Litânia. Oásis de monotonia

[dropcap style=’circle’]U[/dropcap]ma palavra bonita, litania. Como ladainha. Gosto de ladainhas e nem seria preciso dizer. Já lengalenga, da vox populi, lembra-me coisas de uma dolência entediada, de cadências lenganhosas. Lesmas e outras imagens empasteladas. Encadeados de palavras entorpecentes, músicas repetitivas, mesmo as do minimalismo. Isso sim. Outras como chicote. Também. E os ritmos cardíacos. Os da respiração. Os mais secretos das células que reorganizam o seu destino e que pode ser pavoroso, prefiro ignorar. Isso ou a eternidade. Há que escolher. Ilusões.
Conduzia de janela aberta. Uma pena leve poisou-me no casaco. Muito pequena. Pensei, Lá está ele. A brincar. É que às vezes tenho a sensação de que o meu anjo anda por aí. Eu deitava-a pela janela, por nada, que não me fazia mal, e ela voltava leve e teimosa. Lembro sempre a expressão de desagrado da minha avó: “Penas”… Ela pensava, pesares. Mas era mais uma pequena penugem, daquelas por debaixo das outras penas, e que servem para manter a temperatura. Faz sentido porque já sopra aquela aragem fresca que arrasta as folhas e anuncia dias piores. Se fosse uma pena não distinguiria se era da asa ou do coração. O anjo mais sorumbático, ensimesmado, macambúzio. Sempre cabisbaixo e embezerrado. Acabrunhado. Mas ao seu modo, com o gosto de brincar. Não há nada mais irresistível do que um ser cuja alma brinca por detrás de um fácies soturno. Supondo que os anjos tenham alma. Isto dos anjos precisava de ser mais bem explicado. Mas é uma coisa de mais de trinta anos, também não o vai ser por agora. Lá atrás, professores de pintura entenderam a questão plástica, o vôo, a elevação das ogivas em flecha, os movimentos, os ritmos e pesos da questão. Plástica. Depois caíram. Os meus anjos. Vieram como tinha que ser. Já um filósofo, amigo do meu amor à época, heideggeriano daqueles sempre de mão na cabeça a suster reflexões demasiado pesadas, dizia reflectirem a minha necessidade de salvação, personificada nele – o meu amor à época – Que parvoíce medonha, foi o que pensei. Do amor uma pessoa não quer ser salva, quer a possibilidade de se perder e não menos de se encontrar. Ou é a mesma coisa. Mas isso ficou para pensar mais tarde e ainda não chegou a altura. Suponho.
Tenho vários anjos. O que ficou para sempre naquela idade logo a seguir à infância em que nunca o conheci, o que ficou para sempre naquela idade de idoso, que foi a idade de sempre, em que sempre o conheci. Curiosamente talvez a idade que tenho hoje ou menos ainda. E por isso me sinto estranha. Com o que em mim cresceu e com o que em mim não cresceu. Dois escuros e um luminoso. Nos olhos, quero dizer. Dois, escuridão e um, claridade, de um verde transparente e sonhador. O mais sóbrio deles, afinal. Estão ali quando consigo invoca-los. Ou o permitem. Mais nada. Aqueles cujo olhar gosto de imaginar que me acompanha. Por aí. De longe, acho. Vindo em continuidade do passado e passando por mim a mostrar não o caminho, mas que há caminho.
Construção minha. Que existam como tal e mesmo assim. Que quero deles, nada. Minto. Que me embalem. Porque das pessoas quereria sempre se calhar demais. Mas é um work in progress. E não quero deles nada para não os comparar com elas.

