Um país, muitos sistemas

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]stávamos na segunda metade dos anos 90 e não era, naqueles tempos, vulgar questionar-se o conceito do espaço Schengen, da moeda única e, enfim, todo o projecto europeu. Era tudo cor-de-rosa, fazia tudo sentido – qual crise económica, imigrantes do Leste ou refugiados Sírios.

É nesse contexto que um sábio amigo meu, numa conversa sobre o futuro de Macau, diz-me assim: “numa altura em que na Europa abolimos as fronteiras e usufruímos da livre circulação, com Macau e Hong Kong a China vai criar fronteiras dentro do seu próprio país”.

Essa observação, aparentemente simplista, tinha na verdade um significado bastante profundo. Possivelmente por essa razão tenha ficado bem guardada e fechada nas gavetas do meu pensamento para que, passados quase 20 anos, pudesse ser revisitada para uma nova reflexão num cenário completamente diferente e, então, inimaginável.

O que vou contar passou-se recentemente. A história em si de piada tem pouco, mas merece ser contada pela extrema absurdidade da coisa e como testemunho das bizarras situações que podem ser criadas dentro de um país que decidiu ter dois sistemas.

Éramos ao todo quatro colegas de serviço, a caminho de Zhuhai para uma reunião de trabalho. Foi tudo meticulosamente planeado e discutido com antecedência, nomeadamente a agenda da reunião e a língua a utilizar, que tivemos o cuidado de solicitar desde logo que fosse o cantonense, evitando assim qualquer tipo de desvantagem que o eventual uso do mandarim nos poderia trazer.

Logisticamente, a minha assistente teve o cuidado de organizar o transporte para as Portas do Cerco, definindo rigorosamente as horas de partida, de regresso e os respectivos pontos de encontro, uma vez tratando-se da fronteira com o maior movimento em toda a China.

Tínhamos acabado de chegar às Portas do Cerco e, para qualquer pessoa de fora que olhasse para nós, não havia nada de invulgar no nosso grupo que se resumia a quatro sujeitos locais, todos falantes de cantonense, fisicamente orientais, com feições bastante semelhantes até, e que, por algum motivo, vão juntos à China saindo de Macau – tal como os milhares à nossa volta que, todos os dias, atravessam a fronteira de forma afogosa.

Só que afinal éramos todos diferentes.

Quando nos aproximamos dos balcões da migração, subitamente apercebemo-nos de algo que fomos incapazes de antecipar: cada um de nós ia, afinal, utilizar uma combinação distinta de documentos de viagem para sair de Macau e entrar na China.

O John (*), chinês natural de Macau, ia registar a sua saída com o BIR da RAEM e entrar na China com o wui heong cheng. (**)

O Brian, chinês de Hong Kong (aliás Hong Kong Citizen, conforme gostam de se denominar) ia com o BIR da RAEHK e o wui heong cheng, respectivamente.

Eu, maquista, tinha já na mão o BIR de Macau e o passaporte português com visto para a China de entradas múltiplas e prazo de dois anos.

E agora o over the top: o Albert que, apesar de ser chinês originário de Hong Kong, e tão local como qualquer um de nós, é na verdade natural de Londres, Inglaterra. Para todos os efeitos, é cidadão das terras de Sua Majestade e, como tal, para ambos os territórios ia utilizar o único documento de viagem que possui para o efeito: o passaporte da Grã-Bretanha. Com a particularidade de que, para entrar na China, ia até estrear um visto novo com direito a… duas entradas apenas!

Foi assim que no meio da típica confusão do primeiro andar do posto fronteiriço das Portas do Cerco, em que por alguma razão toda a gente atravessa a fronteira a correr – porventura com receio de uma eventual aparição do Coronel Mesquita liderando as tropas rumo à tomada do Passaleão – combinámos à pressa como ponto de encontro a zona logo à saída de Gongbei.

E separámo-nos.

Ora, o caríssimo leitor sabe muito bem o resultado dessas combinações feitas à pressa, pois certamente leu a edição anterior desta coluna em que me debrucei sobre a nossa abusiva dependência dos telemóveis para marcar encontros banais do dia-a-dia.

Quando cheguei a Gongbei e ao nosso suposto ponto de encontro, estava lá apenas o John. Foi o primeiro a despachar-se por ser portador dos documentos mais vantajosos para essa viagem em particular. Se o destino fosse a Europa, eu seria certamente o primeiro a chegar.

