Deficientes no trabalho | Capazes e trabalhadores, asseguram patrões

“Capazes, inteligentes e trabalhadores.” É assim que empregadores de portadores de deficiência definem os seus trabalhadores. Mas, entre casos de sucesso, há opiniões que apontam que a sociedade precisa apenas de mão de obra mais barata

[dropcap style=’circle’]T[/dropcap]er trabalho é um direito e faz parte da vida de todas as pessoas. Todas, ou quase, já que para os portadores de deficiência, a coisa pode não ser tão fácil. Em Macau não é fácil ver trabalhadores deficientes nos diversos negócios do território. Mas eles existem e a sua capacidade de trabalho abrange diferentes áreas. O HM foi à descoberta e tentou perceber como é a vida de alguns deles.
Oi Lin foi a primeira portadora de deficiência mental ligeira que falou ao HM, quando visitámos a oficina da empresa de doces Cherikoff, na zona do Iao Hon. Ainda que não de forma clara, Oi Lin consegue dizer-nos que tem 43 anos e que começou a trabalhar na oficina desde 2008.
“Gosto de trabalhar aqui”, responde. Todos os dias, Oi Ling faz a limpeza, coloca etiquetas nas caixas de produtos, coloca os doces nas estantes. Num trabalho igual ao dos outros trabalhadores, trabalha a tempo inteiro e tem um dia de descanso ao sábado.
Nos primeiros dias de trabalho, o assistente social que acompanha Oi Lin precisou de ficar com ela no trabalho, sendo que a jovem trabalhava apenas metade do dia para se habituar às mudanças na sua vida.
Peggy Man, gerente administrativa da empresa, admite que, meio ano depois de ter começado a trabalhar, Oi Lin conseguia já lidar com o que tinha de fazer. Agora trabalha independentemente.

Oi Lin trabalha na empresa de doces Cherikoff
Oi Lin trabalha na empresa de doces Cherikoff

“Oi Lin consegue também atender as chamadas de clientes e sabe bem as horas de chegada dos clientes [regulares], dividindo os produtos necessários e colocando-os em diferentes sacos para lhes dar”, indicou ao HM, acrescentando que a ajuda é mútua. “Existe uma grande vantagem em recrutar deficientes: é que eles não são preguiçosos. O que dizemos que tem de ser feito, eles fazem e o processo é feito como se fossem um sistema de computador”, diz, referindo-se ao facto de fazerem tudo como lhes foi indicado.
Ainda que, por vezes, Oi Lin se tenha atrasado na chegada ao trabalho, Peggy Man refere que não tem de se incomodar em mandar Oi Lin trabalhar: pelo contrário, às vezes é ela quem diz aos colegas novos para se apressarem nas tarefas. Contudo, Peggy Man explica que o salário de Oi Lin é um terço menor do que o dos outros funcionários, devido às limitações da funcionária.
Fong I é outra portadora de deficiência mental ligeira que tem 40 anos. Trabalha no armazém da empresa de cafés Seng Pan há mais de um ano. Estudou até ao segundo ano da escola primária, através do ensino especial.
A Associação de Familiares Encarregados dos Deficientes Mentais conta-nos que Fong I já trabalhou em vários locais anteriormente, mas não gostou de nada, tendo desistido logo no início.
“Trabalhou como funcionária de limpeza numa cantina da escola e foi empregada num snack-bar, mas disse que não gostou e achava o trabalho muito cansativo, pelo que desistiu logo depois”, afirmou Lai Iok Kuan, assistente social que tem acompanhado o caso de Fong I.
Na fábrica de cafés, Fong I sente-se bem. Consegue trabalhar de forma estável e os pais, a associação e a empresa testemunham isso.
Gary Chio é chefe da jovem, que é a primeira funcionária que a empresa recrutou. No meio ano inicial, Fong I trabalhava apenas quatro horas por dia. Mas foi quando começou a trabalhar a tempo inteiro que o seu esforço se notou mais.
“Ela sabe fazer muitas coisas, sabe escrever à máquina a data dos pacotes de cafés, sabe fazer a contagem dos sacos, bem como colocar os pacotes nas caixas. Ela é muito inteligente e tem paciência”, conta-nos. Fong I também sabe fazer café, sendo esta, aliás, uma das exigências a todos os funcionários da empresa.
A conversar directamente com Fong I, conseguimos perceber que a sua expressão oral é boa e que a jovem consegue explicar bem o que faz.
“Aprendi a fazer tudo aqui. Aprendi a colocar os cafés e os chás nos pacotes, não é difícil. No início não sabia escrever à máquina, mas um colega ensinou-me e agora sou eu sempre a fazer isso”.

