VozesPrivacidade ou transparência? Fernando Eloy - 4 Ago 2015 [dropcap sttyle=’circle’]P[/dropcap]arece-me uma questão essencial nos dias que correm e um absurdo advogar as duas. A sensação que tenho é que a transparência vai acabar por ganhar. Transparência absoluta, isto é. De governos, de corporações e de indivíduos. Não me parecem conceitos compatíveis. Não me parece sequer que a privacidade seja viável no mundo que se vive e, especialmente, no que se avizinha. Provavelmente ainda podemos passar por um temível buraco negro onde nada é transparente antes de conseguirmos ver alguma luz, mas não me parece que o futuro seja esse. O grande paradoxo disto tudo é que são precisamente as mentes mais liberais que mais advogam… as duas. Para um conservador a questão pura e simplesmente não existe – privacidade e pronto, pública e privada. Mas para um pensador liberal a transparência de corporações e governos é um dado absolutamente fundamental tal como a preservação da nossa privacidade individual. A primeira por querermos governos e empresas mais justas e, acima de tudo, mais responsáveis. A preservação da privacidade de cada um precisamente para prevenir comportamentos abusivos de corporações e governos. Mas também para impedir perseguições políticas, religiosas ou outras, para prevenir a invasão da nossa esfera individual por “marketeiros” e, inclusivamente, por questões tão prosaicas como o acesso ao emprego numa altura em que é cada vez mais frequente um candidato, ou funcionário, ser sujeito a uma análise criteriosa do seu comportamento nas redes sociais e alvo de discriminação, ou despedimento, se elas não se ajustarem aos princípios do empregador. A privacidade do indivíduo é, portanto, um direito fundamental de uma sociedade que se pretenda moderna e tolerante. Parece-me claro. Ou não. A questão não é a do direito, perfeitamente compreensível, a questão é onde a privacidade individual leva e até que ponto ela é vantajosa para o bem comum e, consequentemente, para o bem de cada um de nós. Haverá com certeza muitos que concordarão que a possibilidade de termos uma persona para a família, outra para os colegas, mais uma para os amantes e ainda outra para os amigos de café faz parte das nossas liberdades inalienáveis e, naturalmente, essa possibilidade deve ser preservada a todo o custo. Mas faz mesmo sentido esta multiplicidade de comportamentos? Todos nós, ou a grande maioria, o pratica mas faz mesmo falta? Que temos nós a ganhar como indivíduos e, principalmente, que temos nós a ganhar como sociedade com esta multiplicidade de personas? Se para o indivíduo pode gerar a incapacidade de alguma vez fruir completamente a persona que realmente é, para os seus interlocutores cria realidades alternativas as quais duvido nos façam falta. No limite, temos aquele testemunho típico do vizinho: “Não, nunca dei por nada, era uma pessoa extremamente calma, muito cordata…” mas acabou de assassinar a família ou de colocar uma bomba no metropolitano. Eu sei, isto é o limite. Mas podemos ir para a versão leve do marido que se casou para fazer figura perante família e sociedade mas na realidade é gay e vive amarfanhado naquela realidade alternativa que até obriga a mulher a servir para fora. Um dia é apanhado com a boca na botija e… pronto, vida desgraçada. A dele, a da mulher e até da avó de Trás-os-Montes que já tinha desconfiado da coisa e até dava de barato mas não vai conseguir aguentar a vergonha lá na aldeia, agora que toda a gente sabe. Foi ele, podia ter sido ela. (Estes meus artigos seguem rigorosamente critérios de igualdade de oportunidades mas não necessariamente de quotas…) Voltando à vaca fria, se é que ela alguma vez aqueceu, nós próprios somos os primeiros a violar a nossa privacidade ao postarmos nos facebooks e twitters a nossa vida e mais um par de botas. No fundo, e aparentemente, a necessidade de não ser privado parece maior do que a do ser privado. Dirá agora o leitor que isso é uma necessidade de afirmação, de combate à solidão, até de exibicionismo não fazendo parte das características gerais da populaça. Pode até ser, mas é cada vez mais frequente e penso que terá de concordar