De Xunzi e do seu mérito – palavras finais

Yao perguntou a Shun: “Desejo fazer vir para o meu lado todos debaixo do Céu. Como posso fazê-lo?” Shun respondeu: “Atém-te à unificação mental sem desvio. Atende ao que é ínfimo sem preguiça. Sê incansavelmente leal e fiel. Se te ativeres à unificação mental como o Céu e a Terra, se atenderes ao que é ínfimo como ao sol e à lua, se a lealdade e integridade te preencherem por dentro, jorrando por fora e manifestando-se a todos os homens, então todos debaixo do Céu estarão já como que na tua sala. Que mais poderias fazer para os atrair?”

O Marquês Wu de Wei estava a fazer planos e tentar delinear exactamente o caminho certo e nenhum dos seus ministros conseguia acompanhá-lo. Deixou a corte com um semblante feliz. Wu Qi entrou a visitá-lo e disse: “Já ouviste a história do Rei Zhuang de Chu de algum dos teus ajudantes?”

O Marquês disse, “Como é a história do Rei Zhuang de Chu?”

Wu Qi respondeu: “O Rei Zhuang de Chu estava a fazer planos e tentar delinear exactamente o caminho certo e nenhum dos seus ministros conseguia acompanhá-lo. Deixou a corte com um semblante preocupado. O Duque Chen de Shen entrou a visitá-lo e perguntou: ‘Por que razão deixou sua majestade a corte de semblante preocupado?’ O Rei Zhuang disse: ‘Estava a fazer planos e tentar delinear exactamente o caminho certo e nenhum dos meus ministros conseguia acompanhar-me. É por isso que estou preocupado. Há um ditado de Zhong Hui que diz: Um senhor feudal que conseguir por si próprio achar um professor tornar-se-á um verdadeiro rei. Aquele que conseguir encontrar amigos verdadeiros tornar-se-á um tirano. Aquele que tiver quem questione as suas políticas sobreviverá. Aquele que faz planos sozinho, sem a companhia de alguém tão bom como ele, perecerá.

“Dada a minha falta de mérito e o facto de nenhum dos meus ministros me conseguir acompanhar, quererá isto dizer que o meu estado está perto de perecer? E por isso devo estar preocupado?” Wu Qi disse: “O Rei Zhuang de Chu considerou isto razão para se preocupar, mas tu, meu senhor, consideras isto razão para estares feliz.” O Marquês Wu de Wei deu um passo atrás e fez repetidas vénias, dizendo: “O Céu enviou-te para corrigir os meus erros”.

Bo Qin estava a preparar-se para regressar a Lu. O Duque de Zhou dirigiu-se ao professor de Bo Qin, dizendo: “Estás prestes a partir. Será possível falares dos melhores aspectos e virtude do meu filho?”

Ele disse: “O seu carácter é magnânimo. Gosta de confiar em si próprio e é cauteloso. Estas três coisas são precisamente os seus melhores aspectos e virtudes”.

O Duque de Zhou disse, “Ora essa! Tu acabas de considerar os erros de uma pessoa como os seus melhores aspectos e virtudes! A pessoa exemplar gosta de confiar na Via e na virtude e, assim, o seu povo regressa à Via. Quanto à ‘magnanimidade’ do meu filho, ela vem do seu agir indiscriminado. No entanto, tu o elogias!

“Quanto ‘ao seu amor por confiar em si próprio’, é por isso que é de visão estreita e mesquinho. Mesmo que a força da pessoa exemplar seja comparável à de um búfalo, ela não compete com o búfalo para se vangloriar da sua força. Mesmo que corra como um cavalo, não compete com o cavalo para se vangloriar da sua velocidade. Mesmo que o seu entendimento seja comparável ao de uma pessoa bem-criada, não compete com ela para se vangloriar do seu entendimento. O meu filho compete com outros porque a sua atitude é a de provar que é igual a eles. Ainda assim, o elogias!

“Quanto à sua ‘cautela’, é isso que o faz superficial. Já ouvi dizer que ‘Quem não ultrapassa os limites nunca encontrará uma pessoa bem-criada’. Quando encontramos uma pessoa bem-criada perguntamos: ‘Haverá alguma coisa que me esqueci de examinar?’ Se não lhes atendermos, as coisas importantes deixarão gradualmente de vir à nossa atenção. Se esse for o caso, então seremos superficiais. A superficialidade do meu filho deve-se ao seu modo de estimar pouco as pessoas. Mas tu o elogias! Deixa que te diga: na minha relação de filho para com o Rei Wen, na minha relação de irmão mais novo para com o Rei Wu, e na minha relação de tio para com o Rei Cheng, não sou inferior em comparação com ninguém debaixo do Céu. Contudo, há dez pessoas que consulto depois de lhes oferecer presentes de saudação. Há trinta pessoas que consulto depois de reciprocar os seus presentes de boas-vindas. Há mais de cem pessoas bem-criadas que trato com cortesia [de modo a obter o seu conselho]. Há mais de mil pessoas com as quais falo e a quem peço contas exaustivas [dos assuntos do estado]. De entre todas estas, só encontrei três pessoas bem-criadas capazes de endireitar a minha própria pessoa e acertar tudo debaixo do Céu. A fonte de onde obtive estas três não se encontrava entre aquelas dez ou trinta, mas entre as cem e as mil. Por estas razão, trato os homens de elevada posição com menos cortesia e os de baixa posição com mais. Todos pensam que forço os limites e também que aprecio as pessoas bem-criadas. E, por isso, as pessoas bem-criadas vêm até mim. Quanto vêm, é quando verdadeiramente vemos as coisas. Quando verdadeiramente vemos as coisas, sabemos onde estão o mal e o bem. Deves ter cuidado com isto!

“Usar o estado de Lu para tratar as pessoas com arrogância é arriscado. Aqueles que têm apreço por um salário oficial podem ser tratados com arrogância, mas aqueles capazes de corrigir a nossa pessoa não devem ser tratados com arrogância. Aqueles que são capazes de corrigir a nossa pessoa abandonam o estatuto nobre e vivem humildemente. Abandonam a riqueza para viver na pobreza. Abandonam o lazer e trabalham arduamente. Os seus rostos são escuros, mas não perdem de vista a sua posição apropriada. Por esta razão, os princípios condutores de todos debaixo do Céu não se extinguem e a boa cultura e forma apropriada nunca são destruídas”.

Há uma história que conta como um oficial fronteiriço de Zenqiu encontrou Sunshu Ao, à época primeiro ministro de Chu, e disse: “Ouvi dizer que: ‘Aqueles que ocupam posições oficiais por muito tempo atraem o ciúme das pessoas bem-criadas, aqueles que têm generosos salários oficiais são objecto do ressentimento do povo comum e aqueles de alto estatuto são objecto do ressentimento do senhor’. Tu és primeiro ministro de Chu pela terceira vez, mas não ofendeste as pessoas bem-criadas nem o povo comum de Chu. Como não?”

Sunshu Ao disse: “Fui primeiro-ministro três vezes e, de cada vez, o meu coração tem sido menos presumido. Com cada aumento do meu salário oficial, o exercício da minha generosidade tem-se alargado. A cada engrandecimento do meu estatuto, a minha prática dos rituais tem sido mais reverente. Assim, não ofendi nem as pessoas bem-criadas nem o povo comum de Chu”.

Zigong colocou uma questão a Confúcio: “Serei subordinado de alguém, contudo ainda não sei conduzir-me”. Confúcio disse, “Ser subordinado de alguém? Não será isso como o solo? Se nele escavarmos profundamente, nele encontraremos uma fonte [de água] doce. Se nele plantarmos, os cinco cereais crescerão. Ervas e árvores sobre ele se multiplicam e nele se alimentam bestas e aves. Durante a vida, estamos sobre ele. Ao morrer, nele entramos. Sem cessar prodigaliza-nos méritos. Ser subordinado de alguém, não será isso como o solo?”

No passado, o estado de Yu não empregou Gongzhi Qi e, por isso, [o estado de] Yu engoliu-o. O estado de Lai não empregou Zi Ma e, por isso, [o estado] de Qi engoliu-o. O tirano Zhou esventrou o Príncipe Bi Gan e, por isso, o Rei Wu sucedeu-lhe. Estas pessoas não se aproximaram dos meritórios nem empregaram os sábios e, por isso, os seus estados foram destruídos.

Os provedores das doutrinas dizem, “Xunzi não foi tão bom como Confúcio”. Mas isso não é assim.