De mãos dadas

Segundo dados da Direcção dos Serviços para os Assuntos Laborais (DSAL), de 2014 ao ano passado, 65 portadores de deficiência conseguiram trabalhos através do organismo. A maioria trabalha na limpeza de hotéis e restaurantes, em obras de construção, são cozinheiros ou assistentes administrativos. Trabalhadores de segurança, entre outros.
Para Sandra Liu, directora executiva da Associação de Familiares Encarregados dos Deficientes Mentais, em muitos casos, os factores de sucesso não são apenas a aceitação do deficiente como trabalhador, mas também o convívio e as relações entre colegas. Se esse for feito num bom ambiente, os deficientes conseguem trabalhar bem.

Hok Chai é trabalhador da CEM
Hok Chai é trabalhador da CEM

Exemplos disso podem ser as duas jovens com quem falámos acima. Os pais de Oi Lin começaram a ter dificuldades de deslocação no ano passado, levando a que os colegas lhe dêem ainda mais atenção: ajudam-na a fazer compras e a guardar dinheiro, por exemplo.
Oi Lin não foi a única portadora de deficiência que a Cherikoff já teve a trabalhar consigo: já foram recrutados cegos, surdos, portadores de poliomielite. A empresa tem cooperado com as associações de serviços sociais para providenciar estágios a quatro portadores de deficiência por ano, com duração de três a seis meses. Mas Peggy Man acha que a situação de Oi Lin é muito melhor do que a dos outros portadores de deficiência e crê que isso tem a ver com a ajuda dos colegas.
“É importante não os menosprezar. Quando compreendemos a situação deles, eles esforçam-se muito. Nós não devíamos queixar-nos de nada.”
No início, Peggy Man recusou contratar este tipo de pessoas, mas o dono da empresa onde Peggy desempenha a função de chefia convenceu-a a fazê-lo. Agora, a mulher agradece ter tido oportunidade de os conhecer.
“Apreciamos o que o dono [da empresa], Bobby Leng, nos disse. Não podemos ajudar todos, mas ajudamos um e depois outro, é melhor do que fazer donativos para estas pessoas. Eles conseguem ganhar dinheiro dependendo de trabalho físico, o que é bom para eles também.”
A entreajuda pode ser realmente uma das peças-chave para a estabilidade. A assistente social que acompanha o caso de Fong I segreda-nos que, no início, os colegas descobriam a portadora de deficiência a chorar escondida no trabalho, apenas porque não sabia exprimir-se como queria. Algo que fez o patronato perceber que “é preciso contar com as características [especiais da empregada], a sua capacidade e os seus conhecimentos antes de começar a trabalhar”.
Quando a visitámos no local de trabalho, ela sorriu timidamente. Agora, Fong I não precisa de receber subsídios do Governo. Os pais estão felizes com ela e Gary Chio acha mesmo provável ela ser eleita a melhor funcionária do ano. “Ela ajuda-nos muito, em vez de sermos nós a ajudá-la ela”, admite.

“Sociedade não aceita bem os portadores de deficiência”

