Tango. Para dois.

[dropcap style=’circle’]R[/dropcap]odeio. Ao som de um tango daqueles de morrer um pouco. São os pés a querer ensaiar um boleio. Baixo, primeiro, mas o desespero quere-o alto. Sacudido. A cortar a inércia e o tempo. Não arrastado lento no chão. Um grito. Uma estocada surda. Para nada. Não se quer magoar ninguém na pista de dança. Rodeio o assunto mas um dia tinha que ser. Falar de tango, porque esta noite não danço. Uma paixão consome e alimenta. Por vezes de forma indecifrável, outras, para quem se revira de todos os ângulos, não pode deixar de ser fonte de um prazer maior também, o de conhecer direito e avesso do todo que é. O que seria de mim sem esse espaço etéreo de sonho, alienação e embalo que é a música, não sei. E o corpo. O corpo no espaço e no tempo. A transposição de ritmos que são do próprio metabolismo desta máquina apurada, sensível, trabalhadora e lírica que transporta outra coisa. Alma, espírito, razão ou psique. Mais que matéria. Muito mais que matéria. E a própria trepidação das partículas ínfimas que nos compõem enquanto tal, a agitação dos átomos, na sua escala de microcosmos, que se propaga e expande, a fazer antever e ansiar as possibilidades de sonhar com um momento sincronizado, apelativo, Como o da água que não fere a temperatura do corpo. Nem a da alma. Que se quer tépida também. Para não murchar. A existência desse mistério edílico – a música, nas suas possibilidades ilimitadas. Todos os momentos, todos os estados de liquidez, esboroamento, coesão. Procura de cada um, como referência possível para a ânsia de movimento harmónico do corpo. A dança um universo perfeito. Ou um planeta solitário. Uma ilha. Um rasgo, um intervalo no pano do cosmos.
No tango, para dois. 33
Outra vista, agora. Muitas vezes observo sentada. Sem pensar. Deixo os olhos seguir os pares desfocados. Tento sentir só o movimento global da pista elíptica. Uma translação e outra. Múltiplos planetas na sua rotação própria. A necessidade de expressão do ser, como equilíbrio do excesso. Revelar, ocultar. Se revelar parcialmente e se ocultar ao mesmo tempo, num jogo estranho e nunca finito, de defesa dos elementos frágeis, e de oferta dos mesmos. O inimigo espreita e ao amigo também.
A essência da dança é um vocabulário estranho na ordem da representação. Como todos os outros. Uma meta-linguagem, uma realidade que representa outra e também sempre por camadas. Inspirada na música implícita do corpo. Como anseio. No espaço e no tempo. De vida. Aquilo que se movimenta secreto e reage a um apelo musical. Agita ou abranda com mansidão e deleite. Um conjunto de vocábulos retirados do amor ou do andar, da fuga ou da queda. Metáforas de abatimento ou guerra. De posse ou destruição. De acabamento ou início. De desconhecimento ou repetição. Repetição. Repetição. Acentuação da intensidade da repetição. De espera e suspensão, ou de recusa e agressão. De idílio ou desapontamento. O movimento de ascender ao outro e o movimento de recolher o movimento de outro. Generoso ou abrupto. Amoroso ou em desafio pendente do próximo passo. Do diálogo, nem sempre pacífico. De feitiço hipnótico ou ignorância. De verdade ou atuação. Atuação sempre. Ah…mas aqui é um território esquivo. Qual o limite de uma e de outra que não o da honestidade com que se enfrenta o mundo empático e extrínseco em que se finge o que se entende, ou a revelação plena, no mínimo, daquilo que se entende ser.
A dança como o teatro pode ser tudo. Mas sempre uma atuação. No tango, a dois. O que a torna fruto e raiz de muitas metáforas possíveis.
