Meios tempos. Meios-tons

[dropcap style=’circle’]V[/dropcap]ermelho. Por alguma razão se lhe chama encarnado. Cor visceral. Turbulenta, apaixonada com violência bélica.
Falar um pouco do prazer. Do prazer daquilo a que chamaria o registo. Como de um sismógrafo, o das sensações. Do prazer da cor. Puras sensações de prazer ilusório. A percepção é pouco fútil. Por muito que se desenvolva a capacidade de concentração, é atraída pelo que é dinâmico. O movimento atrai mais do que o prazer que uma forma estática. O ruído impõe-se à apreciação subtil do silêncio. Pedra, tesoura, papel. A cor. A cor é pura sensação, não tem forma, não tem volume, não representa nada em si que não a si própria, mas ela ilude, também ela, a nossa percepção pulsando ou retraindo-se, parecendo expansiva ou reentrante. Faz-se maior ou menor, que o puramente determinável. A exaltação. O corrupio do sangue a acelerar. O prazer da cor, das cores puras, saturadas e vibrantes. Quando muitas, são demais. Anulam-se. Mas em certos dias, a minha alma pede que todas sejam diluídas no branco. Amortecidas e suavizadas.
Como as palavras. Escolher as palavras. Vasculhar no baú à procura daquelas…as palavras são tão importantes. No que dizem e no que não dizem. No que dizem sem dizer, e no que não dizem parecendo fazê-lo. No que dizem sem querer. Sem querer não dizer. Mas sobretudo no tom na cor, na qualidade do brilho. As pesadas e as leves. As que se enrolam na língua e tropeçam, e as que arrastam uma sensação tépida. Arredondadas, macias, aveludadas e suaves.

A premência da expressão, é um inferno cansativo. Sinal de falta de habilidade para o diálogo com a existência, de necessidade de tempo, de reflexão. Sinal de caos e desassossego interior aos olhos ao sorriso e às mãos, dia após dia, reprimidos. A pulsão da morte, o desespero de finitude, o isolamento inerente à entidade do ser em si, o excesso de sentir, o deslumbre do ver, o êxtase do admirar, a dor de ser ferido, a solidão do amor, dia após dia. Haverá por ventura ego ou nem sempre, como certeza de relevância, no amor à escrita, à arte. Simplesmente solidão. Veloz e inultrapassável. Essencial. Demencial. Sem alvo definido. Sem reparação. Sem remédio. Não há restauro possível ao facto de sermos sós, cada um em si. Nos seus mistérios. Nas suas preces e nas suas loucuras. É cansativo entrar e sair permanentemente de uma concha. E mesmo esta é, como um búzio, amplificadora de sons. Ensurdecedores por vezes, mas confusos. Mesmo os silêncios com uma dominante contínua de um timbre particular.
E depois o amor. Claro, o amor é um lugar de não solidão. O amor claro. O próprio privilégio de amar claramente alguém. Mesmo em segredo. Enche e acompanha a alma. A parte possível. Mesmo sem posse nem espera. Um paradigma. É eventualmente um sentir delicado como a luz da madrugada, com os seus altos e baixos sensitivos. Como uma luz de fim de tarde, momento de passagem e como tal angustiante, mas por um ínfimo intervalo de minutos serena e confortável. De uma beleza maior do que a da tórrida luz do meio-dia, impossível de olhar de frente. Que cega. Como a luz desse mesmo meio-dia, coada de uma folhagem leve, intermitências de calor e alívio, de brilho e cinza no intervalo. A combinação perfeita. Porque amarelo é a cor que as crianças usam para pintar o sol. Elas lá sabem. Que da luz branca, completa, do sol, composta de todas as outras, não poderia resultar o neutro do branco puro. Branca é a luz do sol na teoria da cor. Branco é a cor que não é. Como o negro. Amarelo é o aproximado colorir do sol. Pura emoção, a da luz. A cor que seria a mais bela se não amasse as outras duas também. A do sol, a da luz. Real ou não. Que vive no azul do céu mesmo quando cinzento. Tão distantes, tão distantes entre si também, mas são irremediavelmente parte da etérea construção do mundo. Do visível e do invisível.