Hetzer Siu diz que aceitação reside na necessidade de mão-de-obra

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]o mesmo edifício onde fica a fábrica de cafés onde trabalha Fong I, na Areia Preta, encontrámos Ka Cheong. Mais novo, com apenas 20 anos, o jovem é deficiente mental de nível moderado. É tímido e pouco falador e trabalha na Companhia de Fornecimento de Equipamentos de Restauração Chon Wa desde Julho do ano passado.
Ka Cheong acabou o terceiro ano do ensino especial da Escola Luso-Chinesa Técnico-profissional e conseguiu este trabalho, depois da empresa se inscrever na DSAL para recrutar um portador de deficiência.
“Quando abrimos a empresa, falei com o meu marido para recrutar um portador de deficiência, porque temos capacidade para isso. Assim tentámos recrutar o primeiro funcionário com deficiência e chegou-nos Ka Cheong. Ele é muito obediente”, contou Wu Kam Fong, dona da empresa, acrescentando que Ka Cheong é “muito pontual”.
Sem grande carga de trabalho, Ka Cheong recebe 7300 patacas por mês, o que, diz-nos Wu Kam Fong, “não faz grande diferença” para com o outros funcionários.
Já Hok Chai, também deficiente mental de nível moderado, tem 28 anos e começou a trabalhar no escritório da Companhia de Electricidade de Macau (CEM) em 2012.
Formou-se na Escola da Concórdia para o Ensino Especial e participou no plano da CEM com a Associação Macau Special Olympics, que todos os anos leva dez portadores de deficiência a ser estagiários.
Wendy Vong, gerente do Departamento de Administração da CEM explicou que o funcionário trata de papeladas, de inserção de dados no computador e de arquivamento. A avaliação é positiva.
“Consegue concluir os trabalhos sem problema”, diz-nos a sua superior, acrescentando que uma das únicas limitações de Hok Chai é o tempo. “Não podemos dar-lhe muito trabalho ao mesmo tempo.”
Para uma melhor coordenação entre os funcionários na empresa tão grande que é a CEM, Wendy Vong explica que são emitidos avisos para encorajar a ajuda aos portadores de deficiência. Além disso, cada portador é acompanhado por um instrutor, a fim de se integrar melhor no ambiente de trabalho. Algo que, como nos diz Hok Chai com algum esforço, ajuda.
“No início, preocupava-me em não saber fazer nada e em cometer erros. Fazia perguntas ao meu instrutor quando não sabia algo.”
Entre todos os trabalhos, Hok Chai diz-nos que o que gosta mais de fazer é recolher as impressões digitais dos novos funcionários e tirar fotografias para fazer cartões de trabalhadores.
A Sociedade de Ngai Chun é uma empresa social de limpeza operada pela Associação Macau Special Olympics desde 2002. Aqui encontrámos Ao Ieong I.
Com 26 anos, formou-se na Escola Luso-Chinesa Técnico-profissional e trabalha na sociedade há mais de um ano, depois de ter sido empregada de limpeza do Hotel Venetian.
Falando fluentemente, Ao Ieong I conta-nos que, nesta empresa, o trabalho é mais cansativo, mas também mais apreciado pela jovem.
Começou, como outros 23 trabalhadores portadores de deficiência na sociedade, por fazer limpeza de carros, de prédios e de lares de idosos. Mas agora Ao Ieong I foi promovida e trabalha mais no escritório: escreve no computador e entrega documentos. Toma notas nas reuniões com os chefes.
Na última avaliação que lhe foi feita, Ao Ieong I foi classificada como estando um nível acima de deficiência mental ligeira, avaliação que não lhe permite receber o subsídio de deficiência do Governo.

O outro lado da moeda

Desde há 20 anos que a Associação Macau Special Olympics já ajudou cerca de 200 portadores de deficiência a encontrar trabalho. Destes, 11% sofrem de deficiência mental e estão espalhados por 65 empresas que cooperam com a Associação.
Hetzer Siu, director-executivo, afirmou que o caso de Ao Ieong I é um exemplo de promoção de trabalho. A aprendizagem é algo visto como necessário pelo responsável, que diz que mudar os hábitos dos deficientes – acostumados a ter férias longas e a não trabalharem mais de dez dias – é algo que tem de ser feito. Até para que, “passo a passo”, se habituem ao ambiente de trabalho, que é diferente do da formação.
Mas há casos em que nem sempre a vida é feita de sorrisos. Hetzer Siu acha muito importante alterar o modelo tradicional dos serviços sociais para os portadores de deficiência, que é, actualmente, ensinar e dar apoio financeiro. Através das empresas sociais, diz, estes conseguem depender da sua própria capacidade e forças para ganharem dinheiro.
O responsável diz que não é difícil os portadores de deficiência encontrarem trabalho. No entanto, diz, quando estão a trabalhar com pessoas ditas normais, sentem pressão por acharem que não conseguem fazer o que os outros conseguem. Além disso, o director-executivo acha que não é verdade que a sociedade “aceita bem estas pessoas”. Aceita-os, diz, apenas com base na necessidade de mão-de-obra. E mão-de-obra mais barata, diz.
“Não vejo que a sociedade esteja a aceitar bem os portadores de deficiência. Muitos empregadores querem recrutá-los porque precisam de mão-de-obra e podem pagar menos, bem como conseguem pedir ao Governo trabalhadores não residentes (TNR) mais facilmente”, confessa.
Segundo Hetzer Siu, actualmente o Governo tem apenas quatro portadores de deficiência a trabalhar. Como não existe uma carreira especial ou uma forma de inscrição especial para encorajar a empregabilidade destas pessoas, “é muito difícil trabalhar” na Função Pública.
“Podemos ver que nem o Governo está muito activo na contratação de deficientes. Como é que as empresas privadas vão fazê-lo?”, remata.

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