Xunzi foi coagido por uma idade caótica e ameaçado com severos castigos. Em cima, não havia líderes meritórios. Em baixo, encontrou a violência de Qin. Ritual e yi [justiça] não eram praticados. O ensino e a transformação não eram praticados. As pessoas de ren [humanidade] eram bloqueadas e abafadas. Debaixo do Céu, todos viviam nas trevas. Quem fosse de conduta perfeita era atacado. Todos os senhores feudais eram supremamente desviantes.

Nesse tempo, os sábios não eram autorizados a deliberar, nem os capazes eram autorizados a governar. Os meritórios não eram empregues. Presos nas suas fixações, lordes e superiores não tinham claridade de visão. As pessoas meritórias eram rejeitadas e expulsas. Contudo, Xun Zi formulou no seu coração o intento de se tornar sábio, embora fingisse uma aparência de loucura de modo a mostrar ao mundo uma fachada de estupidez. As Odes dizem: “Era iluminado e sábio e a isso recorria para proteger a sua pessoa”. Esta é a razão da sua reputação não ser clara, de serem poucos os seus seguidores e aliados, do seu brilho não ser conhecido por toda a parte”.

Quando os letrados de hoje encontram as palavras que dele restam e os ensinamentos que deixou, apercebem-se de que são modelos e padrões suficientes para todos debaixo do Céu. Onde quer que [estes letrados] residam, esse lugar tem as qualidades do espírito. Por onde quer que passem, esses lugares se transformam. Se observarmos a sua excelente conduta, verificamos que Confúcio não o ultrapassa. Como o mundo não examina cuidadosamente as coisas, é dito que [Xunzi] não era um sábio. Porquê? Porque naquele tempo o mundo não era ordenado. Xunzi não encontrou o tempo certo. A sua virtude era como a de Yao e Yu, mas poucos no mundo o entendiam. Os seus métodos e técnicas não foram usados e o povo olhava-o com suspeição. Todavia, o seu entendimento era extremamente claro, cultivava a Via e corrigia a sua conduta, tornando-se num modelo a seguir. Triste a sorte de tal pessoa meritória… Era digno de ter sido um rei soberano. Mas aqueles que estão entre o Céu e a Terra não o compreendiam, preferindo louvar [o ladrão] Jie e [o tirano] Zhou e matar os bons e meritórios. Bi Gan foi esventrado. Confúcio ficou retido em Kuang. Jie Yu evitou o mundo. Jizi fingiu ser louco. Tian Chang espalhou o caos. Helü monopolizou a força bruta. Os maus fizeram fortunas; os bons sofreram catástrofes. Agora, os provedores das doutrinas de novo ignoram a verdade desta questão, fazendo fé somente nas reputações. Agora, que os tempos são diferentes, de onde virá a reputação de Xunzi? Dado não se ter envolvido na governação, como poderia ter demonstrado os seus méritos? E, contudo, as suas intenções haviam sido cultivadas e a sua virtude era abundante. Quem se atreveria a dizer que não era meritório?

17 Jan 2024

O Duque Ai – Xunzi

Tradução de Rui Cascais

O Duque Ai de Lu perguntou a Confúcio, “Desejo julgar na companhia dos homens bem-criados do meu estado para, junto com eles, o ordenar. Posso perguntar como devo fazer para os escolher?”

Confúcio respondeu, “Viver no mundo de hoje, mas focar a nossa intenção na via dos antigos, viver com as roupas de hoje, mas envergar as vestes dos antigos – os que seguem isto e mesmo assim erram são muito poucos, certo?”

O Duque Ai disse, “Se assim for, quem usar vestes da corte e sapatos da corte e puser no cinto uma placa oficial é uma pessoa exemplar?”

Confúcio respondeu, “Não é necessariamente assim. Mas quem usa as vestes cerimoniais e anda na carruagem cerimonial não concentra as suas intenções no consumo de vitualhas [proibidas durante o jejum anterior aos sacrifícios]. Quem usa as vestes e sapatos do luto, se apoia numa bengala e come caldo de arroz não concentra as suas intenções em vinho e carne. Viver no mundo de hoje, mas focar a nossa intenção na via dos antigos, viver com as roupas de hoje, mas envergar as vestes dos antigos – são deveras poucos os que seguem isto, mas ainda assim há os que erram, certo?”

O Duque Ai exclamou, “Bem dito!”

Confúcio disse, “Existem cinco qualidades de pessoas. Há a pessoa vulgar, a pessoa bem-criada, a pessoa exemplar, a pessoa meritória e o grande sábio”.

O Duque Ai disse, “Posso perguntar a que tipo de pessoa se chama vulgar?”

Confúcio respondeu, “A boca da pessoa vulgar é incapaz de boas palavras e o seu coração não sabe controlar a expressão no seu rosto. Não sabe como escolher pessoas meritórias e homens de bem nos quais confiar, para que se preocupem por ela [com tarefas e assuntos]. Quando se esforça, não sabe onde aplicar o seu vigor nem no que deve trabalhar e, quando limita as suas inter-acções, não sabe onde tomar posição fixa. Nas suas escolhas diárias entre coisas, não sabe o que valorizar. Limita-se a vogar com as coisas como numa corrente sem saber onde regressar. Os seus cinco sentidos o governam e o seu coração obedece-lhes e se arruína. A alguém assim podemos chamar de pessoa vulgar.”

O Duque Ai exclamou, “Bem dito! Posso perguntar a que tipo de pessoa se chama bem-criada?”

Confúcio respondeu, “A pessoa bem-criada, mesmo que seja incapaz de praticar o Caminho e os seus métodos na totalidade, tem sempre um modelo apropriado para as suas acções e, mesmo sendo incapaz de bondade total, tem sempre ocasiões em que é capaz de o fazer. Por isso, não trabalha na aprendizagem de muitas coisas, mas labora em ser cuidadosa naquilo que compreende. Não labora em dizer muitas coisas, mas sim em ser cuidadosa naquilo que quer dizer. Não labora na prática de muitas coisas, mas sim em ser cuidadosa a respeito do padrão que segue. Assim, quando sabe algo é porque já o compreendeu. Quando diz alguma coisa é porque já a compreendeu. Quando pratica alguma coisa é porque já seguiu o seu padrão. Por isso, faz todas estas coisas com uma constância semelhante à de não podermos trocar a nossa natureza, vida e carne pelas de outrem. Assim, riqueza e um estatuto nobre nada lhe acrescentam. Um estatuto humilde e baixo não a diminuem em nada. A alguém assim podemos chamar de pessoa bem-criada”.

O Duque Ai exclamou, “Bem dito! Posso perguntar a que tipo de pessoa se chama pessoa exemplar?”

Confúcio respondeu, “A pessoa exemplar tem palavra e é leal, mas o coração não exibe a sua virtude. Tem ren [humanidade] e yi [justiça] na sua pessoa, mas a sua aparência não é arrogante. As suas reflexões e deliberações são penetrantes e claras, mas o seu discurso não é contencioso. Assim, aqueles que são hesitantes, como se estivessem prestes a ser capazes de alcançar [o Caminho], esses são pessoas exemplares”.

O Duque Ai exclamou, “Bem dito! Posso perguntar a que tipo de pessoa se chama meritória?”

Confúcio respondeu, “As acções da pessoa meritória conformam-se ao compasso e à linha de tinta, sem ferir as coisas fundamentais [com rigidez e inflexibilidade]. As suas palavras bastam para servir de modelo para todos debaixo do Céu, mas sem ferir a sua própria pessoa. Pode ser rico o bastante para possuir o mundo inteiro, mas ninguém sente ressentimento por isso. Pode espalhar a sua beneficência por todo o mundo sem se preocupar com ficar pobre. Alguém assim pode ser chamado de pessoa meritória”.

O Duque Ai exclamou, “Bem dito! Posso perguntar a que tipo de pessoa se chama grande sábio?”

Confúcio respondeu, “O grande sábio é alguém cujo entendimento abrange o grande Caminho, alguém que sempre responde às mudanças apropriadamente e distingue correctamente entre as disposições inatas e as naturezas da miríade de coisas. O grande Caminho é aquilo através do qual muda, transforma, emprega e aperfeiçoa a miríade de coisas. As suas disposições internas e naturezas são aquilo através do qual ordena o que é certo e o que não é, o que deve ser adoptado e o que deve ser rejeitado. Por esta razão, nas suas obras faz emergir grandes distinções sobre o Céu e a Terra, examinando atentamente o sol e a lua e compreendendo e dominando a miríade de coisas por entre ventos e chuvas.