Ali, um passo pode ser tudo. Nenhum passo pode, deve, ficar sem resposta, um desenvolvimento que leva ao passo seguinte. A não ser assim corre-se o risco de tropeçar no outro, cair, e se um cai, no tango caem os dois. Num salão pejado, talvez outros pares também se desconcentrem e desconcertem por instantes. A essência do tango é o caminhar. Dito naquela contensão doce do castelhano argentino. Mais doce e contido sem desfazer o ene. O caminhar, de que tudo o resto são variações. A dois, sempre. Nenhum passo sem uma resposta. Excepto o último. Um momento síncrono. Prolongado por momentos enquanto o silêncio se instala e logo a seguir se desfaz no murmúrio que se eleva do salão.
No tango basta uma vez. Na verdade uma tanda, conjunto de três ou quatro músicas. Para se entender uma pessoa naquele par. Um estilo, um caráter. Porque será um pouco diferente noutro par. Mas basta uma tanda para se entender tudo. Como no amor. Mas também aí um continuum que se apura a partir da essência. E depois, há a técnica. Mas que de nada vale sem o sentir. Sem sentir a música. O outro, a si. No espaço de uma tanda. Depois, repetir ou não depende. Há a disponibilidade do corpo e o ouvido para a música. Que está ali como o mar que embala ao seu ritmo e não outro. Mas é a partir daí que se encontram as tonalidades da linguagem para além do código.
A graciosidade, a leveza, o rigor, a expressividade com que se interpreta um passo que é uma emoção na resposta a outro e, na sequência, um diálogo. Mas há, à partida um mínimo de comunicação que é o vocabulário como ponto de partida. E só depois é linguagem pessoal.E depois, ainda, tudo se funde. Emoção e dedicação. Criatividade, lirismo. Paixão. Com que se parte de um gesto codificado, aprendido e se lhe dá a forma de um requebro particular, de um balanço alongado no tempo que o tempo permite. De uma patada animal, seguida de uma paragem sensual, ou irónica. De um retomar cordato. De um abandono à condução. Pode-se alternar em humildade e desafio. Entre ternura e desencanto. Entre indiferença e interrogação. No tango, dentro do vocabulário, do código, dos passos pré-definidos. Com um amortecimento do gesto, ou com um sincopar do ritmo, ou com o corte abrupto de um movimento, ou com o prolongamento lânguido de outro. E a seguir o contrário. Com humor ou raiva. Com amor ou desespero. Como na vida. Mas com o respeito pela dança, pela sua natureza específica de tango. Com aqueles códigos. Uma linguagem ao serviço da paixão. A fingir. Na maior parte dos casos. Tanda após tanda.
E comparar-se a um retrato por Modigliani. Com os seus olhos ausentes e a sua curvatura alongada do pescoço. Um vôo cego de pássaro guiado pelo intervalo de uma sequência musical. Guiado com desvelo. Um passeio pela música e pela vida de momentos de uma noite. Um passeio sonhador e sem continuidade. Sem princípio nem fim. Outras tandas começaram a noite e outras vão findá-la.
Sim, o tango é para dois e num salão apinhado. Não é espectáculo. Gosto de ver os meus pares míticos e sem sobreposições, claro. Aprende-se a ver e é um prazer sem igual. Mas isso é ver. A essência da dança é de índole privada. Conduz-se com o peito. Diria, com o coração. Mais nada se toca senão as mãos uma na outra. E a outra de cada um nas costas do seu par. Mas é o peito que conduz. No abraço fechado. E é quem segue, que escolhe o abraço. Teoricamente. Na verdade o líder tem tendência para o impôr. À sua medida e mesmo no limite do desconforto. Do encerramento. Mas o par dança para si. Um para o outro. Um com o outro. Não para se exibir a quem o possa seguir com o olhar. E porque se conduz com o peito, numa bela caminhada pode resumir-se todo o ritmo, a sensibilidade à musicalidade do tango ou da milonga. Dizia-me alguém que quem conduz, deve fazer brilhar o par, e não a si próprio. Mas dizia-me alguém, também, que provocava na senhora o desequilíbrio para a obrigar a responder com o passo certo. Uma condução traiçoeira. Não é isso dançar. Quanto muito, assim, responder por instinto de sobrevivência. Mas há um diálogo que pode ser de muito desafio. Quem segue pode trocar as voltas e responder com um passo possível mas que obriga a uma resolução, a uma mudança. Não de forma impeditiva mas desafiando a uma mudança de passo. E depois o boleio. Esse movimento icónico do tango. Uma patada circular, que pode ter a elegância e a leveza de um floreado lírico, a arrogância ou a qualidade de desespero que se lhe queira imprimir, como a qualidade animal de coice de revolta, de desafio, de insubmissão. Ou um lançamento da perna para trás como símbolo de fuga ao abraço. Ou a nuance subtil do boleio baixo, Um arrastar lento e pausado, num desenho redondo de quase carícia ao chão do qual noutros momentos os ombros elevam a alma. E o gancho, uma qualidade de laço, de nó, de aviso abrupto. A perna de um, enrolada na de outro. Presa. Poder ou submissão…O código. E as margens subjectivas. Pode ser uma discreta agressão em resposta. Mas há a castigada, por outro lado. E aquela carícia com o peito do pé, rápida e nervosa, longa e glamorosa, ou atirada a doer. Sempre um diálogo. Um conduz. O outro segue. Por convenção.
