Bateu, está batido

[dropcap style≠’circle’]I[/dropcap]

Leiam, leiam até ao fim.

Ele tem nove anos.

Ele tem nove anos e há dias, quase todos os dias, em que não percebe bem onde está, que mundo é este. Eles falam alto, os adultos, falam muito e não o percebem. Ele também tem dificuldade em se perceber. Há coisas que faz e que não queria fazer. Arrepende-se muito depois, mas só depois. Na altura, nas alturas, não sabe onde está. Ele bate noutros miúdos de nove anos, nas miúdas também. Não se defendem tão bem, as miúdas. Mas ele não pensa nisso. Tem nove anos e aos nove anos há dias em que não percebe muito bem quem é.

Foi assim na semana passada. A campainha tocou, saiu da sala, ele tem dias em que não gosta da escola, tem dias em que não gosta de ninguém. Bate nuns miúdos no recreio. Neste recreio há espaço para estas coisas acontecerem. Quase nunca há ninguém a ver e ninguém o agarra. Ninguém o agarra. Bateu nuns miúdos e numas miúdas, o sexo não interessa, bateu, está batido. É assim que acontece, ele só tem nove anos e sabem lá os outros o que lhe passa pela cabeça, os sonhos e os pesadelos em que se movimenta.

O pior veio depois. Na sala. Os outros. Os outros miúdos e miúdas de nove anos. Ele ouviu dizer que ia sentir na pele o que andou a fazer aos outros miúdos. Ele não sabe bem se as palavras foram mesmo estas, mas foi isso que percebeu. E os miúdos bateram-lhe. Uns não queriam. Ninguém queria. Ele também não quer bater mas bate. Bateu, está batido. Bateram-lhe. E havia pernas grandes a assistir.

Ele tem dias em que não percebe os adultos: estava um adulto a comandar a vingança. Estava um adulto a dizer bate, bate. Bateu, está batido. Ele não sabe bem o que é a vingança. E não percebeu que lição é esta, não está nada escrito no quadro, a miúda não lhe quer bater, mas está a bater-lhe, a miúda foi para casa a chorar. Ele não sabe que lição é esta: a mãe diz-lhe para ele não bater. Aquelas pernas daquele adulto são tão grandes quanto as pernas da mãe dele. E aquelas pernas têm uma boca que diz o contrário, bate, bateu, está batido, ele não percebe que lição é esta, toda torta, só ouve que é para bater com mais força. A mãe não está ali.

Ele tem nove anos.

[dropcap style≠’circle’]II[/dropcap] Eles não têm nove anos.

Eles não têm nove anos. Têm muitos. Não cabem nos dedos das duas mãos. Nem nos dedos das duas mãos mais nos dedos dos dois pés. São grandes, enormes. Andam em carros e têm casas e têm filhos. Têm filhos com muitos anos e têm filhos com nove anos.

Têm filhos com nove anos e alguns chegaram a casa a chorar. Vinham da escola com a lição torta. Tinham um conto para contar e, apesar de ser quase natal, não havia renas nem trenós nem meninos jesus em palhinhas deitados. Sabem todos o pinheirinho e as outras músicas todas de cor nas várias línguas que se ouvem naquela escola, mas não era isso. Era a lição torta.

Ele tem nove anos. Sabes, aquele que bate. Bateu, está batido. Disseram-me para lhe bater. Eu não queria, pai. Ela não queria, pá. Sabes, aquele miúdo do costume. E eu bati-lhe, pai. Ela bateu-lhe, pá.

Ele tem nove anos mas é complicado. Nem vale a pena falar no assunto. O assunto não é meu, não me diz respeito. Os outros que resolvam a coisa, eu cá sei de mim e dos meus.

Ele tem nove anos mas é complicado. Deixe lá isso, já se sabe como é, estas coisas passam, não foi bem, não se esteve bem, mas andamos aqui todos há muitos anos, as coisas são assim, amanhã logo se vê.

Ele tem nove anos mas é complicado. As pessoas são todas complicadas, não é? Um dia eles, amanhã nós, toda a gente tem dias difíceis mas eu não sou assim, cá em casa está tudo em ordem, ele chorou mas não faz mal, também chora no cinema, deixe lá isso, deixe tudo como está.

Ele tem nove anos e é complicado, como complicadas são as sombras do mundo de adultos em que vive. Não saias da frente que me destapas, se me viro e tu não te viras ao mesmo tempo vêem-se as minhas costas no teu peito, sombras que somos sempre, sombras que nos protegemos, sincronizadas, no silêncio. Este silêncio poluído.

Ele tem nove anos e um dia destes já não tem, já tem mais, isto ainda lhe passa, ou então não, um dia destes até se vai embora, nós continuamos todos por cá e é deixar estar tudo como sempre foi, somos todos amigos, isto é tudo tão bonito, tão bonito, é pinheirinhos e o natal vem aí, esqueça lá isso que não interessa a ninguém.

Ele tem nove anos.

Leiam, leiam tudo outra vez.

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António Saraiva
António Saraiva
6 Dez 2016 16:42

É de um miúdo da Escola Portuguesa?