Misturadas e confusas

As suas obras não podem ser seguidas.

Verdadeiro descendente do Céu,

É impossível reconhecer as suas obras.

O povo comum é superficial,

Incapaz sequer de o reconhecer como vizinho.

A alguém assim podemos chamar de grande sábio”.

O Duque Ai exclamou, “Bem dito!”

13 Dez 2023

Dos quatro entendimentos e dos três tipos de coragem – Xunzi

Tradução Rui Cascais

Yao perguntou a Shun: “Como são as disposições inatas das pessoas?” Shun respondeu: “As disposições inatas das pessoas são verdadeiramente detestáveis! Por que razão perguntas acerca delas? Quando se tem esposa e filhos, a piedade filial para com os nossos pais diminui.

Quando os nossos apetites e desejos são satisfeitos, a nossa fidelidade para com os amigos diminui. Quando o nosso estatuto e salário sobem, a lealdade para com o nosso senhor diminui. As disposições inatas das pessoas? As disposições inatas das pessoas? As disposições inatas das pessoas são detestáveis. Porquê perguntares acerca delas? Só a pessoa meritória não é assim”.

Existe o entendimento do sábio, existe o entendimento da pessoa bem-criada e da pessoa exemplar, existe o entendimento da pessoa mesquinha e existe o entendimento da pessoa servil. Algumas pessoas, mesmo quando falam muito, demonstram a forma apropriada e conformam-se à categoria apropriada das coisas; são capazes de passar todo um dia argumentando as suas posições e, através de numerosas reviravoltas e uma miríade de mudanças as suas categorias orientadoras continuam inalteradas – esse é o entendimento do sábio.

Algumas pessoas, mesmo quando falam pouco, são directas ainda que reservadas no seu uso das palavras. Quando argumentam, conformam-se ao modelo apropriado como se fossem reguladas com exactidão pela linha de tinta do carpinteiro – esse é o entendimento da pessoa bem-criada e da pessoa exemplar.

Algumas pessoas têm um discurso descuidado e uma conduta desordeira. Na sua forma de lidarem com as coisas muito há que pode conduzir ao arrependimento – esse é o entendimento da pessoa mesquinha.

Algumas pessoas são precipitadas e imprudentes e não seguem as categorias apropriadas. Dispõem de várias competências e vasta experiência, mas não lhes dão bom uso. São rápidas na análise e de discurso refinado e fácil, mas não se preocupam com aquilo que dizem. Não se preocupam com o que é certo e com o que é errado e não separam aquilo que é direito daquilo que é torto. Por sua intenção, têm apenas colocar-se ao lado daqueles que desejam destroçar os outros – esse é o entendimento da pessoa servil.

Da coragem

Há o mais alto tipo de coragem, há o tipo de coragem médio e há o mais baixo tipo de coragem. Há alguns para quem existe um padrão central para todo o mundo, segundo o qual ousam estabelecer-se. Os antigos reis seguiam um certo modo de fazer as coisas e aqueles ousam aplicar o seu entendimento dele. Em cima, não seguem os senhores de uma idade caótica. Em baixo, não se conformam às gentes de uma idade caótica. Não se inquietam com o empobrecimento ou dificuldades que possam advir das coisas que envolvem ren [humanidade]. Não consideram riqueza e honra que possam de advir das coisas privadas de ren. Se o mundo os reconhece, deseja partilhar as dores e alegrias do mundo. Se o mundo não os reconhece, permanecem com independência e sós entre o Céu e a Terra e nada temem. Este é o mais alto tipo de coragem.

Há alguns que praticam os rituais com reverência e cujos pensamentos são contidos. Prezam, seguem e são fiéis a isso e dão pouca atenção aos bens materiais e à riqueza. Ousam promover e elevar aqueles que são meritórios. Ousam apontar e desvalorizar aqueles que não são meritórios. Este é o tipo de coragem médio.

Há alguns que dão pouca atenção ao seu carácter, mas muita importância aos bens materiais. Encontram consolo naquilo que conduz ao desastre e depois procuram libertar-se e escapar irresponsavelmente às consequências. Não se preocupam com a verdadeira disposição do que é certo e errado. Por sua intenção, têm apenas colocar-se ao lado daqueles que desejam destroçar os outros. Esse é o tipo mais baixo de coragem.

Fanruo e Jushi são nomes de grandes arcos dos tempos antigos. Contudo, se não tivessem sido formados pelo torno do criador de arcos não se teriam feito certeiros por si próprios. A espada Cong, que foi do Duque Huan, a espada Jue, que foi do Grão-Duque, a espada Lu, que foi do Rei Wen, a espada Hu, que foi do Lorde Huang, as espadas Ganjiang e Moye, que foram de Helü, assim como as espadas Jujue e Pilü, foram todas grandes lâminas dos tempos antigos. Contudo, se ninguém as tivesse amolado nunca se teriam tornado afiadas. Se ninguém as tivesse empunhado, nada poderiam ter cortado. Hua Liu, Qi Ji, Xian Li e Lü’er foram grandes cavalos dos tempos antigos. Contudo, sem controlo de freio e rédea à frente e sem a ameaça do chicote e da vergasta atrás, para não falar da perícia de Zao Fu na sela, não conseguiriam percorrer mil léguas num só dia.

Quanto às pessoas, mesmo que tivessem uma natureza inata excelente e os seus corações fossem sábios e capazes de discernir com argúcia, ainda teriam de buscar mestres meritórios a quem servir e escolher amigos meritórios com quem fazer amizade. Obtendo-se um mestre meritório para servir, tudo o que ouviremos são as instruções de Yao, Shun, Yu e Tang.

Obtendo-se um amigo meritório, tudo o que veremos é uma conduta leal, fiável, respeitosa e deferente. E então se fará progresso diário na direcção de ren e de yi[justiça] sem sequer nos darmos conta. Isso deve-se àquilo com o qual convivemos. Mas se vivermos ao lado de pessoas que não são boas, tudo o que ouviremos será trapaça, engano, desonestidade e fraude. Tudo o que veremos será uma conduta suja, arrogante, perversa, desviante e gananciosa. Além disso, sofreremos castigo e execução sem sequer nos apercebermos da sua iminência. Isso deve-se àquilo com o qual convivemos. Há um ditado segundo o qual “Se não conheceres o teu filho, observa os seus amigos. Se não conheceres o teu senhor, observa os seus companheiros.” Tudo depende daquilo com o qual convivemos. Tudo depende daquilo com o qual convivemos.

25 Ago 2023

A Grande Compilação – 1

Xunzi

Tradução de Rui Cascais

Se o senhor dos homens exaltar o ritual e honrar os meritórios, tornar-se-á num verdadeiro rei. Se a sua acção se basear acima de tudo na lei e se preocupar com o povo, tornar-se-á num líder hegemónico. Se a sua preocupação fundamental for com o lucro próprio e se dedicar frequentemente a enganar, então estará em perigo.

Se quisermos estar próximos de todos os quatro lados ao mesmo tempo, não há lugar melhor do que o centro absoluto. Assim, e de acordo com o ritual, o verdadeiro rei sempre habitará o centro do mundo.

Segundo o ritual, o Filho do Céu faz instalar biombos fora de portas e os senhores feudais instalam biombos dentro de portas. A razão de instalar biombos fora de portas é não querer ostentar o que está no seu exterior. A razão de instalar biombos dentro de portas é não querer ostentar o que está no seu interior.

Segundo o ritual, quando um senhor feudal chama o seu ministro, o ministro não espera que preparem a sua carruagem, mas parte a correr com a roupa em desalinho. As Odes dizem:

Lá vai ele desalinhado

Pois o chama o homem do Duque.

Segundo o ritual, quando o Filho do Céu chama um senhor feudal, este vai numa carruagem puxada por homens. As Odes dizem:

Vou agora na minha carruagem,

Lá até aos prados;

Um emissário do Filho do Céu

Vem a dizer-me “Anda cá”.

Segundo o ritual, o Filho do Céu usa uma veste com o bordado de uma montanha e um alto chapéu cerimonial. Um senhor feudal veste roupas negras e põe chapéu. Um grande oficial enverga vestes inferiores e um alto chapéu cerimonial. Um oficial regular enverga vestes de pele e um chapéu de couro.

Segundo o ritual, o Filho do Céu tem por acessório um ting, um senhor feudal tem por acessório um shue um grande oficial tem por acessório um hu.2

Segundo o ritual, o Filho do Céu usa um arco esculpido, um senhor feudal usa um arco vermelho e um grande oficial usa um arco negro.

