Julie Oyang h | Artes, Letras e IdeiasO realizador chinês mais corajoso de sempre – Parte III Três Irmãs, um documentário de Wang Bing [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]esta terceira parte vamos passar uma lista de filmes recentes de Wang Bing que vos recomendo. Crude foi realizado um ano depois de He Fengming, em 2008. O documentário, com duração de 840 minutos, é um épico ainda mais longo que West of the tracks e ainda mais incrível. Com um total de 14 horas condensadas em apenas 20 planos, a câmara lança um olhar de grande pureza e naturalidade sobre a realidade duríssima dos trabalhadores que extraem petróleo no deserto de Gobi. Dinheiro do Carvão estreou em 2009. O documentário acompanha o rasto do dinheiro gerado pelo negócio do carvão, manchado pelo sangue dos que trabalham nas minas. O realizador brinda-nos com a agudeza do seu sentido crítico: O coração dos homens é tão negro como o carvão. 2009 foi um ano muito produtivo para Wang Bing, para além de “Dinheiro do Carvão”, apresentou ainda mais dois documentários “hi pond” e “sem nome”. O homem sem nome (2010) acompanha a vida de um vagabundo anónimo que, no entanto, tem um lugar para viver. Não se lhe pode chamar “casa”, porque não passa de uma caverna sem electricidade, sem água e sem sanitários. Um anónimo “homem das cavernas”, sem qualquer relação com o resto da sociedade, vive lá dentro. O director de câmara seguiu-o durante um ano e registou todas as suas palavras. É provavelmente o melhor trabalho de Wang Bing. Em 2010, Wang realizou o primeiro filme de ficção, A Vala. Este filme é uma versão ficcional da história de He Fengming (Ver Parte II). A dureza da luta de classes e a fome tornaram a vida num purgatório. Depois de terminar A Vala, Wang foi visitar a mãe. No regresso, cruzou-se acidentalmente com três crianças, e este encontro marcou o início do documentário Três Irmãs, focado na pobreza das zonas rurais de Yunnan. Mas será que o realizador nos deixa vislumbrar uma luz ao fundo do túnel? Em Yunnan, Wang Bing filmou também Até que a Loucura nos Separe, um documentário de quatro horas sobre doentes psiquiátricos internados num hospital de reabilitação. Alguns são doentes mentais, mas outros são pessoas abandonadas, “doentes de solidão”. Nenhum deles consegue fugir ao estigma da loucura. Mas estes doentes não mostram medo nem quaisquer tabus quando enfrentam a câmara. É um filme deprimente, porque a objectiva revela um mundo implacavelmente “real”. Não se aproveita da miséria nem nunca cai no melodrama. É como uma escrita sem adornos, feita de frases cruas, onde cada palavra é fiel e, fielmente protege personagens despidas de qualquer encanto visual e que vivem existências sem nada para mostrar. Às vezes, possivelmente com mais frequência do que gostaríamos, a vida é mesmo só isso.
Julie Oyang h | Artes, Letras e IdeiasO realizador chinês mais corajoso de sempre: Parte I [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]hama-se Wang Bing e poucos o conhecem. Muitos dos realizadores de documentários começaram como fotógrafos, Wang não é excepção. Diplomado pelo Departamento de Fotografia da Academia de Belas Artes Lu Xun, trabalhou para produções televisivas até 1999, altura em que filmou o seu primeiro documentário Tiexi Qu, West of the Tracks. Tiexi é um imenso complexo industrial situado no Nordeste da China, na província de Shenyang. Construído durante a ocupação japonesa, foi restaurado com o apoio dos soviéticos após a 2ª`Guerra. Era o maior centro de manufactura do país. O período entre o pós-guerra e os anos 80 foi florescente, as fábricas no seu conjunto empregavam mais de um milhão de trabalhadores, mas, à semelhança de outras indústrias geridas pelo Estado, começou a colapsar a partir do início dos anos 90. O documentário de Wang Bing mostra-nos a inevitável morte lenta do obsoleto sistema de manufactura. Bing filmou detalhadamente, entre 1999 e 2001, as vidas dos últimos operários, uma classe a quem foi prometida a glória durante a revolução chinesa. Esmagados pelas mudanças económicas, estes operários surgem como heróis comoventes neste épico moderno, que tem a duração total de 551 minutos, mais de 9 horas! Reconhecido como “um dos melhores documentários chineses de sempre”, o filme é um retrato hipnotizante de uma sociedade chinesa em transição. Levou três anos para ser filmado. Devido à sua longa duração, está dividido em três partes. Parte 1 Ferrugem (244 minutos) A câmara capta os derradeiros trabalhadores da fundição que laboram no único forno que resta, durante as suas actividades diárias. A falência parece ser inevitável e, desde o interior da fábrica até aos espaços de convívio, Wang Bing traça um retrato fascinante destas vidas moribundas. Parte 2 Os Remanescentes (178 minutos) Rainbow Row é uma favela construída em 1930, para albergar os trabalhadores do distrito de Tie Xi. Esta área era conhecida como a Cova das Criadas. Actualmente os seus residentes enfrentam o desemprego e salários em atraso. A câmara acompanha o dia a dia de algumas pessoas; um jovem que após uma extração da Lotaria, procura bilhetes eventualmente premiados que possam ter caído ao chão; lixo e neve empilhados nas ruas geladas; jovens no mercado Cisne Feliz a pensar em esquemas para arranjar dinheiro e namoradas; crianças a recolher latas enquanto uma idosa assa tofu; jogadores de mah-jong que no Verão se reúnem no exterior das suas casas … Entretanto ficamos a saber que o bairro vai ser demolido para dar lugar a um condomínio privado. Toda a gente vai ter de sair dentro de um mês. Gradualmente o bairro esvazia-se, à medida que a neve o vai cobrindo. Parte 3 Os Carris (132 minutos) Um sistema de carris proporciona a circulação de vagões que transportam matérias primas e bens de consumo de, e para, Shenyang. A neve que não pára de cair e o fumo eterno criam uma atmosfera opressiva. Os sinais de vida são escassos à medida que o comboio avança através deste labirinto de fábricas praticamente abandonadas. Os trabalhadores cumprem as suas funções de forma mecânica, matando o tempo com mexericos, cartas e cigarros. Uma das suas maiores preocupações é armazenar carvão para poderem aquecer as salas geladas. Toda a gente teme o futuro, embora a Primavera tenha trazido algum alívio depois do penoso Inverno. O Outono sucede ao Verão. Em breve estamos na noite de Fim do Ano. Um pequeno fogo preso é ateado junto à casa e, lá dentro, os amigos bebem e conversam sobre amor e casamento. E toda a gente ajuda a fazer uma tachada de dumplings. West of the Tracks deu início a uma nova era, a de um cinema lento e intimista. Quatro anos mais tarde, em 2005, Wang Bing filmou o documentário He Fengming. Mas esse fica para a próxima, ou seja, a Parte II desta crónica.