A bizarria como fonte

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]e cada vez que vou ao Porto, acontecem-me coisas estranhas. Na verdade, acontecem-me coisas estranhas em todo o lado. Para a maior parte das pessoas, a ingerência cíclica da bizarria nas suas vidas é, no mínimo, um indesejado impedimento de que se livram tão depressa quanto lhes é possível: é aquele maluco no autocarro que afiança transportar material radioactivo nos bolsos e ser perseguido por todas as agências de espionagem mundiais; é a velhota no talho a pedir repetidamente ao incrédulo mas cada vez mais divertido talhante para lhe assegurar que na carne moída não usam gato; são todas conversas com que as pessoas esbarram dia-a-dia e que estão a montante ou a jusante das suas zonas de habitualidade e conforto. Viram costas. Despedem o assunto com um sorriso anémico e um encolher de ombros. Fingem perceber. A criança temente às coisas estranhas do mundo que há em cada um de nós estanca subitamente e, ao longe, o medo criando raízes até passa por uma apreciável e salutar dose de educação.

Para um escritor, no entanto, o absurdo não interrompe a vida. Pelo contrário. O absurdo e as suas diversas tonalidades de bizarria são o combustível que alimenta a linha de montagem da maior parte das produções literárias. Combustível tanto mais valioso como de achamento imprevisível: pode andar-se tempos infindos, nas zonas onde a bizarria mais prolifera, numa procura atenta do melhor e mais refinado absurdo, sem lograr topá-lo sequer de longe. Por isso me é particularmente difícil, mesmo que a intuição me alerte para a possível enxurrada de um tédio interminável, afastar-me das conversas com alguns sujeitos que, a pretexto de me cravarem um cigarro, se entregam imediatamente a uma espécie de confissão diarística temperada com LSD.

Regressava da apresentação do meu livro de contos “da Família”, no Porto, quando, à entrada do hotel, um rapaz aproximadamente da minha idade e cujo ganha-pão é encaixar os carros no tetris confuso do estacionamento urbano disponível, se acerca de mim, numa educação inversamente proporcional ao seu aspecto andrajoso, e me pede o habitual cigarro com que conto aforrar karma suficiente para, na minha velhice, ser agraciado com a bondade alheia de um cigarro ocasional. Acabadas de cumprir as formalidades referentes ao lume e demais agradecimentos, o rapaz, olhando-me fixamente, pergunta-me: não achas que a esquizofrenia pode ser um acto de deus? Não sendo as intervenções divinas a minha especialidade, malgrado ou talvez por causa dos quatro anos num colégio de freiras de onde até da catequese consegui ser dispensado derivado a motivos de fazer “demasiadas questões”, achei precavido esperar pela sequência de pensamentos subjacentes à interrogação, até porque tinha a certeza de quem formula semelhante pergunta deve ter muitas mais coisas a dizer. Deus, como percebi de imediato – e como sempre – foi sol de pouca dura. A esquizofrenia, essa, foi ficando.

A conversa, custosa não tanto pelo tema mas sobretudo pelo frio – uns típicos três graus numa noite de Dezembro, no Porto – assemelhava-se ao percurso confuso de um atirador furtivo incerto do seu alvo: era o pai, os maus-tratos recebidos na infância, a “filha da puta da droga”, expressão repetida ao ponto de se tornar mais uma forma de pontuar a conversa, a mãe, omnipresente pela total ausência dela no discurso, a vida e as suas minudências esclavagistas, a vida de pobre, a vida de quem é abandonado por deus, a vida da rua.

Mais de meia hora decorrida sobre o início da conversa, o Vítor – vamos assumir que se chamava, Vítor, dada a minha impossibilidade crónica de me lembrar de nomes próprios – confessa-me, aliviado como não o vira ainda, que “tinha um problema”. A única coisa que não esperava e que me fez confusão na frase foi, na verdade, o tempo verbal. No entanto, pela primeira vez na conversa, o Vítor não muda de assunto, não tergiversa, não entra e sai dos temas sem qualquer tipo de ordem ou sequência. Pela primeira vez na conversa, o Vítor está absolutamente focado.

Sabes, principia, eu ouvia – para logo corrigir – e ainda ouço, um escaravelho que está sempre num raio de oito milhas à minha volta (escusado será dizer que a custo consegui suprimir a natural tentação de lhe perguntar se se tratavam de milhas marítimas ou terrestres). Não me deixava descansar, dormir, comer uma bucha em tranquilidade. É daqueles barulhos, sabes, tipo frigorífico ou água a pingar, à noite, sabes, e eu abanava a cabeça em sinal de assentimento, cada vez mais curioso, e quando me aproximava dele, estás a ver, prosseguia, o gajo calava-se, mas era só o tempo de eu voltar para onde estava e o gajo começar a fazer barulho outra vez. Ia dando em maluco, afirmava, com aquele olhar de quem procura no interlocutor o conforto da empatia. E como resolveste o assunto, perguntei. O Vítor, não se fazendo de rogado, até porque estava à espera da pergunta desde que começara a falar no escaravelho, começa a despir as múltiplas camisolas com que se protegia da noite invernosa do Porto. Chegado à pele, aponta, orgulhoso, para uma das inúmeras garatujas que tatuara no corpo. Vês, afirma, orgulhoso, ele continua a fazer barulho, mas agora sei sempre onde está.

Queres mais um cigarro, Vítor?

Quero.

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