Quando os senhores feudais se reúnem uns com os outros, devem usar os seus conselheiros como intermediários, devem fazer-se acompanhar por oficiais treinados no curso da sua viagem, devem empregar pessoas de ren para ficarem para trás a zelar pelas coisas.

Quando perguntamos por alguém, devemos usar um gui. Ao fazer perguntas a uma pessoa bem-criada, devemos usar um bi. Ao convocar alguém, devemos usar um yuan. Ao despedir alguém embora, devemos usar um huan.3

Quanto ao senhor dos homens, quando nele está estabelecido um coração de ren, o entendimento é seu servo e o ritual o completa. Assim, um verdadeiro rei sempre põe ren em primeiro lugar, pois a ordem Celestial de implementação assim o dita.

O Registo de Rituais de Averiguação diz, “Quando o dinheiro gasto é copioso, isso prejudica a virtude. Quando os recursos utilizados são opulentos, isso perturba o ritual”. Esta história de ritual, história de ritual – será somente uma história de jades e sedas? As Odes dizem:

Estas coisas são tão encantadoras

Basta só que se adequem apropriadamente.

Se não for atempada nem tiver cabimento, se não for respeitosa nem de boa forma, se não for animada nem alegre, então, mesmo que seja encantadora não se trata de propriedade ritual.

Quem atravessa as águas marca os lugares mais fundos, de modo a que ninguém caia neles. Aqueles que ordenam as pessoas marcam aquilo que é caótico, de modo a que ninguém caia em erro. Os rituais são os seus marcadores. Os antigos reis usavam rituais para marcar aquilo que lançaria o mundo inteiro no caos. Se descartarmos os rituais estaremos a jogar fora os marcadores. E assim, as pessoas ficam perdidas e confusas e encontram calamidades e sarilhos. É por isso que os castigos e penas se tornam profusos.

Shun disse, “A verdade é que sigo os meus desejos e, ainda assim, obtenho ordem”. Assim, génese dos rituais é para benefício dos meritórios até ao povo comum, não para benefício do sábio perfeito. Contudo, eles também são meios de nos tornarmos sábios. Se não os estudarmos, não o conseguiremos. Yao estudou com Jun Chou, Shun estudou com Wucheng Zhao e Yu estudou com Wangguo.

Depois dos cinquenta, não devemos realizar o ritual do luto por inteiro.4 Depois dos setenta, devemos manter só o uso de roupas de luto.

No ritual de “boas-vindas pessoais”, o pai fica de pé, voltado para sul. O filho ajoelha-se, voltado para norte. O pai realiza uma libação e ordena-lhe: “Vai acolher a tua companheira e realizar as tarefas ancestrais. Guia-a com reverência para que sirva respeitosamente como sucessora da tua mãe. Possamos, assim, ter constância”. O filho replica, “Sim. Temo apenas não ter capacidade para isto. Como ousaria esquecer as tuas ordens?”

Quanto à “conduta apropriada”, esta significa a realização de rituais. Quanto ao ritual, é através dele que quem é nobre é tratado com respeito. Através dele, os idosos são tratados filialmente. Através dele, os seniores são tratados com deferência. Através dele, os jovens são tratados com bondade. Através dele, os inferiores são tratados com generosidade.

Oferecer presentes aos membros da nossa casa é como empregar comendas e recompensas para com o estado e seus clãs. Mostrar ira aos nossos servos e concubinas é como aplicar castigos e penas à miríade do povo comum.

A pessoa exemplar trata os seus filhos com amor sem se deixar enfeitiçar por eles; dá-lhes tarefas, mas sem os rebaixar e guia-os no Caminho sem os forçar.

Na sua raiz, o ritual destina-se a tornar consensuais os corações das pessoas. Por isso, aquilo que não está prescrito no Clássico dos Rituais, mas serve para tornar consensuais os corações, também contém propriedade ritual.

As principais e mais gerais tarefas do ritual servem para ornamentar a felicidade quando se destinam aos vivos, para ornamentar o desgosto na despedida dos mortos e para ornamentar o poder que inspira temor quando envolvidos em assuntos militares.

Tratar os familiares como é apropriado para eles, tratar velhos amigos como é apropriado para eles, tratar os servos como é apropriado para eles, tratar os trabalhadores como é apropriado para eles – estas são as gradações de ren.

Tratar os nobres de modo apropriado para eles, tratar os veneráveis de modo apropriado para eles, tratar os meritórios de modo apropriado para eles, tratar os idosos de modo apropriado para eles, tratar quem tem senioridade de modo apropriado para eles – estas são as classes de yi.

Chegar à regulação apropriada na execução destas coisas é a ordenação que reside no ritual.

Ren é cuidado e por isso produz afecto. Yi é boa ordem e por isso produz a conduta apropriada. O ritual é a regulação apropriada e por isso produz o completar [destas coisas].

Para ren, há uma vizinhança apropriada. Para yi, há um portal apropriado. Se, ao tentarmos ser ren, habitarmos numa vizinhança que não lhe é apropriada, então não somos ren. Se, ao tentarmos ser yi, usarmos o portal que não lhe é apropriado, então não seremos yi.

Oferecer bondade sem boa ordem não constitui ren. Seguir a boa ordem sem a regulação apropriada não constitui yi. Seguir a regulação apropriada sem harmonia não constitui propriedade ritual. Harmonia sem expressão externa não constitui musicalidade. Por isso digo: no que respeita a ren, yi, propriedade ritual e musicalidade, o seu completar é unificado.

A pessoa exemplar habita em ren através de yi e só assim é ren. Realiza yi através do ritual e só então é yi. Na implementação do ritual, regressa às raízes e completa os ramos, e só então é ritual. Quando a mestria dos três é total, só então é o Caminho.

Os bens e dinheiros [oferecidos para um funeral] são chamados “donativos”. As carruagens e cavalos são chamados “contribuições”. As roupas e vestes são chamadas “presentes”. A parafernália é chamada “prendas”. Os jades e conchas são chamados “oferendas”. Os donativos e contribuições são usadas para assistir aos vivos. Os presentes e prendas são usados na despedida dos mortos. Se estes não chegarem enquanto o corpo ainda está em câmara ardente, ou se as nossas condolências aos vivos não chegarem enquanto ainda estão de luto e tristes, isso não é considerado propriedade ritual. Assim, avançar cinquenta léguas ao viajar para participar num evento auspicioso, avançar cem léguas num dia ao nos apressarmos para participar num funeral, e assegurarmo-nos de que as nossas contribuições e prendas chegam a tempo das cerimónias – estes são os pontos principais da propriedade ritual.

O ritual é aquilo que puxa o governo. Se não aplicarmos o ritual na actividade de governar, o governo não avançará.

Dada a grande variedade de tópicos aqui coberta, este capítulo poderá ter sido compilado pelos estudantes de Xunzi. Alguns segmentos são praticamente idênticos em capítulos anteriores.

Ting 挺, shu e hù 笏são implementos rituais feitos de diversos materiais e usados como insígnias.

Gui, bi, yuan, jue e huan eram peças de jade de diversos formatos mostradas ou oferecidas à pessoa a quem estes actos eram dirigidos.

O comentador Yang Liang, da dinastia Tang, explica que as partes do ritual a evitar são as que envolvem chorar vigorosamente e saltitar.

31 Jul 2023

Xunzi 荀子 – Elementos de ética, visões do Caminho

Da Nomeação Correcta, Parte VII

E, assim, os ensinamentos do sábio são tais que, se neles ponderarmos, é fácil compreendê-los. Se os pusermos em prática, será fácil encontrar segurança. Se os afirmarmos será fácil manter a nossa posição. Se os seguirmos completamente, obteremos aquilo que desejamos e evitaremos aquilo que detestamos. Os ensinamentos do insensato são o oposto disto. As Odes dizem:

Se fosses um fantasma ou um yu
Seria impossível derrotar-te.
Mas tu tens infames rosto e olhos humanos
E mostras-te incorrecto com os outros.
Por isso criei esta canção que agora canto
Para te corrigir as maneiras impias e falsas.

Isto exprime o que quero dizer.