E não há rigor possível na expressão. Com quanto mais perfecionismo o perseguir, mais se acentuam múltiplas as camadas de sentido. Não há rigor absoluto. Burilar uma frase até à exaustão e entender depois que pode ser lida de través. Como um sorriso de deslumbre pode ser confundido com troça, ironia, ou desdém, uma frase no plural pode ser lida como desabafo do próprio ou partilha de um crime de pensar ou sentir. De um crime ou de uma paixão. Se é que não podem ser uma mesma face de duas moedas. Depois há a qualidade, o som, o timbre, o colorido, com que se diz o que se diz. Querer encontrar, como uma tradução em tons aveludados e suaves, um tom particular para falar dessa imensa solidão que é ter a alma cheia de palavras, que nem sequer se quer proferir, senão a sós. Dizer de outra maneira e com outra cor. Queria aplainar cada fragmento de dizer até ao tom quente e dormente que entrasse como uma carícia na alma de quem lê para que lesse com amor. Se de amor se tratasse. Porque ler também deveria ser feito do mesmo ramo de cheiros, sabores e sentimentos com que se escreve. Senão para quê…uma e outra coisa. Quando o que se quer por vezes, é transmitir sem chegar a lado nenhum ou a ninguém. E tudo parecer contraditório, quando só o desconforto não o é. O desconforto de abrir a alma às palavras traiçoeiras. Ou, de outro modo, gostar de estender um tule de sensações, um perfume, um gesto, e ansiar que quem o colhe, sinta no rosto ao de leve uma onda cálida da ternura que só pode ser de uns, não de outros. Mas ninguém saber. E ser universal a possibilidade de amansar almas em turbulência de igual sinal. Que as há, e muitas. Mas somos tão selectivos que não é isso só e sempre o que queremos. Para cada um, uma camada diferente. Para musgo, tule e veludo, quanto da faca, a lâmina e o gume. Quanto de canela para o ácido do limão.

Como a delicadeza. Nem sequer é das palavras mais belas, melhor do que o adjectivo, sim. Mas por oposição à vocação vulcânica e viciante que é a torrente da expressão. Por vezes uma lava que incinera sem retorno. Compulsiva. A estilizada, calma, controlada e codificada arte da conversação ou do chá. Perdidas para sempre. Um refúgio intemporal das agruras intempestivas de ser rigoroso na expressão do sentir e sem medida, por vezes dizer o que não deveria caber nas margens de subjectividade do texto. Às vezes vasculhar penosamente esta língua à procura das palavras mais doces, mais perfumadas, mais macias ou embaladoras. E a luz não é macia senão ao entardecer. Ou à aurora. De resto é penetrante. Inquietante.
Delicadeza. O que é a delicadeza num território de inseguranças e de idiossincrasias. Um porto seguro para dois. Quaisquer dois. Um conjunto de indicações. De regras que suavizam o caminhar como sapatos de bom corte. A uns e a outros. Será o tempo? Será o vento que afasta de uma delicada expressão de existência mutuamente observada, para o não tempo de inúmeras questões a que dar tempo… O que é a delicadeza senão menorizar o não querer emoções que seriam demais. O que é a falta dela é mais fácil de dizer e mais conhecido. É só o desleixo existencial ou o ego numa espécie de terapia de choque. Só falta de jeito, só deixar cair como se nada fosse. Isto num mundo de demasiada comunicação. Demasiadas vozes, metade delas por motivos insólitos silenciadas sem resposta. Ignoradas. Sabe-se lá porquê. Somos assim cada vez mais. Por vezes sem querer. Por vezes sem termos de comunicação.

