VozesUma paz nada celestial Fernando Eloy - 23 Jun 2015 “Pela primeira vez a China acreditou que podia mudar o curso do Yangtzé. Mudar o velho rio que se agarra a uma lua velha. Mudar regras arcaicas que não são melhor nem pior mas exactamente o mesmo. A mesma crueldade, a mesma dureza inquestionável contra as suas gentes e a raça humana.” em “The Night That Hides Things From Us” um conto de Julie O’Yang* [dropcap type=”circle”]T[/dropcap]odos fazemos asneiras, umas mais graves outras menos. Mas nem todos nós somos capazes de pedir desculpa. Por orgulho ou por medo. Ou ambos. Medo de parecermos fracos, medo de darmos munições ao outro lado, medo de mancharmos a reputação, medo do embaraço, medo de sermos mal interpretados… Medo, medo, medo!… Mas quando passamos do nível pessoal para o dos Estados esses medos ganham ainda mais peso. O que, apesar de normal, ou corriqueiro, deve ser entendido como um supremo ridículo. O dia 4 de Junho de 1989 é uma das piores recordações destes meus quase 50 anos. Muita coisa me impressionou na vida, várias mortes chorei, diversos acontecimentos me chocaram mas o que se passou em Tiananmen naquele fatídico dia de Verão está lá bem em cima no rol dos horrores. Talvez porque fosse novo, talvez porque fosse jornalista e portanto muito mais próximo da notícia, talvez… Certamente porque foi um evento infernal para o qual nenhuma palavra parecia servir para descrever o terror que nos assaltava. Lembro-me de estarmos na redacção transidos com as imagens que nos chegavam no feed internacional. Aquela imagem do Jeff Weidener, agora icónica, do até hoje incógnito indivíduo que resolveu enfrentar os tanques com dois sacos de compras na mão – a irredutibilidade chinesa perante a magnitude avassaladora do inevitável, a coragem quase irracional de um simples indivíduo que na sua alma sonhava deter sozinho um dos piores episódios da história humana, manteve-nos num suspense brutal, com uma vontade enorme de estar lá para o ajudar. A “Cortina de Ferro” tinha praticamente acabado de cair na altura e, como sempre que algo dessa magnitude acontece, viviam-se momentos de optimismo no mundo. Por isso também nós, naquela redacção, partilhávamos da ingenuidade do homem da camisa branca, acreditando piamente que Praga não iria ser revisitada naquele dia. Mas foi… O impossível tornou-se possível à frente dos nossos olhos. O horror instalou-se. Até hoje. Ler histórias que incluam os acontecimentos de Tiananmen ainda agora me causam dor. A dor do “podia ter sido diferente”, a dor de amores despedaçados, de jovens com as suas vidas terminadas daquela forma abrupta e brutal. A dor das rajadas de metralhadora sobre putos que sonhavam. “Vivia-se um clima de festa”, recordou mais tarde Cui Jian, “Quando subi ao palco senti que tinha chegado a uma grande festa”, disse. Na redacção havia quem chorasse, o ambiente geral era de incredulidade e revolta e esses sentimentos estão tão presentes hoje como há 26 anos atrás. Não consigo evitar um arrepio ao revisitá-los na memória. Foi mau demais e não está resolvido. Ainda a semana passada o Hoje Macau noticiava que o último preso do conflito, Miao Deshu, só talvez seja libertado no próximo ano. Foi preso com 25 anos, alegadamente por ter arremessado um contentor contra um tanque. David contra Golias. Sabemos que a China de hoje não é a China de 1989. Sabemos também que a China de hoje pretende afirmar-se no plano internacional como um país moderno, justo e equilibrado. De um ponto de vista clássico, pedir desculpa pelo sucedido surgirá aos olhos do poder chinês como uma fraqueza insuportável, como o entreabrir de uma porta que tanto temem, ou seja, a do regresso dos protestos de há 26 anos especialmente agora com o que vai observando em Hong Kong e com o que sabe passar-se em casa. Mas o método da avestruz não resolve nada, a desculpa, essa sim, liberta. A capacidade de pedir desculpa é fundamental se pretendermos manter relações saudáveis. Neste caso com o seu próprio povo e com o resto do mundo. Numa relação entre um estado e a sua população, tal como ao nível pessoal, a noção de que o outro lado não está disposto a assumir as suas próprias culpas gera apenas desconfianças e más-vontades. Podemos sempre dizer que o governo chinês quis manter a ordem pública, mas a desproporcionalidade dos meios empregues e a forma como o foram matando milhares de jovens que apenas ousaram sonhar com um mundo novo, como um dia Mao Zedong ou Sun Yat Sen também o fizeram, foi tão díspar que esse argumento não pega. Nem aqui… nem na China. É impossível construir uma relação sã de amizade com esqueletos no armário – caso contrário, porque insiste tanto a China nas desculpas (justificadas) do Japão pelos crimes da Segunda Guerra Mundial? Apenas para enfraquecer o Estado nipónico ridicularizando-o ou para cimentar um clima de paz e boas relações? Eu prefiro acreditar na segunda possibilidade. Por isso, a ideia que fica desta crispação do Governo chinês em relação a Tiananmen é a de que espera que o milagre do tempo faça desaparecer a memória. Mas isso seria uma ingenuidade e um Estado não se compadece com ingenuidades porque, mais tarde ou mais cedo, os esqueletos saltam do armário e, quando assim é, e a China já o viu por demasiadas vezes, eles vêm vingativos. Mais vale desmantelá-los e enterrá-los enquanto é tempo. Tínhamos todos a ganhar, na China e no resto do mundo porque uma das melhores formas de liderar é pelo exemplo e se o governo chinês conseguir de uma vez por todas encarar de frente a triste história de Tiananmen, o exemplo que dará ao país e ao mundo terá, certamente, um eco positivo muito superior ao silêncio ensurdecedor do momento que apenas serve para dar vida a esses tenebrosos esqueletos que se vão acotovelando no armário com os da Revolução Cultural. A China de hoje pede aos seus cidadãos que sonhem, mas nenhum sonho será suficientemente grandioso enquanto este pesadelo não estiver resolvido e o mundo precisa de uma China que sonhe e seja capaz de iluminar um futuro melhor para todos.