Todos aqueles que dizem que a boa ordem só se seguirá à eliminação dos desejos são pessoas a quem faltam os meios para conduzir o desejo e que são incapazes de lidar com o simples facto de terem desejos. Todos aqueles que dizem que a boa ordem deve aguardar a diminuição dos desejos são pessoas a quem faltam os meios para refrear o desejo e que são incapazes de lidar com a abundância de desejos. Ter desejos, ou não ter desejos, são coisas de dois tipos, tais como estar vivo ou estar morto, e nada tem a haver com ordem ou desordem. Ter muitos desejos, ou ter poucos desejos, também são coisas de tipo diferente e referem-se ao número de disposições das pessoas, mas nada tem a haver com ordem e desordem.

A ocorrência de desejos não aguarda permissão para que sejam satisfeitos, mas aqueles que os procuram satisfazer seguem aquilo que lhes parece adequado. O facto de a ocorrência de desejos não aguardar permissão para a sua satisfação é algo recebido do Céu. O facto de aqueles que os procuram satisfazer seguirem o que lhes parece adequado é algo recebido do coração. Quando um só desejo recebido do Céu é controlado por inúmeras coias recebidas do coração, será decerto difícil classificá-lo como algo verdadeiramente recebido do Céu.

Nota

Xunzi (荀子, Mestre Xun; de seu nome Xun Kuang, 荀況) viveu no século III Antes da Era Comum (circa 310 ACE – 238 ACE). Filósofo confucionista, é considerado, juntamente com o próprio Confúcio e Mencius, como o terceiro expoente mais importante daquela corrente fundadora do pensamento e ética chineses. Todavia, como vários autores assinalam, Xunzi só muito recentemente obteve o devido reconhecimento no contexto do pensamento chinês, o que talvez se deva à sua rejeição da perspectiva de Mencius relativamente aos ensinamentos e doutrina de Mestre Kong. A versão agora apresentada baseia-se na tradução de Eric L. Hutton publicada pela Princeton University Press em 2016.

18 Abr 2023

Xunzi 荀子 – Elementos de ética, visões do Caminho

O Enriquecimento do Estado, Parte II

 

O modo de assegurar a suficiência do estado é manter frugais os gastos, enriquecer o povo e guardar bem quaisquer excedentes. Os gastos mantêm-se frugais através do ritual e o povo é enriquecido através da governação. Quando se enriquece o povo, serão grandes os excedentes.

Pois quando se enriquece o povo este terá riqueza. Quando o povo é rico, os campos serão fartos e bem mantidos. Quando os campos são fartos e bem mantidos, a sua produção será cem vezes maior. Os superiores tiram segundo o modelo apropriado e os inferiores mantêm os seus gastos frugais de acordo com o ritual. E então os excedentes se acumularão como colinas e montanhas. Se parte deles não for gasta ocasionalmente, não haverá sequer onde os guardar. Por que se preocuparia então a pessoa exemplar com a falta de excedentes? Aquele que souber como manter frugais os gastos e enriquecer o povo terá a reputação de ser ren [humano] e yi [justo], de ser sage e ser bom, dispondo, além disso, de riqueza acumulada como colinas e montanhas. Não há outra razão para estas coisas; são o produto de se manterem frugais os gastos e de se enriquecer o povo.

Se não se souber manter frugais os gastos e enriquecer o povo, então o povo será pobre. Quando o povo é pobre, os campos serão parcos e daninhos. Quando os campos são parcos e daninhos, não darão sequer metade do que é normal. Então, mesmo que os superiores gostem de tirar do povo, invadindo-o e dele roubando, a sua colheita será esparsa e haverá mesmo alguns que tentarão manter frugais os gastos sem ritual. Como resultado, terão a reputação de serem gananciosos por lucro e rapaces, sendo o seu verdadeiro ganho esvaziado e exaurido. Não há outra razão para estas coisas senão o desconhecimento de como manter frugais os gastos e enriquecer o povo. O “Anúncio ao Príncipe Kang” diz, “Quão vastamente cobre o Céu todas as coisas! Segue a virtude e enriquecerás a tua pessoa”. Isto exprime o que quero dizer.

No ritual, a nobreza e a plebe têm o seu estatuto próprio, anciãos e jovens têm a sua distância própria, ricos e pobres, humildes e eminentes, todos têm o seu peso próprio. Assim, o Filho do Céu usa uma veste-dragão vermelha e chapéu alto cerimonial. Os senhores feudais usam vestes-dragão negras e chapéus altos cerimoniais. Os oficiais usam chapéus de pele e vestes simples. De oficial para cima, todos devem ser regulados pelo ritual e pela música. As massas e plebe devem ser controladas por disposições legais.

Depois de estimar o território, estabelece-se o estado. Depois de calcular os benefícios, eleva-se o nosso povo. Certificamo-nos de que as pessoas são adequadas às suas tarefas e que dessas tarefas surgem benefícios, sendo estes suficientes para nutrir o povo. Certificamo-nos de que em todos os casos os lucros e despesas em roupa, comida e bens variados se adequam uns aos outros, certificando-nos de guardar quaisquer excedentes no tempo certo. A isto se chama “um arranjo equilibrado”, o qual estendemos desde o Filho do Céu até à plebe, independentemente da grandeza ou pequenez das suas tarefas. Por isso se diz, “Na corte ninguém obtêm a sua posição por sorte. Entre o povo, ninguém ganha a vida por sorte”. Isto exprime o que quero dizer. Aligeira os impostos sobre os campos, faz justas as tarifas nos mercados e passagens [de montanha], reduz o número de mercadores, faz por raramente usar trabalho forçado e não requisites as pessoas em tempo de trabalho agrícola. Se fizermos estas coisas, o estado será rico. E a isto se chama enriquecer o povo através da governação.

 

Nota

Xunzi (荀子, Mestre Xun; de seu nome Xun Kuang, 荀況) viveu no século III Antes da Era Comum (circa 310 ACE – 238 ACE). Filósofo confucionista, é considerado, a par do próprio Confúcio e Mencius, como o terceiro expoente mais importante daquela corrente fundadora do pensamento e ética chineses. Todavia, como vários autores assinalam, Xunzi só muito recentemente obteve o devido reconhecimento no contexto do pensamento chinês, o que talvez se deva à sua rejeição da perspectiva de Mencius relativamente aos ensinamentos e doutrina de Mestre Kong. A versão agora apresentada baseia-se na tradução de Eric L. Hutton publicada pela Princeton University Press em 2016.

9 Fev 2021

Xunzi 荀子 – Elementos de ética, visões do Caminho – O Enriquecimento do Estado, Parte I

A miríade de coisas partilha o mesmo cosmos. Todas têm corpos diferentes, mas apesar de serem desprovidas de cabimento intrínseco, são úteis para os humanos. Este é, simplesmente, o arranjo do mundo. Diversos graus de pessoas vivem juntas. Partilham os mesmos objectivos, mas têm métodos diferentes. Partilham os mesmos desejos, mas têm diferentes entendimentos. Esta é, simplesmente, a forma como nasceram. Todos consideram justas certas coisas, sendo nisto iguais o sábio e o néscio. Contudo, aquilo que consideram justo difere, e isso é o que separa o sábio do néscio. Se a autoridade das pessoas for igual, mas o seu entendimento das coisas for diferente, agindo em nome do ganho egoísta sem temer o desastre, deixando seus desejos proliferar selvaticamente sem fim, então os seus corações estarão agitados, sem nunca conhecerem apaziguamento. Se a situação assim for, os sábios não conseguirão obter o poder de controlar. Se os sábios não obtiverem o poder de controlar, então qualquer reconhecimento de mérito será impossível. Se nenhum reconhecimento de mérito for possível, então não haverá distinção entre as massas. Se não houver distinção entre as massas, então as posições de senhor e ministros não serão estabelecidas. Se não houver senhor que regule os ministros, ou nenhum superior que regule os inferiores, então todos sob o Céu sofrerão dano por deixarem os seus desejos proliferar selvaticamente.