comigo neste ponto, senão atente nisto: Em 2010, o homem-cadeira da Google, Eric Schmidt, dizia que desde o dealbar da civilização até 2003 tinham sido recolhidos 5 exabytes (Eb) de informação (sendo 1 Eb igual a 1 quintilião de bytes) e que naquela altura já eram recolhidos os mesmos 5 Eb mas a cada dois dias… Há quem diga que ele exagerou um pouco mas não por muito pois hoje, segundo dados da IBM publicados no ano passado, em 2012 o Google recebeu mais de 2 milhões de pesquisas por minuto valor que dobrou em 2014… Hoje, o Google recebe mais de 4 milhões de pesquisas por minuto provindas da população internáutica mundial estimada em cerca de 2.4 biliões de utilizadores. Mas estes números, naturalmente, tendem a aumentar com mais países cobertos pela internet e com a proliferação de acessos móveis, porque hoje apenas 40% da população mundial tem acesso à Internet… E a partilha de informação, porque é essa razão que me levou para estes meandros da “Byto-contabilidade”, num futuro não muito distante vai conhecer contornos completamente diferentes ao ponto do mesmo homem-cadeira dizer este ano na conferência de Davos que a Internet como a conhecemos vai desaparecer em breve, e justifica: “Há tantos IP’s, tantos dispositivos, sensores, coisas que nós vestimos, coisas com que interagimos que nem sentimos. Vai ser parte da nossa existência a todo o momento. Imagine que entra numa sala e a sala é dinâmica. E que com a sua permissão, e por aí fora, está a interagir com as coisas que se passam na sala.” Isto já nem sequer cheira a ficção cientifica. É uma questão de meses, nem de meia dúzia de anos. Em resumo, todos nós sabemos que esta dinâmica de partilha e troca de informação deixa pegadas digitais. Algures, alguém com o devido algoritmo conseguirá compilar sem grande esforço toda a nossa vida internáutica que é, cada vez mais, a vida toda. Sem grande esforço, o nosso retrato virtual pode ser pintado por um curioso na Índia ou por um policia em Chicago. Há umas semanas, um grupo de hackers afirmava que em breve vão conseguir publicar as preferências porno de cada um de nós, ou daqueles que o consomem, e que não me parece serem tão poucos assim a julgar pelos dados que o Pornhub vai frequentemente divulgando – Ui! A fronteira da sexualidade, esse grande tabu. Já nem esse escapa. A perda de privacidade é um processo em curso e, parece-me, inevitável. Por mais que possamos argumentar em favor dela nós somos os primeiros a dinamitá-la. Por isso as minhas questões: a privacidade é compatível com a transparência? Será que precisamos realmente de privacidade? Nesta fase sim, porque a informação pode ser usada contra nós, porque os governos não são suficientemente transparentes, nem de confiança, porque muitos empregadores são uns cretinos. Mas existe alguma razão de facto para as reuniões de um conselho ministros não serem públicas, por exemplo? Só as vigentes, ou seja, não pode ser apenas um governo a tornar-se transparente têm de ser vários. Todavia, caminhamos a passos largos para um mundo onde a transparência será cada vez maior e a privacidade vai provavelmente acabar no caixote das recordações. Estamos no limiar de uma nova era da história da humanidade. Em boa verdade, quando ninguém tiver nada a esconder que mais resta para esconder? Que chantagem será possível quando todos soubermos tudo de todos? O conhecimento dos hábitos sexuais do vizinho, ou o ordenado do colega passa a ser informação tão corriqueira que mais ninguém ligará. Talvez seja o caminho para uma vida mais plena, mais verdadeira, mais próxima do que somos de realmente e não consigo imaginar nada melhor do que isso. O único travão que nos atira para a necessidade da privacidade é o medo. Mas medo do quê? Por mim, concordo com o Astérix, só tenho medo que o céu me caia em cima da cabeça. MUSICA DA SEMANA Androcell – “Process of Unfolding” “We experience the feeling that this body right Here and now, is only a cross- section of a Process that has been going on for Four billion years on this section of space It’s not a story about processes out of control It’s a story, which gives honor To every part of the unfolding experience” (…)