Ficámos então à espera dos outros dois que por alguma razão nunca mais apareciam. A dada altura veio um polícia que nos mandou embora, pois não podíamos permanecer ali parados à porta do posto fronteiriço de Gongbei. Pelo que descemos as escadas rolantes que dão acesso ao célebre centro comercial subterrâneo.

O que aconteceu nos 20 minutos seguintes podia facilmente figurar num filme do Woody Allen. A simplicíssima tarefa de comunicar a mudança do ponto de encontro aos nossos colegas Brian e Albert acabou por se tornar num verdadeiro bicho-de-sete-cabeças.

Excerto de diálogo entre o Brian e o John:

John: “Olha, estamos no centro comercial à vossa espera. Onde andam vocês? Sabes do Albert?”
Brian: “Eu já me despachei. O Albert, a última vez que o vi estava ainda na fila para foreigners… Centro comercial? Passei pelo centro comercial e não vos vi!”
John: “Passaste pelo centro comercial e não nos viste? Desceste as escadas rolantes?”
Brian: “Escadas rolantes? Não vi nenhuma escada rolante, estás na zona do tabaco duty free?”
John: “Não! Isso não é o centro comercial! Mas onde estás tu afinal? Já atravessaste a fronteira?”
Brian: “Estou numa praça e não vejo nenhuma escada rolante! Devo voltar para trás ou não? Passo pela migração outra vez?”
John: “Fica aí onde estás! Manda-me uma foto e já te dou indicações!”
Três minutos depois liga o Brian ao John:
Brian: “Não consigo enviar a foto! Estou com problemas de rede! Há pouco o Albert ligou-me, teve problemas porque preencheu mal a ficha! Mas fiquei sem perceber onde estava porque a chamada caiu!”
John: “Vai ao settings do telemóvel e liga o data roaming! Já deves estar com a rede da China! É por isso que não consegues enviar a foto!”
Brian: “Roaming? Mas aqui já conta como roaming?”

Depois de muitos telefonemas e finalmente reunidos, conseguimos ainda assim chegar ao local da reunião antes da hora. Pelo que decidimos ir tomar um café ao Starbucks para refrescar a cabeça e esquecer toda aquela desnecessária aventura transfronteiriça.

Do nosso pedido de macchiatos, lattes e frapuccinos em que identificámos as bebidas em inglês, a funcionária ao balcão pediu-nos que repetíssemos tudo, apontando para uma lista inteiramente escrita em chinês. Pois isto de se misturar cantonense com inglês é comum em Macau e em Hong Kong, mas na China nem tanto. E ela não percebeu nada do nosso pedido. “OK… Alguém sabe como se diz frapuccino em chinês?”

Naturalmente, viemos a ter a mesma dificuldade na nossa reunião. Felizmente, valeram-me os 12 anos em que trabalhei no Governo e aprendi a falar cantonense decentemente, comme il faut. Já os meus colegas não tiveram a mesma facilidade: habituados a misturar termos técnicos em inglês no meio do cantonense, em diversas ocasiões ficaram encravados. É de facto irónico, mas facilmente compreensível para quem conhece bem o nosso meio.

Apesar de tudo, a reunião correu bem e entendemo-nos perfeitamente. E a chave da questão está aqui: entendemo-nos porque nos quisemos entender; e ambas as partes fizeram um esforço para se entenderem.

Caríssimo leitor, raramente falo de política na minha coluna, mas hoje apetece-me afirmar com alguma firmeza que acredito verdadeiramente na fórmula “um país, dois sistemas”. Não me arrepia nem um pouco que dentro do mesmo país haja dois ou mais sistemas e uma grande heterogeneidade cultural entre as suas gentes.

Não vejo de facto problema nenhum e certamente não é isso que me faz sair à rua com a bandeira do antigo Leal Senado na mão a reclamar de forma bacoca o que quer que seja.

Estamos muito bem assim. E que venham outros 50 anos.

Sorrindo Sempre

Tanto build-up a antecipar a tão esperada conferência de imprensa da NASA, e afinal limitaram-se a anunciar – pela enésima vez – que existe água em Marte.

Só que desta feita, dizem eles, apresentam provas irrefutáveis: imagens espectaculares que mostram muita coisa. Excepto o essencial, que se calhar todos queríamos ver: a água propriamente dita.

Entre outros, a NASA demonstrou dominar a técnica do filme erótico-não-pornográfico, que mostra e não mostra.

A comunidade científica ficou excitada.

Eu também não.

Sorrindo sempre.

(*) Todos os nomes deste artigo são fictícios.
(**) Salvo-conduto emitido pelas autoridades chinesas.

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