Todas as pessoas desejam as mesmas coisas e todas detestam as mesmas coisas. Os seus desejos são muitos, mas são poucas as coisas que os satisfaçam e, por serem poucas, é certo que as pessoas pelejarão por elas. Os produtos dos cem ofícios são meios de nutrir a pessoa, mas nem mesmo os mais capazes se conseguem dedicar a todos os ofícios, nem é possível que alguém preencha todos os cargos oficiais. Se viverem separadas e não se entreajudarem as pessoas ficarão empobrecidas. Se viverem juntas, mas não tiverem divisões sociais, lutarão entre si. A pobreza é uma catástrofe, a luta é um desastre. Se quiseres salvá-las da catástrofe e eliminar o desastre, nada melhor do que estabelecer divisões sociais claras e assim dar emprego às massas. Se os fortes ameaçam os fracos, se os sábios aterrorizam os néscios, se quem está em baixo ignora os seus superiores, se os jovens importunam os mais velhos, se não governares pela virtude, então os velhos e os fracos enfrentarão a inquietude de perder os seus meios de sustento e aqueles que estão no seu auge enfrentarão o desastre da luta divisiva. Trabalho e labor são o que as pessoas detestam, mérito e lucro são o que apreciam. Mas se não houver divisão de ocupações, então as pessoas enfrentarão a catástrofe de tentar concluir o seu trabalho sozinhas e a calamidade de terem de lutar por mérito. Se o acordo entre macho e fêmea e a divisão entre marido e mulher não for regido pelos rituais de apresentação, compromisso e casamento, as pessoas enfrentarão a inquietude de perder esse acordo e o desastre de lutar por companheiros. Por isto, o sábio cria divisões para estas coisas.

 

Xunzi (荀子, Mestre Xun; de seu nome Xun Kuang, 荀況) viveu no século III Antes da Era Comum (circa 310 ACE – 238 ACE). Filósofo confucionista, é considerado, a par do próprio Confúcio e Mencius, como o terceiro expoente mais importante daquela corrente fundadora do pensamento e ética chineses. Todavia, como vários autores assinalam, Xunzi só muito recentemente obteve o devido reconhecimento no contexto do pensamento chinês, o que talvez se deva à sua rejeição da perspectiva de Mencius relativamente aos ensinamentos e doutrina de Mestre Kong. A versão agora apresentada baseia-se na tradução de Eric L. Hutton publicada pela Princeton University Press em 2016.

3 Fev 2021

Xunzi 荀子 – Elementos de ética, visões do Caminho

O Governo do Verdadeiro Rei, Parte IX

O senhor de um estado violento não poderá, naturalmente, usar o seu exército contra nós. E porque não? Porque ninguém o acompanhará. Aqueles que o acompanhariam seriam decerto a sua própria gente. Mas o amor da sua gente por nós será como a alegria que lhes dão os seus próprios pais. O amor que têm por nós será como a atracção que sentem pelo perfume das orquídeas ou do sésamo. Olhando para trás, verão os seus superiores como vêem os castigos da marcação com ferros e da tatuagem, ou como inimigos mortais. Mesmo que a disposição e natureza do povo fossem como as de Jie e do Ladrão Zhi, como seriam capazes de fazer aquilo que odeiam de maneira a maltratar aqueles de quem gostam? Na verdade, já teríamos conquistado [os seus corações]. Por isso, entre os antigos, houve quem conseguiu conquistar todo o mundo a partir de um só estado. Tal não sucedeu por se terem deslocado para o fazer, mas sim por terem cultivado e governado os seus próprios estados, levando a que todos ansiassem pelo mesmo. Agindo assim, puderam depois punir os violentos e banir a brutalidade. Quando o Duque de Zhou conduziu a sua campanha punitiva ao sul, os estados do norte lamentaram-se, “Quem dera que tivesse vindo só aqui”. Quando conduziu a sua campanha punitiva a leste, os estados do oeste lamentaram-se, “Por que nos deixou para último?” Quem poderia ter lutado contra ele? Aquele que usar o seu estado para conseguir tais coisas se tornará um verdadeiro rei.

No dia em que tivermos acertado as coisas, o nosso exército se acalmará, os nossos súbditos se tranquilizarão e o povo comum será tratado com amor. Abriremos campos e pradarias, encheremos os celeiros e prepararemos novas provisões. Do mesmo passo, recrutaremos e selecionaremos cuidadosamente homens de talento e capacidade. Para os encorajar, estabeleceremos honras e recompensas, assim como penas e castigos para os impedirmos de praticarem o mal. Escolheremos homens argutos, fazendo-os liderar e controlar uns aos outros. Depois, nos dedicaremos a amplo armazenamento e manutenção, fazendo suficientes bens e provisões. Enquanto outros expõe e desgastam suas armas, armaduras e material diariamente nas planícies centrais, eu me dedicarei a reparar as minhas, resguardando-as nos meus armazéns. Enquanto outros diariamente dissipam e desperdiçam os seus bens, riqueza e cereais nas pradarias centrais, eu me dedicarei a armazená-los e reuni-los nos meus celeiros. Enquanto outros diariamente desbaratam contra os inimigos os seus homens de talento e capacidade, os seus assistentes de topo, os seus homens fortes e corajosos que lutam com denodo, eu me dedicarei a chamá-los para meu lado, avaliando-os, incorporando-os e refinando-os na minha corte. Quando as coisas são assim, os outros acumulam erros todos os dias, ao passo que eu todos os dias acumulo perfeições. Enquanto os outros acumulam pobreza todos os dias, eu todos os dias acumulo riqueza. Enquanto acumulam trabalhos, eu acumulo facilidade. Quando a dureza faz diariamente mais tensas e odiosas as relações entre o senhor e os ministros, os superiores e os subordinados, a bondade os fará aproximar cada vez mais de mim e me amarem. Estas coisas usarei para enfrentar os seus erros. Aquele que usar o seu estado para conseguir tais coisas se tornará um tirano.

No estabelecimento do nosso carácter poderemos seguir costumes grosseiros. Nos assuntos do estado, podemos aplicar-nos em promulgar esquemas dúbios. Ao promover ou despromover pessoas, ao enobrecê-las ou rebaixá-las, elevaremos os bem-falantes e ardilosos. Uma tal pessoa relaciona-se com o povo comum dele tirando, desrespeitando-o e dele roubando. Alguém assim colocar-se-á sempre em perigo.

Ou, no estabelecimento do nosso carácter, podemos ser levianos e rudes. Nos assuntos do estado, nos dedicarmos à usurpação. Ao promover ou despromover pessoas, ao enobrece-las ou rebaixá-las, elevaremos os homens tenebrosos e temíveis, homens enganadores e que agem por motivos ulteriores. Uma tal pessoa relaciona-se com o povo comum abusando dos seus esforços derradeiros, mas sendo lento a reconhecer os seus trabalhos e mérito.

Uma tal pessoa abusa dos seus impostos, mas olvida os seus esforços fundamentais. Uma tal pessoa será destruída.
Devemos escolher cuidadosamente de entre estas cinco possibilidade. Pois elas são os meios para nos tornarmos um verdadeiro rei, um tirano, alguém que mal subsiste em segurança, alguém que vive em perigo, ou alguém que é destruído. Aquele que escolher bem controlará os outros. Aquele que não escolher bem será controlado pelos outros. Aquele que escolher bem será um verdadeiro rei. Aquele que não escolher bem será destruído. A distância entre ser rei e ser destruído, entre controlar outros ou ser controlado por eles não é, na verdade, grande de todo.

 

Nota

Xunzi (荀子, Mestre Xun; de seu nome Xun Kuang, 荀況) viveu no século III Antes da Era Comum (circa 310 ACE – 238 ACE). Filósofo confucionista, é considerado, a par do próprio Confúcio e Mencius, como o terceiro expoente mais importante daquela corrente fundadora do pensamento e ética chineses. Todavia, como vários autores assinalam, Xunzi só muito recentemente obteve o devido reconhecimento no contexto do pensamento chinês, o que talvez se deva à sua rejeição da perspectiva de Mencius relativamente aos ensinamentos e doutrina de Mestre Kong. A versão agora apresentada baseia-se na tradução de Eric L. Hutton publicada pela Princeton University Press em 2016.

27 Jan 2021

Xunzi 荀子 – Elementos de ética, visões do Caminho

[dropcap]A[/dropcap] pessoa exemplar é tolerante sem ser laxista; tem princípios sem ser opressora. Discute, mas não é belicosa; investiga com argúcia, mas não pretende causar espanto. É solitária sem ser superior e é forte sem ser violenta. É flexível e sabe ceder, mas tem escrúpulos. É respeitosa e cuidadosa, mas agradável. A isto se chama excelente boa forma. As Odes dizem, “Calorosa e respeitadora dos outros, a virtude é a sua única fundação.” Isto exprime o que quero dizer.

