Fichas de Leitura h | Artes, Letras e IdeiasO Demiurgo incondicionado Manuel Afonso Costa - 21 Jan 2016 Ferreira, Virgílio, Até ao Fim, Quetzal, Lisboa, 2009 Descritores: Romance, Morte, Existência, Memória. ISBN: 9789725647745 Sinopse e Ficha Crítica de Leitura Vergílio Ferreira nasceu na aldeia de Melo, no Distrito da Guarda a 28 de janeiro de 1916 e faleceu em Lisboa no dia 1 de Março de 1996. Formou-se na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra em Filologia Românica. Em 1942 começou a sua carreira como professor de Português, Latim e Grego. Em 1953 publicou a sua primeira colecção de contos, “A Face Sangrenta”. Em 1959 publicou a “Aparição”, livro com o qual ganhou o Prémio “Camilo Castelo Branco” da Sociedade Portuguesa de Escritores. Em 1984, foi eleito sócio correspondente da Academia Brasileira de Letras. As suas obras vão do neo-realismo ao existencialismo. Considera-se geralmente que o romance Mudança assinala justamente a mudança de uma fase para outra. Na fase final da sua carreira pode-se dizer que Vergílio Ferreira tocou as fronteiras de um puro niilismo. Em 1992 foi eleito para a Academia das Ciências de Lisboa e além disso, recebeu o Prémio Camões, no mesmo ano. Obras principais: Mudança (1949), Manhã Submersa (1954), Aparição (1959), Para Sempre (1983), Até ao Fim (1987), Em Nome da Terra (1990) e Na tua Face (1993). O autor faleceu em 1996, em Lisboa. Deixou uma obra incompleta, Cartas a Sandra, que foi publicada após a sua morte. A partir de 1980 e até 1994 foram sendo publicados os seus diários, com a designação de Conta Corrente. Deve ainda salientar-se a publicação do conjunto de ensaios intitulado O Espaço do Invisível entre 1965 e 1987. “Tenho ainda um bocado de vida a cumprir, foi-me guardado pelo destino. Sobrou do que me roubaram, o destino guardou-me como um bocado de pão.” Vergílio Ferreira, Até ao Fim. [dropcap style=’circle’]A[/dropcap]história do romance, a intriga, é enquanto ponto de partida para a narrativa, muito simples, embora pouco óbvia, até porque pouco verosímil. É um pretexto. Um homem, Cláudio, vela o corpo do filho, numa capela sobre o mar. Está só, apenas ele faz o velório. Na sua solidão acompanhada pela presença-ausência do filho, ele passa em revisita a sua vida. É um balanço, que Cláudio quer partilhar, com aquele que já não partilha. A verdade é que partilhar ou não, não depende de Miguel, e sendo assim também a questão de poder considerar a obra como um longo monólogo interior ou um diálogo me parece uma falsa questão. Para mim trata-se de um diálogo, uma vez que é o narrador omnisciente que assim o decide. Este é um ponto em que o leitor pouco ou nada manda. Há um diálogo entre um pai vivo e um filho morto. Eles encontram-se ali justamente porque um está vivo e vela, o outro está morto e ouve, ainda que não ouça nada. Mas ouve até porque responde e responde porque Vergílio Ferreira o escreveu. Mas isso não importa. A partir de Para Sempre Vergílio Ferreira abandonou muitas das questões subordinadas aos critérios diegéticos tradicionais, como tempos, verosimilhança, diálogos fictícios e monólogos que possuem apenas a função de proporcionar os diálogos impossíveis, etc. Há recursos notáveis que o autor passa a cultivar e que continuará a usar até ao fim da sua vida e da sua obra. O mais interessante para mim tem a ver com o modo como os personagens entram e saem do cenário, vindos do seu exterior, às vezes vindo de uma exterioridade que não é apenas espacial, mas que é sobretudo temporal e muitas vezes mesmo vindos de uma outra dimensão da existência; da morte por exemplo. A erupção dos personagens atenta contra o tempo e é na maior parte dos casos anacrónica de forma múltipla. O modo como o autor os justifica e integra, o modo como os manipula e condiciona, a vida que lhes dá e a vida que lhes retira, o modo como os subordina ou não às questões de verosimilhança é o que de mais notável o autor inaugurou nesta fase do seu estilo, o chamado estilo tardio. Só com um estilo assim, um autor assume com plenitude o seu estatuto de demiurgo. A partir de Para Sempre Vergílio Ferreira torna-se um demiurgo incondicionado, absoluto, usando sem parcimónia todo o seu imenso império. O narrador possui os personagens tal como o bonecreiro possui os seus fantoches ou marionetas e dispõe deles como muito bem entende, contudo por vezes os bonecos parecem ganhar vida e agitam-se e dão sinais de querer entrar ou sair de cena de forma extemporânea pondo em causa a fluidez lógica da narrativa. O modo como o narrador os domestica, digamos assim, quase sempre com uma infinita tolerância e ternura, para os integrar na narrativa sentimental de uma maneira particular, constitui também um dos segredos estilísticos relevantes e em certa medida experimentais da última fase da obra de Vergílio Ferreira. No fim de contas acabamos por não considerar os personagens divididos em verdadeiros e fictícios, pois são todos verdadeiros e ao mesmo tempo todos fictícios igualmente. Isto que digo prende-se com a questão da ausência e da presença enquanto modos dinâmicos da realidade. No romance Na Tua Face, mais ainda do que em Para Sempre ou em Até ao Fim, Vergílio Ferreira desenvolve uma ideia nuclear, ou seja, a ideia de que o que vemos se complementa com o que nos olha, ou muito simplesmente a ideia de que aquilo que nos olha através do que vemos, pois é disso que se trata, configura um outro mundo que não se resume ao que ver acrescenta, mas antes ao que no acto de ver, convoca a partir do ser o que nos falta, aquilo que sendo ausência e vazio, possui uma existência inalienável. Eu quero aqui ressalvar estes dois aspectos de uma mesma realidade, este aspecto que acabei de referir e que possui uma dimensão ontológico e um outro que é o modo estilístico de lhe dar vida no interior de uma narrativa. Para Vergílio Ferreira estão todos ali, estando ali ou noutro qualquer lugar da Terra, estando vivos ou mortos, podendo estar ou não em função do tempo parcelar de cada parte da narrativa. Estão todos ali porque os presentes os convocam de forma irrecusável. Estão todos ali porque o narrador os faz entrar em cena na altura em que muito bem entende, faça sentido ou não. A verdade é que só depende do narrador que faça sentido ou não. O sentido aqui não é o sentido da lógica ou da verosimilhança, integra uma outra economia, puramente sentimental e rememorativa. Mas dizia eu, o modo como o autor entretém essa tensão entre a sua disciplina enquanto narrador e a agitação dos personagens, exige recursos que Vergílio Ferreira nunca terá usado antes. “Talvez venha a chamá-las. Mas não agora”. “Clara. Mas não é ainda tempo de haver sol. Não é ainda tempo de tu vires”. E muitas outras expressões, … espera, não é ainda a tua vez, … agora não, depois, agora ainda tenho outras coisas para dizer… e assim infinitamente… o caudal suporta e não suporta estas erupções, … Foi no Para Sempre que isto começou e começou em boa hora!