Gostar de litanias. Orações no culto cristão. Formas de rezar em que se responde com uma invocação breve e repetida, às preces que desfia quem dirige a oração. A repetição, a insistência, a súplica veemente. Na Liturgia das Horas, salmos e cânticos com esta forma na sua estrutura. Embaladora. A todas as horas do dia. Das Laudes às Completas. Para não desfocar. Ladainhas, com um poder hipnótico que induz ou agudiza a fé. Com palavras que não falam comigo. Mas o rogo e a súplica, assumidas em abstrato sem se as dirigir a ninguém, a nenhuma entidade, são talvez um desabafo de tonalidade possível. Como dizer Meu Deus, sem necessariamente invocar o possivelmente inexistente.
Ou sinónimos daquilo que é repetitivo e enfadonho. De ramerrame. Da vontade de cair em letargia. Do que embala em forma de música, do que embala e repetidamente se ouve em segredo por tão excessivo. Do embalo das palavras. De conduzir sempre pelos mesmos caminhos mesmo que mais longos. Só pelo hábito e pelo conforto. De resistir à mudança. Alvin Toffler refere-o na Terceira vaga. Demasiada aceleração. Demasiados dados em confronto. Demasiadas mudanças, demasiada necessidade de adaptação. A alma reage como pode. Aquele hábito estranho de pessoas que se embalam, balançando o tronco para a frente e para trás. Observado em alguns portadores de autismo. Li um dia o relato de alguém com uma dessas síndromas, que explicava lucidamente a razão de ser. Demasiada sobrecarga de informação, de dados sensoriais a processar. Demasiados dados criam uma perturbação inconsciente e a necessidade de produzir uma reacção. Uma espécie de drenagem do excesso.
E os outros que secretamente se embalam sentados em banquinhos baixos lendo pelas horas adiante como eu, à janela do quarto que tinha janela, porque o outro não tinha. Pelos anos fora. Quando liam, e a vida em si não era demasiada só por si, para lhe incorporar a vida de ficção. Personagens, lugares, sentimentos. Prisões alheias. Que depois deixaram de ter lugar. À janela. No banquinho azul da infância. Sem diagnóstico formado.
Ou patinar de costas. Talvez por não se sentir tanto a resistência do ar. Descrever elipses vezes sem conta, em torno do rectângulo de um ringue semi-vazio, ganhar velocidade – o mais perto de voar que experimentei – até ao momento em que um grão de areia se imiscuía nos rolamentos das rodas e a queda era brutal. Mas era tão bom. Lá atrás.
Melopeias, litanias, cantigas de embalar. Porque a vida me fez divergir e às vezes é demais. Gostar de ladainhas, de coisas que embalam porque existe por vezes a nostalgia do anterior à luz. Diria do útero materno se não fosse excessivo. Eventualmente a casa a que não se pode querer conscientemente voltar. O embalo da música que inconfessadamente repetimos até à intoxicação. Intoxicações várias, que podem ser de várias ordens sensitivas. Abanarmo-nos na infância como muitos continuam a fazer vida fora. Diagnosticados de autismos, síndromas várias que dificilmente entendemos porque em fuga dos padrões. Que padrões entendemos? E continuar a embalarmo-nos na juventude. Sentados em bancos pequenos que deixam o torso livre para tal, em horas de mergulho suicida na leitura. Alheamento completo do mundo. Pequena agenda, irrelevante como distúrbio. Outra espécie de retorno ao útero. Ou de mergulho para morrer temporariamente. E custar medonhamente o acordar. Coisas secretas.
Porque é que algumas pessoas custam a levantar-se da cama. Porque querem hibernar. Independentemente de amores e desamores. De objetivos a cumprir com paixão ou desafios a encarar com fervor. Dificuldades a ultrapassar ou o alívio final de chegar a algum lugar. Há pessoas que sentem tudo como demasiado difícil naquele momento de acordar, em que se pode reagir de imediato ou adiar até ao limite do possível a decisão de assumir o dia.