Quando a pessoa exemplar exalta as virtudes de outrem, ou elogia a excelência de outrem, tal não é nem lisonja nem bajulação. Quando aponta as falhas de outrem falando e acusando directamente, tal não é difamação nem calúnia. Quando explica como a sua excelência é similar à de Shun e Yu e forma uma tríade com o Céu e a Terra, tal não é gabarolice nem orgulho. Quando se dobra ou endireita segundo a ocasião, flexível como o junco, tal não é cobardia nem timidez. Quando mostra força inabalável e determinação feroz, sem ceder a nada, tal não é arrogância nem temperamento violento. Através de yi [justiça; propriedade], muda e se adapta com as circunstâncias, pois sabe quando é apropriado dobrar-se e endireitar-se. As Odes dizem:

À direita, à direita
A pessoa exemplar faz o que é apropriado.
À esquerda, à esquerda
A pessoa exemplar tem tudo controlado.

Isto diz-nos que, através de yi, a pessoa exemplar se dobra e endireita, mudando e adaptando-se com as circunstâncias.

A pessoa exemplar é o oposto do homem mesquinho. Se for grande o coração da pessoa exemplar, esta reverencia o Céu e segue o Caminho. Se o seu coração for “pequeno”, atém-se cautelosamente a yi e a si própria se regula. Se for inteligente, agirá com iluminada compreensão segundo as categorias apropriadas das coisas. Se não for culta, seguirá com escrupulosa honestidade o modelo apropriado. Se for escutada, será reverente e reservada. Se passar despercebida, será respeitadora e reservada. Se for feliz, será harmoniosa e bem organizada. Se for inquieta, saberá aplicar a calma. Se for bem-sucedida, será refinada e iluminada. Se for mal-sucedida, será controlada e circunspecta.

Não assim o homem mesquinho. Se for grande o seu coração, será arrogante e violento. Se o seu coração for “pequeno”, será perverso e dissoluto. Se for inteligente, será um ávido ladrão e trabalhará enganosamente.

Se não for culto, criará o caos como um vilão venenoso. Se for escutado, será avarento e arrogante. Se passar desapercebido, será ressentido e perigoso. Ser for feliz, será fútil e caprichoso. Se for inquieto, será frustrado e cobarde. Se for bem-sucedido, será altivo e parcial. Se for mal-sucedido, ficará deprimido e desesperado. Há um ditado que afirma: “Em ambos os casos, a pessoa exemplar avança. Em ambos os casos, o homem mesquinho falha.” Isto exprime o que quero dizer.

A pessoa exemplar põe em ordem aquilo que é ordenado. Não põe em ordem aquilo que é caótico. Que quer isto dizer? Assim o vejo: ritual e yi são coisas ordenadas. Aquilo que não é nem ritual nem yi é caótico. Assim, a pessoa exemplar é aquela que põe em boa ordem a prática de ritual e yi. Não põe em ordem aquilo que não é nem ritual nem yi. Sendo assim, se o estado se encontrar no caos, não o colocará em boa ordem a pessoa exemplar? Eis o que digo: colocar um estado caótico em boa ordem não significa recorrer ao caos para restaurar a ordem. Do caos nos livramos e o substituímos por ordem. Cultivar uma pessoa corrupta não significa recorrer à corrupção para o fazer. Da corrupção nos livramos e a suplantamos com cultura. Assim, a pessoa exemplar livra-se do caos em vez de pôr o caos em boa ordem. Livra-se da corrupção não a cultivando. O uso próprio da expressão “colocar em boa ordem” está no dizer que a pessoa exemplar “faz aquilo que é ordenado e não faz aquilo que é caótico; faz aquilo que é culto e não aquilo que é corrupto.”

Nota

Xunzi (荀子, Mestre Xun; de seu nome Xun Kuang, 荀況) viveu no século III Antes da Era Comum (circa 310 ACE – 238 ACE). Filósofo confucionista, é considerado, juntamente com o próprio Confúcio e Mencius, como o terceiro expoente mais importante daquela corrente fundadora do pensamento e ética chineses. Todavia, como vários autores assinalam, Xunzi só muito recentemente obteve o devido reconhecimento no contexto do pensamento chinês, o que talvez se deva à sua rejeição da perspectiva de Mencius relativamente aos ensinamentos e doutrina de Mestre Kong. A versão agora apresentada baseia-se na tradução de Eric L. Hutton publicada pela Princeton University Press em 2016.

Tradução de Rui Cascais

26 Fev 2020

Xunzi 荀子 – Elementos de ética, visões do Caminho

Tradução de Rui Cascais

 

[dropcap]O[/dropcap] ritual é aquilo que serve para corrigirmos a nossa pessoa. O mestre é aquele que serve para corrigir a nossa prática ritual. Sem ritual, como corrigirás a tua pessoa? Sem mestre, como saberás que praticas correctamente o ritual? Quando o ritual é correcto e tu és correcto, tal significa que a tua disposição é conforme ao ritual. Quando o mestre explica correctamente e também tu explicas correctamente, tal significa que a tua compreensão é exactamente como a compreensão do teu mestre. Se a tua disposição for conforme ao ritual e a tua compreensão como a compreensão do teu mestre, é isso que significa ser sage.

Contradizer o ritual é ser desprovido do modelo adequado e contradizer o teu mestre é ser sem mestre. Se não fores conforme ao teu mestre e ao modelo adequado, preferindo usar do teu próprio juízo, tal é como confiar num cego para distinguir cores, ou num surdo para distinguir sons. Tudo o que conseguirás obter será caos e imprudência.

Por isso, no estudo, o ritual é o teu modelo adequado e o mestre é alguém que tomas como bitola correcta e com quem aspiras estar em conformidade. As Odes dizem, “Na ignorância, na ausência de compreensão, escolhe seguir os princípios de Shang Di.” Isto exprime o que quero dizer.

Se fores escrupuloso, honesto, agires com obediência adequada e fores um bom irmão mais novo, podes então ser chamado um jovem bom. Se, para além disso, tiveres amor pelo estudo, capacidade de aceitação e uma mente arguta, então terás talentos iguais àqueles a quem ninguém é superior, podendo usar [os teus talentos] para te tornares uma pessoa exemplar. Se fores preguiçoso e cobarde, desavergonhado e preocupado só com comida e bebida, então mereces ser chamado um jovem mau. Se, para além disso, fores ferozmente desobediente e perigoso, desrespeitando vilmente teus irmãos mais velhos, então mereces ser chamado de jovem aziago, podendo mesmo chegar à circunstância de te veres aplicada a pena capital.

Quando se trata os velhos como os velhos merecem, a nós virão aqueles que se encontram no seu auge. Se não afligires aqueles que já se encontram em profunda aflição, a ti virão os bem-sucedidos. Se trabalhares na obscuridade e praticares a bondade sem expectativa de recompensa, tanto merecedores como desmerecedores te seguirão unanimemente. Quem se reger por estes três tipos de conduta não será punido pelo Céu, ainda que cometa um qualquer erro grave.

Na busca de lucro, a pessoa exemplar age com contenção. No evitar de males, age cedo. No evitar da desgraça, age com temor. Na prossecução do Caminho, age corajosamente. Mesmo vivendo em pobreza, as intenções da pessoa exemplar permanecem grandiosas. Mesmo coberta de riqueza e honrarias, a sua postura permanece reverente. Mesmo vivendo em lazer, o seu sangue e qi não são ociosos. Mesmo cansada de labutar, a sua atitude não é desagradável. Quando irada não é excessivamente severa e, quando feliz, não é excessivamente indulgente. A pessoa exemplar mantém intenções grandiosas mesmo na miséria pois exalta a ren [humanidade; benevolência]. Mantém uma postura reverente mesmo coberta de riqueza e honrarias pois reage com leveza às contingências da fortuna. O seu sangue e qi não se tornam ociosos mesmo no lazer pois se dedica à boa ordem. A sua atitude não é desagradável mesmo cansada de labutar pois lhe agradam as boas relações. Não é nem excessivamente severa quando irada nem excessivamente indulgente quando feliz pois a sua aderência ao modelo adequado suplanta qualquer capricho pessoal. Os Documentos dizem:

Não cries novos gostos.
Segue a via do rei.
Não cries novos desgostos.
Atém-te à via do rei.

Isto significa que, evitando a parcialidade e recorrendo a yi [propriedade], a pessoa exemplar suplanta os desejos pessoais caprichosos.

 

Nota

Xunzi (荀子, Mestre Xun; de seu nome Xun Kuang, 荀況) viveu no século III Antes da Era Comum (circa 310 ACE – 238 ACE). Filósofo confucionista, é considerado, juntamente com o próprio Confúcio e Mencius, como o terceiro expoente mais importante daquela corrente fundadora do pensamento e ética chineses. Todavia, como vários autores assinalam, Xunzi só muito recentemente obteve o devido reconhecimento no contexto do pensamento chinês, o que talvez se deva à sua rejeição da perspectiva de Mencius relativamente aos ensinamentos e doutrina de Mestre Kong. A versão agora apresentada baseia-se na tradução de Eric L. Hutton publicada pela Princeton University Press em 2016.