Por isso o território do excesso a querer derrama-se como uma higiene diária da alma.
Mas, sinto por vezes, uma enorme agonia de toda esta necessidade de expressão. Deste afogamento em pensamentos repetitivos, sempre em formas ligeiramente diferentes, insistentes, embaraçosos, impúdicos até. Que se sucedem em camadas de tonalidades que vão variando na definição dos mesmos padrões. Saltos no vazio sem rede. Escritos e pensamentos secretos de um enorme rigor momentâneo e que me aterrorizam mesmo no seu recato privado. E é então que tenho enormes reservas de silêncio exterior. Aparente, só. Solitário silêncio que não se redime das enormes quantidades de palavras que continuam a fluir por detrás dele. E a desarrumar-se sempre nos eternos papéis e pastas em word. A precisar de arrumação para sempre. E para sempre a precisar de arrumação, porque se desmultiplicam sem piedade. E no dia em que eu tiver tempo para todas essas palavras, talvez já não lhes entenda e sinta o tom. Por demais inúteis. Como tudo o que é demais. E em ciclos regulares aquela disposição a tender para a paragem, o abrandamento, o retomar tudo num tom mais suave, mais delicado. Surdos rumores a substituir avalanches emotivas. O prazer de nada ser preciso explicar, o culto do indolor. Da ordem. Do vazio. Da ordem do vazio. Do atenuar sentidos trágicos com uma camada leve de meios-tons. Tons degradados com o branco. Suavizados e quase indiferenciados. Calmos, apaziguados. Por oposição ao tumulto de demasiadas camadas de realidade, demasiadas vidas a viver todos os dias, demasiadas dependências da alma a visitar e a arejar, a necessitar de expressão. E o constatar que, na realidade nada de essencial se altera por magia da comunicação. Deste paradigma de clarificação da alma. Se esta é clara nada mais há a fazer do que viver. Por oposição a dizer. Talvez seja também isto que me situa em alguma da tristeza. A exaustão. O desalento de tudo parecer uma batalha sem quartel. A melancolia é um refúgio bom. No vermelho o fogo de uns dias, cinzas os outros.
Gosto das plantas lentas. Como a orquídea. Leva anos até sentir-se em casa. Custa anos a desenvolver-se. Morre muito devagar. As flores, quando começam a insinuar-se, são meses de crescimento lento. Um dia de súbito, abrem no seu esplendor inacreditável a partir de um pequeno botão. E ficam ali por largas semanas, inalteradas na cor na textura no porte. Belas, estruturadas e rigorosas como o são muitas flores. Mas mais lentas. Entes não significantes.

E o culto do chá. A estilização, o ritual, a delicadeza e o protocolo. Ou um outro culto, do estar, do permanecer do conversar fluido, sério. Do revelar. Do parar, do pensar como dizer. A arte do chá como a perdida arte da conversação. A codificação dos gestos ou a descodificação possível a partir do olhar, do medir, do interpretar escolas e mestres. Wenceslau de Moraes abordou pela tonalidade poética, a frescura lírica das coisas relacionadas com o chá no yo. Outras formas de tomar chá. Menos codificadas. À partida não codificadas. Menos significantes também. Mas esta, ainda por ora parece saída do tempo. Fora do tempo. Protegida em pavilhões edílicos, em recantos de jardim.

Gosto de pensar na cerimónia estilizada do chá. O rigor até hoje no Japão. Os princípios da harmonia (wa), do respeito (kei), da pureza (Sei), e da tranquilidade (Jyaku). Os quatro princípios que estruturam o ritual. O caminho do chá, como é designada a cerimónia, e dos vários nomes, aquele de que mais gosto, ou encontro para o chá, ou ainda, quando mais formal e longo o encontro, assuntos do chá. Dominados todos por uma enorme simplicidade, depuração e elegância de gestos. Medidos, aprendidos, perfeitos, apurados até ao limite. As formas mais sofisticadas do ritual podem durar quatro horas, e envolver muitos gestos, muitos utensílios, muitas regras. Como tudo o que é complexo susceptível do erro. Mesmo o chá, não pode dizer-se existencialmente de uma temperatura ideal. Idealizada. Na cerimónia do chá, no entanto, esse é um dos parâmetros codificados. Parte de um ideal a cumprir para regozijo de convivas perfeccionistas. Uma cerimónia em que se busca a harmonia e a serenidade. Gosto de pensar numa síntese das fórmulas básicas deste cerimonial. Na beleza construída para tal e que o enquadra. A natureza em redor, a construção de uma ordem que a envolve também. Uma ordem total. E formas simples. Cores claras. A pureza das taças. Ruídos calculados. Gestos. Fórmulas de delicadeza.

