procurar e gritar com toda a força que tenho o que sinto por ti. Um rosto que não tem imperfeições mesmo que à força, muitas vezes, me quisesses mostrar irregularidades. Mas é aí que reside o problema. É que, apesar de me quereres mostrar o contrário, são exactamente essas irregularidades que fazem com que o teu rosto seja perfeito. Recordo-me dos desenhos dos teus olhos em sobreposição de luz e sombra quando em espelho de parque de diversões soltaste estas palavras mágicas. “Estou tão feliz!”  E elas ecoam agora em mim e eu estou triste. E agora estas palavras são trágicas. E este eu não é o eu que tu conheces de mim.

Mas porque te importarias tu que eu esteja agora triste. Que esteja triste nesta cama de hotel onde posso morrer. Nesta cama de hotel sem a tua presença. Nesta cama de hotel onde revisito todas as camas de hotel onde estivemos juntos. Nesta cama de hotel onde sinto este único tipo de desconforto cinza das inúmeras pequenas rugas que apresentam os meus olhos moídos. Nesta extensão de memória onde as minhas camisas brancas estão torcidas. Neste puro desconforto de ter de existir neste lugar. E tudo me parece um pouco errado de cada vez que olho ao redor deste quarto. A sensação impressionista do padrão do sofá. A inepta posição da torneira na bacia na casa de banho sempre que lavo as mãos. O emaranhado embriagado de cada peça de roupa que usei sem lavar. As meias compradas com desconto para preencher uma necessidade imediata. Por quanto mais tempo me irei dedicar a estudar o errado no quarto para não estudar o errado do eu? O eu mais triste que se solta e sente e parece ter sido um eu usado por outro homem. Mas se agora aqui estivesses eu até diria uma piada. Só para te ver sorrir. Por exemplo se tivesse que compilar uma lista das piores cómodas esta que suporta a televisão aqui neste quarto estaria no topo. Porque escolhe o eu um lugar deliberadamente profanado para padecer? E a televisão que solta grunhidos em cantonês. E as legendas que o eu imagina. “Como foi que isso aconteceu?” “Morreu na cama de um hotel há três dias atrás sem ninguém saber nada.” “Realmente triste!” “Realmente triste!”

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