11 Fev 2020

Xunzi 荀子 – Elementos de ética, visões do Caminho

Tradução de Rui Cascais

[dropcap]A[/dropcap]s Odes dizem:

Ritual e cerimónia em tudo têm a medida justa.
Ri e fala somente de acordo com a propriedade.

Isto exprime o que quero dizer.

Convencer os outros a seguir o que é bom é chamado “ensino”. Harmonizar-se com outros para aquilo que é bom é chamado “concordância apropriada”. Convencer os outros a seguir aquilo que é mau é chamado “bajulação”. Harmonizar-se com outros para aquilo que é mau é chamado “conluio”. Endossar aquilo que é bom e condenar aquilo que é mau é chamado “sabedoria”. Endossar aquilo que é mau e condenar aquilo que é bom é chamado “estupidez”. Atacar uma pessoa boa é chamado “calúnia”. Causar dano a uma pessoa boa é chamado “vileza”. Chamar bom ao bom e mau ao mau é chamado “rectidão”. Roubar bens é chamado “latrocínio”. Esconder as suas acções é chamado “dissimulação”. Falar das coisas com demasiada facilidade é chamado “gabarolice”. A ausência de fixidez naquilo que se gosta e não gosta é chamado “inconstância”.

Abandonar a justiça (yì) em favor do lucro é chamado “vileza suprema”. Ter escutado muitas coisas é chamado “largueza”. Ter escutado poucas coisas é chamado “superficialidade”. Ter visto muitas coisas é chamado “erudição”. Ter visto poucas coisas é chamado “impolidez.” Ter dificuldade em progredir é chamado “indolência”. Esquecer as coisas com facilidade é chamado “incontinência”. Quando as nossas acções são poucas e bem ordenadas, a isso se chama “ser controlado”. Quando as nossas acções são muitas e desordenadas, a isso se chama “esbanjamento”.

Os métodos para controlar o qì e alimentar o coração são: sangue e qi inflexíveis devem ser suavizados através da harmonização; pensamento excessivamente profundo deve ser simplificado através da bondade directa; a coragem excessivamente feroz deve ser reformada através da concordância apropriada; a expediência apressada deve ser domada através de movimentos regulados; a estreiteza mental deve ser alargada através da expansividade; a humildade, inércia e ganância de lucro excessivas devem ser combatidas com intenções elevadas; a vulgaridade ou a dissolução devem ser erradicadas com professores e amigos; a indolência e esbanjamento devem ser iluminadas pela consideração de calamidades; a rectidão simplória ou honestidade escrupulosa devem ser temperadas pelo ritual e pela música e adumbradas pela reflexão. Em cada método de controlar o qì e alimentar o coração nada é mais directo do que seguir os rituais, nada é mais importante do que ter um bom professor, e nada funciona com maior eficácia (de natureza) espiritual do que acalentar o qì com total devoção. Estes são chamados os métodos para controlar o qì e alimentar o coração.

Se cultivarmos as nossas intenções, desprezaremos riqueza e nobreza. Se a nossa atenção ao Caminho e à justiça for grande, reis e duques serão para nós triviais. O facto é que, ao nos examinarmos interiormente, os bens exteriores pouco significam. Diz-se que “A pessoa exemplar faz das coisas seus servos, mas o homem mesquinho é escravo das coisas.” Isto exprime o quero dizer. Se uma acção te cansar o corpo, mas te deixar o coração em paz, executa-a. Se envolver escasso lucro, mas abundante justiça, executa-a. Ser bem-sucedido ao serviço de um senhor que cria o caos não é tão bom como simplesmente servir um senhor empobrecido. Assim, um bom lavrador não deixa de plantar por causa da seca, um bom mercador não fecha a loja por causa dos prejuízos e o homem bem-criado e a pessoa exemplar não se desviam do Caminho por causa da pobreza.

Nota

Xunzi (荀子, Mestre Xun; de seu nome Xun Kuang, 荀況) viveu no século III Antes da Era Comum (circa 310 ACE – 238 ACE). Filósofo confucionista, é considerado, juntamente com o próprio Confúcio e Mencius, como o terceiro expoente mais importante daquela corrente fundadora do pensamento e ética chineses. Todavia, como vários autores assinalam, Xunzi só muito recentemente obteve o devido reconhecimento no contexto do pensamento chinês, o que talvez se deva à sua rejeição da perspectiva de Mencius relativamente aos ensinamentos e doutrina de Mestre Kong. A versão agora apresentada baseia-se na tradução de Eric L. Hutton publicada pela Princeton University Press em 2016.

3 Fev 2020

Xunzi 荀子 – Elementos de ética, visões do Caminho

[dropcap]Q[/dropcap]uando observares bondade em alguém, inspeciona-te, desejoso de cultivá-la. Quando observares maldade nos outros, examina-te, temendo descobri-la. Se encontrares bondade na tua pessoa, congratula-te, desejoso de a agarrares com firmeza. Se encontrares maldade na tua pessoa, recrimina-te, considerando-a uma calamidade. Assim, aqueles que nos criticam com razão agem como professores para connosco; aqueles que nos apoiam correctamente agem como nossos amigos; aqueles que nos elogiam e são obsequiosos para connosco agem como vilões.

A pessoa exemplar exalta aqueles que agem como professores para consigo e ama aqueles que agem como seus amigos, assim odiando aqueles que agem como vilões para consigo. Ama infatigavelmente a bondade, sendo capaz de ouvir admoestações e segui-las. Mesmo que não desejasse melhorar, como poderia evitá-lo?

A pessoa mesquinha é o oposto. Apesar de totalmente desordenada, odeia que os outros a critiquem. É completamente indigna, embora deseje que os outros a considerem digna. O seu coração é como o de um tigre ou lobo e a sua conduta como a das bestas, mas odeia que a considerem um vilão. Àqueles que a elogiam e lhe são obsequiosos faz favores, mantendo à distância quem o possa admoestar. Àqueles que cultivam a correcção considera risíveis e aos que lhe são verdadeiramente leais considera vilões. Mesmo que desejasse não perecer, como poderia evitá-lo? As Odes dizem:

Estes homens conspiram e praticam a calúnia.
Isto é motivo para grande desgosto.
A qualquer plano que valha a pena
Oferecem a mais completa resistência.
Aos planos que nada valem
Desejam seguir sem reserva.

Isto exprime o que quero dizer.
A medida da bondade em todas as coisas é esta:

Usa-a para controlar o teu qi e nutrir a tua vida
E viverás mais tempo do que Peng Zu.
Usa-a para te cultivares e conseguir fama
E serás igual a Yao e Yu.
É apropriada em tempos de prosperidade.
É útil para enfrentar a adversidade.

– assim é o ritual.
Se os teus esforços de sangue, qi, intenção e pensamento estiverem de acordo com o ritual, estes serão ordenados e eficazes. Se não estiverem de acordo com o ritual, serão desordenados e estéreis. Se as tuas refeições, roupas, habitação e actividades estiverem de acordo com o ritual, serão agradáveis e bem reguladas. Se não estiverem de acordo com o ritual, encontrarás perigos e doenças. Se a tua actividade, postura, movimentos e passo estiverem de acordo com o ritual, serão gráceis. Se não estiverem de acordo com o ritual, serão bárbaras, obtusas, perversas, vulgares e desordenados.

Assim,

Se suas vidas forem sem ritual,
As pessoas não sobreviverão.
Se os negócios forem sem ritual,
O sucesso não prosperará neles.
Se estado e clã forem sem ritual,
A paz não virá a eles.


NOTA
Xunzi (荀子, Mestre Xun; de seu nome Xun Kuang, 荀況) viveu no século III Antes da Era Comum (circa 310 ACE – 238 ACE). Filósofo confucionista, é considerado, juntamente com o próprio Confúcio e Mencius, como o terceiro expoente mais importante daquela corrente fundadora do pensamento e ética chineses. Todavia, como vários autores assinalam, Xunzi só muito recentemente obteve o devido reconhecimento no contexto do pensamento chinês, o que talvez se deva à sua rejeição da perspectiva de Mencius relativamente aos ensinamentos e doutrina de Mestre Kong. A versão agora apresentada baseia-se na tradução de Eric L. Hutton publicada pela Princeton University Press em 2016.

Tradução de Rui Cascais
15 Jan 2020