E face a este cenário de perfeição todo um outro quadro de emoções em permanente desajuste e reajuste, parece excessivo. E a violência crua da expressão. Como se fôssemos monstros que na intermitência dos dias levantam narinas fumegantes, fitam o olhar ígneo em redor, fincam garras num lado qualquer da vida e aí mesmo a incineram. E pensando bem, inútil. Ilusória sensação de comunicar e assim aproximar algo ou alguém a uma solidão indelével, pela magia da linguagem. Sem se saber de que serve ser-se transparente. Aparentemente mais reconhecível. Mais claro. E por vezes, sem se querer, o tal monstro terrível por ser enorme e enorme por ser terrível. E mais nada.

Mesmo aquém de um universo tão idealizado, a delicadeza é um conjunto de regras que atenua a dor. Que reserva e defende sem aproximação demasiada. Que não impõe. Que não oprime. Que no fundo deveria seguir os mesmos princípios definidos para o chá.
Mas gosto de pensar em rotinas ainda mais depuradas e idealizadas. Com mais silêncio e mais solidão. A harmonia da solidão e dos gestos simples longe do olhar.
Esta minha vida de partir todos os dias como um caixeiro-viajante com pedaços da vida na mala. Quando o que queria era estar aqui. Ficar por uns tempos num só lugar e numa só vida. Descer numa estação e ficar por uns tempos. E depois não ter nada para dizer. Como se fosse da inevitável imperfeição que se desenrolasse o discurso possível. O relato imparável. Tremendo engano. A solidão, aquela essencial, não passa de um comboio diário de que só nos apeamos pontualmente. Há uma reserva que todos os dias circula nele sem apelo. Talvez a mesma que faz extravasar emoções, incontidas tentativas de chegar a outros e de os trazer a nós. Excesso de vulnerabilidade, instabilidade, construção e destruição de modelos…Um colorido saturado, intenso e corrosivo. Ilusão de encontro. Cumes e baixios a percorrer alternadamente. Uma viagem imparável. Parar.

Planear voltar a um lugar. O mesmo. A única diferença o tempo. Agora. E a quantidade de tempo. Temer que a meio algo se esvazie. Para além de uma mala cheia de vida para arrumar e cadernos a repensar. O mesmo lugar, o mesmo hotel a mesma varanda. E tempo. E ausência, e fim, e silêncio. Mas só uma paragem, um intervalo, aquele entretanto, entre dois tempos.
Chegada a Saigão. O cansaço, a humidade, o sono subliminar e frustrado de muitas horas. O suor, o peso das malas. O choque do ar em fogo nos pulmões. A expectativa do reencontro com a saudade da viagem e de Saigão. Tudo envolvido numa toada de desconforto máximo. Por agora. O olhar fixo num ponto e num momento. Aquele preciso quarto de hotel. Aquele rigoroso momento depois de tudo entretanto, e do banho de todas as sensações dominantes por agora. E do banho que as lava e leva para o fundo do esquecimento. O momento de chegar à janela depois, fresca, apaziguada, perfumada no ar quente e sempre húmido, envolto em cheiros demasiado pesados, os tons lamacentos do rio, a sujidade. Momento perfeito de chegar à janela com uma chávena de chá. Recuar de novo para o cadeirão de rota por detrás do sombreado da persiana de vime. Sombreado com riscas muito juntas e que cobre de tons mais neutros ainda todo o exterior visível. E ouvir o bracejar lento e ineficaz da ventoinha no tecto. E sentir voltar a humidade na pele, de novo o calor imenso sem tréguas. Mas novo. Todas as outras sensações diluídas no banho demorado. Voltar ao momento da partida e chegar, enfim. Finalmente estar. Ali.

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