Hoje começa a enraizar o hábito de falar do papel do que conduz e do que segue, sem imputação a géneros. Faz sentido. Passado o passado histórico do tango, dançado exclusivamente entre homens, é ainda uma fuga à norma, voltar a baralhar os géneros, mas é na fuga à norma que se encontra muitas vezes a poética da interpretação dos padrões. Também. E da sua transformação. E muita gente começa a aprender os dois papéis. O de líder, muito mais complexo, claro. Mas essa permuta de papéis dá a dimensão mais focada do outro. Permite entender melhor cada um dos papéis. Uma enorme rebeldia à guerra dos sexos, substituída pelo prazer de alternar sem juízos pelos dois papéis, o de líder e o de folower. O que conduz e o que segue, sem subalternidades. Só pelo respeito pelas regras e responsabilidades de um e de outro. Sempre, o que conduz, tradicionalmente condenado pelo machismo àquele papel, a quem são imputadas as culpas do desacerto. Porque é, curiosamente este que conduz que se adapta ao nível de quem lhe segue as passadas. Ensinar, numa milonga, é ofensivo. Não é de bom tom. Tudo isto é a teoria e o ritual. Nada disto se passa, já. Quase.
E aquele segue, a seguir com desvelo e atenção, garante a resposta possível e a continuação da dança. É lindo, isto. Na pista. No salão, talvez na vida, também. Há uma analogia curiosa entre um bom par e o comportamento de certos animais. Entre alguns, são os mais frágeis que vão à frente, impondo o seu ritmo. Num par, deve ser assim. Mandam as regras. O que conduz afere a dificuldade do vocabulário pelas possibilidades do outro, não força, não é deselegante ao ponto de o fazer ter uma má figura. Prefere não brilhar com todo o seu esplendor a humilhar o par. Dança para ele. Dança com ele e dança, do modo que dança, por ele. Só por uma tanta. Depois, a vida continua e a milonga também.
E o prazer da dança vai para além das possibilidades da sedução, do enamoramento. Vale por si.
E as luzes são ténues. Acolhedoras. As sombras muitas. Porque o resto, o resto é espectáculo. A música. E o tango, para dois.
E o glamour. Que começa a faltar. Lembro-me sempre de uma figura de homem ímpar que milongueava por aí. Morreu. Fato completo de uma estética retro, impecável. Risca larga ou traço de giz. Camisas escuras. Colete, laço ou gravata neutra. O cabelo em madeixas rebeldes a começar a acinzentar. Bigode de guias retorcidas. Uma figura ímpar quase icónica. Dançava que era bonito de ver. Mas um tango nuevo, curiosamente. Um dia convidou-me para dançar, quando eu mal me atrevia a calçar os sapatos, de modéstia, mas corria as milongas só pelo prazer dos olhos. Se eu dançava mal, esmerei-me sem querer no pior possível. Na verdade o que custa é seguir. Com despojamento, atenção e humildade. Sem querer fazer bem. Sem ouvir o par, quanto mais se quer fazer bem, mais se desconversa…Não mais me convidou, durante anos. Triste, entendi. Depois entendi que também ele, que conduzia bem, não o fazia com a nitidez necessária. Ao nível de uma principiante. O que é um erro. E mais tarde voltei a dançar com ele. Aí, um prazer. Mas desapareceu das milongas e da vida. Uma figura sóbria a rigor, um espectáculo para os olhos, morreu discretamente sem que ninguém soubesse que ia morrendo. Solitário como muitos milongueiros. Embora no tango se cruzem muitas intencionalidades.
