Da podridão

[dropcap style=’circle’]É[/dropcap]como se só o dinheiro contasse. Só o dinheiro tem valor nesta esquizofrenia em que Macau se tem arrastado. O dinheiro dos outros é muito e o meu não, o dinheiro que se deu a ganhar aos outros foi tanto e fez o meu dinheiro ser menos. Mas depois vem a austeridade e, afinal, não é nada bom que os outros não façam muito dinheiro, porque se os outros não têm muito dinheiro eu terei ainda menos, eu que conto os trocos que trago no bolso do casaco. Macau vive nesta coisa de não saber como sair da monotonia financeira, a chatice da pataca, a pataca, a pataca, só a pataca. E o dólar de Hong Kong também.
Macau não se diversificou (jargão político número um) e Macau viu o fosso entre ricos e pobres aumentar consideravelmente nos últimos anos (jargão político número dois). Macau não aproveitou os anos do crescimento económico pujante (que agora, ao que parece, as vacas são magras) para trabalhar nas áreas em que mais mudanças são necessárias: a segurança social, o direito do trabalho e a educação sobretudo daqueles que mandam, directa ou indirectamente. Não se aproveitaram os dias de glória para negociar a favor de quem não tem cartas na manga. 25915P22T1
Ainda a protecção da parentalidade. Na semana passada, uma mulher, mãe de filhos, mulher de empresário, caridosa de profissão, deputada à Assembleia Legislativa, veio defender publicamente que a licença de maternidade – esses dois meses incompletos em casa a que as mulheres têm direito – não deve ser aumentada. Melinda Chan tem um argumento: as dificuldades com que se deparam as pequenas e médias empresas. Esta nobre causa económica move-a muito mais do que as dificuldades das pequenas, médias e grandes famílias. O que é preciso é produzir, preferencialmente sem grandes custos. No fim do dia, as patacas é que contam.

[quote_box_left]Agora que órfãos, viúvas e desprotegidos choram sobre as previsões trágicas para a economia local, aqueles a quem não interessa que Macau saia da idade das trevas põem o nariz de fora à descarada e abrem a boca sem pudor. Macau que continue a ser das trevas, que as patacas é que importam[/quote_box_left]

Fosse Melinda Chan um caso raro e estaríamos nós, todos nós, muito bem. Sucede que não é – a filosofia dominante entre quem manda, directa ou indirectamente, consiste na pouca consideração pelos problemas dos mais fracos. É a lei da pataca, que o dinheiro é que conta. Não se aproveitaram os dias de glória dos casinos para se mudar mentalidades na concertação social.
Agora que órfãos, viúvas e desprotegidos choram sobre as previsões trágicas para a economia local, aqueles a quem não interessa que Macau saia da idade das trevas põem o nariz de fora à descarada e abrem a boca sem pudor. Macau que continue a ser das trevas, que as patacas é que importam, os filhos dos outros crescem com mãe ou sem mãe em casa, com o pai presente ou noutro sítio qualquer.
Patrões e trabalhadores não se conseguiram entender, ao longo destes anos, em relação ao que devem ser as contribuições para a segurança social. Patrões e trabalhadores ainda não foram capazes de definir um salário mínimo universal que tenha, entre outras virtudes, a capacidade de disfarçar a desfaçatez. Patrões e trabalhadores não se entendem e o Governo, sujeito passivo nestes processos de negociação, foi deixando correr a tinta como mais jeito deu a quem mais manda.
Depois há casos como o Dore, que revelam a dificuldade em aceitar que o teu Mercedes é muito maior do que o meu. Numa cidade em que o dinheiro é fácil, não há que seguir pelas estradas mais difíceis, atalha-se e isto vai correr bem, há histórias no passado que acabaram mal mas o passado já passou, vou ali remediado e às tantas ainda volto rico. Alguns não voltaram porque se esqueceram que, em mundos de contornos difíceis, as coisas nunca são como parecem e já se sabia que, mais cedo ou mais tarde, algo deste género iria acontecer. Nesta cidade não há santos e a caridade pratica-se ao estilo de Melinda Chan.
A ditadura das estatísticas assusta os mais optimistas e há mesmo quem diga que isto já deu o que tinha a dar. O pessimismo que se instalou é de uma extraordinária conveniência à manutenção da podridão. Este Governo de boas intenções feito vai ter a tarefa dificultada por quem não quer, de modo algum, deixar de ganhar patacas, muitas patacas, dinheiro, imenso dinheiro. Afinal, pobres dos pequenos e médios e grandes empresários que já se vêem em apuros porque as mulheres engravidam e ficam confortavelmente em casa a olhar para desinteressantes recém-nascidos, num desmerecido ócio subsidiado com o suor dos patrões que labutam de sol a sol. E ainda há quem ande por aí a falar de salário mínimo. São as patacas, estúpido.

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