Paulo Maia e Carmo Via do MeioA vontade de Zhu Zhifan em contemplar Nanquim Su Dongpo (1037-1101), o poeta cuja vida atribulada o conduziu aos mais inesperados recantos do Império, seria sempre recordado como um viandante. Certo dia em Danzhou (Hainan) a terra onde passou exilado, os últimos três anos da sua vida, saíu de casa para ir visitar o seu amigo Li Ziyun e foi surpreendido pela chuva. A dificuldade não o demoveu, e pedindo emprestados a um camponês, um chapéu de palha e umas socas de madeira, continuou o seu caminho. Pessoas que viam passar o literato com as suas longas vestes de funcionário imperial misturadas com a lhaneza dos acessórios rurais, riam-se e diz-se até que cães, denotando a estranheza, ladravam à sua passagem. Mas a figura do poeta e a sua longanimidade, encapsulados na expressão Dongpo liji (Dongpo com chapéu de palha e socas) perdurariam e mais tarde, quando se começou a celebrar de forma metódica a sua vida e o seu aniversário, essa memória foi avidamente recuperada em pinturas e esculturas que até hoje celebram o herói cultural. E é assim que ele surge, caminhando e inclinando-se ligeiramente para levantar a fímbria dos seus vestidos para que não se arrastem na lama, numa pintura (rolo vertical, tinta sobre papel, 92 x 29 cm, no Museu Provincial de Guangdong), atribuída ao pintor literato de Nanquim, Zhu Zhifan (1558-1624). De maneira característica, diz-se que essa seria já uma cópia de uma outra, executada pelo pintor Li Gonglin (1049-1101), que efectivamente conheceu o poeta, conferindo-lhe veracidade. Noutras pinturas Zhu Zhifan ilustrou lugares distantes como no álbum Expedição ao Norte (dezoito folhas, tinta e cor sobre seda, 21,7 x 27,4 cm, no Museu Britânico) onde evoca a trágica narrativa sobre Cai Wenji, a poeta que foi levada para a terra dos Xiongnu, além das fronteiras do Império. Porém, seriam sobretudo as viagens dentro e à volta da sua cidade natal de Nanquim que o cativariam. Zhu Zhifan escreveu logo no início do século dezassete uma relação sobre a cidade de Nanquim referida pelo antigo nome Jinling que, dado o seu sucesso seria editada, revista e aumentada com poemas em 1624 e desenhos de Lu Shoubo sob o nome de Jinling Tuyong, «Odes ilustradas de Jinling». Dela constam não apenas descrições de quarenta lugares panorâmicos para observar a orbe mas também a imaginação, as histórias e lendas que os lugares despertaram. A vontade de fazer a obra nasceu, como ele refere na introdução, do seu próprio desejo de ver e documentar esses lugares, afinal parte de uma celebrada prática cultural entre os literatos designada woyou, «viajar deitado». A mesma vontade que levou Su Dongpo a não desistir da intenção de dialogar com o seu amigo, indiferente à chuva, como quem sabe que há algo que não se pode perder. Uma intuição que se percebe na tradução da palavra «curiosidade», haoqi, que denota a busca de algo bom e raro.
Carlos Morais José Antropofobias h | Artes, Letras e IdeiasA Zhu As várias partidas do mundo, os lugares, as cidades, as paisagens, unicamente reivindicam espaço na nossa memória quando algum traço particular as distingue. A esses espaços fica associada uma emoção, logo ali sentida ou mais tarde emergente, que a mente, ávida de acção, guarda com deleite. Certos sítios são lembrados pela sua beleza, outros pela extravagância; mas a montanha do Salgueiro e a sua particular fauna conseguem ultrapassar estas categorias e intrometer-se no mundo dos homens de forma relevante e inesperada. É que por ali existe uma ave, com a forma aproximada de uma grande coruja, cuja aparição é suposto anunciar alterações importantes na hierarquia política de toda uma região. Chamam-lhe zhu e, provavelmente, ostenta uma penugem rubra escura, da cor do vinho feito de uva. Sendo uma ave, dotada da capacidade de voar, surge do nada ao crepúsculo, encontra o seu recanto num ramo onde se agarra com firmes dedos — pois a zhu não possui patas de pássaro, mas mãos humanas, que lhe saem de baixo do seu volumoso corpo — e dali os seus olhos penetrantes fixam o mundo como se o quisessem hipnotizar. De quando em vez, emite um som que lembra o seu nome: “Zhuuu…” Não é bom sinal, garantem, avistar esta ave. Alguns mestres dizem ser um presságio de índole tão ruim como ver um cometa atravessar os céus ou encontrar uma baleia morta a flutuar entre as ondas. Reza a tradição que, quando uma destas aves aparece, tal quer dizer que o rei vai destituir, exilar ou matar grande parte dos seus oficiais superiores. É então fácil de prever a confusão gerada pelo rumor do avistamento de uma zhu; e imaginar os espíritos em desordem, a tessitura de conspirações, a emergência de terrores, a catadupa de planos e, amiúde, levianas mas trágicas decisões. Invocar a zhu é garantir o conflito e a desarmonia. O poeta Tao Yuanming reforça a crença no mau agouro desta ave. Em breves linhas, irónico, sugere por ali ter andado uma zhu, quando o rei Huai de Chu baniu o famoso Qu Yuan, um importante oficial e trágico poeta. Não se pense, contudo, ter advindo de suas poesias a má sorte que lhe selou o destino ou que podemos dar como garantida a aparição de uma zhu naquele final do século IV a.E.C.. Arrebatado pelo desgosto de assistir ao espectáculo degradante de uma governação, maculada de práticas corruptas e inoperante pelo desleixo da realeza, Qu Yuan cometeu suicídio, atirando-se às águas barrentas de um rio. Este seu acto tornou-o num herói, num santo, numa data, todos os anos comemorada pelo povo. Compreende-se o temor que a zhu inspira. A sua presença é disruptiva, não da ordem individual, ou seja, da vida de cada um, eventualmente da vida do sujeito que a avistou, mas de toda uma ordem social. Não é incomum, por exemplo, a visão de uma zhu acender o rastilho de guerras civis ou, no mínimo, criar um período de incerteza entre os mais qualificados oficiais. Aristocratas, generais, comerciantes milionários, todos eles sentem vacilar o seu poder e, por isto, pela aparição de uma simples ave, quantas vezes não são estragadas famílias, queimadas colheitas, arrasadas aldeias, sacrificadas raparigas e destruída toda uma geração?