E rotinas. A única que tenho sagrada, é uma caneca de café com leite ao acordar e quatro cigarros. Cinco, seis. Ou ser milongueira. Sempre que a vida dá. Para sempre desde que se começou e por ser a sério. As rotinas são boas ou talvez sinal de afogamento à vista. Ou de que se começa a ter uma certa idade.
Dantes eu lia a tempo inteiro. Quase. O resto acontecia nos intervalos. Hoje não leio. Mas parece que escrevo a tempo inteiro. Quase. O resto arrasta-me contrafeita. Depois esqueço a contrariedade porque outros apelos se sobrepõem. E muitas vezes só por dentro. E por isso as frases dissolvem-se totalmente. Ou só uma parte. Ou misturam-se contorcidas umas nas outras no espaço limitado e labiríntico em que se movem. Umas por cima das outras. Às vezes transparentes deixando vislumbrar fragmentos das que ficaram por baixo. Para trás. E por vezes escrevo-as. Num semáforo. No caminho para apagar o fogão quando um cheiro a queimado me avisa de que me perdi por uns tempos. Sempre sabendo que não pode ser até me apetecer. Até me fartar. Eu gostava de me sentar a escrever para sempre. Nunca seria. Mas como se fosse.
Portanto, dantes eu lia. Depois foram as palavras, já não vindas de baixo, do papel dos livros com cheiro a açúcar mascavado, mas de cima a escorregar à procura de um papel com o mesmo aroma. Que já não há. A tomar esse lugar no banquinho que poisado por ali, e um tanto esquecido e abandonado, ou por estar há um tempo longe da janela, e do quarto dos pais onde abria essa janela, de cortinas branco leitoso com muitos furinhos por onde entrava quase tudo o que avançava do lado de fora. Pouco espaço para palavras alheias. Mais perturbação ainda a somar às que se desprendem ininterruptamente, maçadoras insistentes, esquecidas, recuperadas, coladas provisoriamente em papelinhos. Tantas palavras. E agora a terem que sair de novo. Não porque sejam especiais ou úteis as palavras, mas porque a vida em si é mais difícil. Dispersa, desarrumada. E elas precisam de escorrer por algum lado. Ocupam pouco espaço. Não necessitam de nada, não pedem nada. Só sair. Libertas. Finalmente silenciadas, a dar lugar a outras. Escrevê-las. Num lugar sossegado, sem horários e sem interrupções. Como se para sempre. Ou cristalizar. Se ao alcance de humanos, seria bom. E luminoso.

Ou desenhar, como naquele papel de cartucho cinza claro com risquinhas vermelhas ou não, em que desenhava ou, outras vezes, recortava roupas de boneca. Acho que só tive outro tipo de papel quando entrei para a escola. Aqueles cartuchos a cheirar, eles sim verdadeiramente a açúcar amarelo. E uns lápis pequeninos de bico grosso que ele me emprestava e que usava para traçar firmes e rigorosos traços na madeira. Saídos dos seus olhos transparentes e pensativos. O cheiro das raspas encaracoladas da madeira aplainada. Ofereceu-me a primeira plaina e um martelo pequeno, esguio, feitos por ele quando entrei em Belas Artes. O meu Kit de sobrevivência tomou rumos ecléticos.
Escrever. Um outro culto. O das coisas. Das coisas em si e das coisas pelo sentido. Das palavras pelo sabor e das palavras pelo sentido. Do lugar, espaço e tempo. Saber e não saber. Invasão de significados e a perturbação do excesso. Das ramificações divergentes. Exponenciais. Das demasiadas coisas em si. Dos excessivos sentidos nelas. Dos múltiplos lugares. Seres. Espaços e tempos passados e futuros. A perda de um e a perda do outro. Cada vez mais saber não saber. E querer fugir à invasão, à consternação perturbada da multiplicidade. Da complexidade revirada sobre si mesma numa confusão de interior e exterior, contínuos. Interior e logo já exterior sem transição. Interior, exterior. Uma coisa e uma outra coisa nela ou para além dela. Alternados só pelos pontos de vista dependentes do tempo que não os pode fazer coincidir. Como Escher.
A vontade de escrever as coisas todas. As pequeninas sobretudo. Contadinhas e esmiuçadas à medida que se sucedem. Na inteireza do tempo. Em tempo real.
Litanias. Melopeias monótonas. Às horas. Minutos. Segundos. Agora. Aqui. O abismo do infinitamente pequeno fragmento de instante, partido e repartido a tender para o nada. O inalcançável presente. Que passou. Porque saltamos do passado- futuro, para o futuro-passado. E não estamos num nem noutro mas de passagem. Fugaz.

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