O que é um milongueiro. Um nómada de todas as noites de tango. Que corre as capelinhas prediletas noite após noite porque nunca se cansa. Que volta sempre como ao local do crime e para o mesmo insaciável crime. Ou, podia pensar-se, alguém com missão de vida focada na eterna procura que é o amor. Pelo tempo de uma tanda. Alienado da real desistência de procurar. Ou então, Para quem já não faz sentido, senão esperar o acontecer daquela raridade de profundo acaso que é o encontro. Com a resignação prévia face à enorme possibilidade de ele não ocorrer. De não voltar a acontecer. Ou de poder não voltar a acontecer. Ou nunca, por nunca ter acontecido. De procurar o par perfeito, ou o par imperfeito mas que é bom para uma tanda. Ou uma música, só. Pela dança. Essa paixão em si só. E que procura conhecer. Apurar. Desenvolver. Com perfeccionismo, com paixão. Com teatralidade. Que está atento a todos os olhares. A todas as novidades no salão, que espera o momento próprio como um felino. Que se insinua. Que cria a emoção que espera e que espera quem lhe saiba responder. Que se entrega como sabe. E volta a entregar. E que se retira com dignidade, acompanha a senhora ao lugar e lhe deixa a sensação de que é para sempre. Não na próxima tanda. Não seria adequado. Mas depois. Lá mais adiante. De novo. A plenitude que ambos pretendem. Se ele olhar para ela, se ela olhar para ele. Outra vez para sempre no espaço de uma tanda.
De resto, tudo começa com uma mirada. A célebre Mirada e Cabeceo. Observar a pista. Colocar-se num local visível. Ele. Ela. Ela, mirada discreta e muda aos cavalheiros de seu apreço. Ele, mirada intencional e interrogativa. A mirada discreta dela permite-lhe fingir que não vê. Às vezes não vê mesmo. Não percebe. Se viu e lhe agradou a intenção da mirada, um gesto subtil de assentimento, um cabeceio gentil e cuidadoso, não vá dar-se o caso de não ser para ela. Àquela distância, acontece. E ele avança, aí seguro, digno e confiante. Atravessa a pista com elegância, às vezes com pressa, não vá acontecer o assentimento ser para o cavalheiro do lado. Ela não deve levantar-se sem que ele chegue ao pé. Lhe estenda a mão a curta distância e sem margem de dúvida. Com vagar. Erguer-se cedo demais e correria o risco de o fazer em simultâneo com outra senhora ali ao lado, confusa uma ou outra, e o vexame é imenso. Mirada e cabeceio, protegem a face dele. Não se arrisca a um não, que, para mais, manda a delicadeza, o impediria de dançar com outra aquela tanda. Eu vejo mal. Este jogo é complicado, mas suspiro porque já nada é como dantes. No final de cada tango o par desenlaça-se, não é delicado o cavalheiro continuar com familiaridade a pousar a mão na cintura. Aí, suspiro de novo, fazem-se coisas estranhas, compôr as meias, pôr as mãos na cintura, abanar a camisola para arejar, apontar um ou outro defeito ao par, corrigir o elástico do cabelo, enfim, coisas de toilete que com charme, se deveriam fazer em privado. No final da tanda conduzir a dama ao lugar, claro. Sem pressa, com uma palavra de agradecimento retórico mas gentil e sem exageros. “La délicatesse de l’obigé, c’est de ne jamais nous faire sentir qu’il nous doit”: Jean Rostand.
Délicatesse oblige.

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