Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasNa rua Direita [dropcap]E[/dropcap]stive em Óbidos quatro dias, a convite do Fólio. Óbidos é uma vila medieval com óbvio interesse patrimonial e turístico. É também, ao que parece, a capital da ginja em copo de chocolate. E tem livrarias, imensas livrarias. É no entanto uma vila pequena, e percorrer Óbidos de lés a lés a pé não leva mais de dez minutos. O que Óbidos não tem, no entanto, é um minimercado. Ou uma tasca. Não tem nenhuma das coisas que esperamos encontrar numa vila daquela dimensão. A rua principal de Óbidos – a Rua Direita – exibe de um lado e outro uma monocromática série de estabelecimentos onde se vende a inevitável ginja em copo de chocolate, pão com chouriço feito em forno de lenha, bricabraque de vaga inspiração medieval e garrafinhas de água para o turista incapaz de fazer duzentos metros em linha recta sem desidratar. Tudo feito a pensar no turista. O turista, já se sabe, tem horror à diversidade de oferta. Não quer, para além da dificuldade de escolher o sítio onde consumir aquilo que esperam que consuma, ter ainda de escolher o que consumir. Sítio que se quer turístico tem que reduzir a oferta a um cabaz de, no máximo, seis produtos, e concentrar esforços em encaminhar a horda de consumidores aos sítios onde os produtos escolhidos podem ser adquiridos sem demoras. É assim que funcionam, por exemplo e há largos anos, os pastéis de belém (tirando obviamente a parte da demora). Óbidos tem também meia dúzia de restaurantes, mais ou menos disseminados pelas ruas paralelas à rua Direita, destinados ao turista que se esqueceu de trazer o tupperware para a excursão. Embora não sejam de facto o core business da vila, constituem um não despiciendo apoio logístico. Óbidos tem também hosteis, gesthouses de múltiplas cilindradas e hotéis que vão do clássico ao conceptual. Ao longo do ano recebe e promove imensos festivais. Desde o Fólio, de literatura, ao festival Internacional do Chocolate ou ao festival Medieval. E tem turistas, milhares de turistas falando dezenas de línguas diferentes. Chineses, russos, franceses, alemães, uzbeques, you name it. É uma babel de línguas numa rua com pouco mais de duzentos metros. O que Óbidos não tem, e parece não querer de todo ter, é habitantes. Haverá um ou outro resistente, não duvido, pessoas que dada a idade ou condição socioeconómica não conseguiram sair dali. Pessoas, no fundo, condenadas a viver num parque de diversões aberto todos os dias. Essas pessoas quando querem beber um café ou comprar um maço de cigarros deslocam-se até à bomba de gasolina, que fica a uns meros 550 metros da porta da vila. Se quiserem ir ao supermercado, têm apenas de percorrer cerca de um quilómetro. Na vila muralhada propriamente dita, não há quase nada de extra-turístico. A eficiência do modelo de core business é absolutamente notável. Dado que uma elevadíssima percentagem do turismo de Óbidos é de curta duração (excursões de autocarros que despejam centenas de turistas de manhã para os recolherem à tarde), o atendimento não é propriamente excepcional. Não precisa de o ser: o bicho turista entra e sai dos sítios simplesmente porque os sítios estão ali. Não havendo qualquer diversidade de oferta e muito pouca variação de preços, o critério acaba por ser o acaso. Pelo que as pessoas atrás do balcão não estão de todo preocupadas com a fidelização dos clientes que passam pela porta. A simpatia no atendimento pode corresponder, no máximo e marginalmente, a uma ou outra gorjeta. O turismo, quando levado ao expoente da caricatura, não produz qualquer tipo de experiência duradoura. É uma máquina de vaivém na qual o objectivo é tirar peso dos bolsos transferindo-o para às mãos. Óbidos é apenas um exemplo do estado terminal a que se pode chegar. O Chiado e a baixa de Lisboa, embora até podendo levar muito mais tempo a descaracterizar desta forma tão grotesca, estão no bom caminho.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasCircular [dropcap]C[/dropcap]aro munícipe, os vários departamentos da Câmara Municipal de Lisboa e as diferentes empresas municipais têm estado a colaborar activamente para proporcionar a melhor experiência possível aos turistas que elegem a cidade de Lisboa como destino de férias. Nesse sentido, submetemos as inúmeras e generosas sugestões que recebemos dos nossos colaboradores e dos munícipes que as remeteram para o email criado para o efeito a um rigoroso processo de triagem posto em prática por uma equipa multidisciplinar liderada pelo Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, o Dr. Fernando Medina. É com indisfarçável orgulho que apresentamos a seguinte lista de recomendações, por ora não vinculativas, dado carecerem de uma escrupulosa análise do nosso departamento legal para averiguar a possibilidade de passarem a disposições com força de lei. Este período, de que não podemos por ora antecipar a duração, servirá para testarmos a adequação das nossas propostas à disponibilidade dos nossos munícipes e às necessidades dos turistas. Queremos ser a curto prazo a cidade número 1 da Europa a nível turístico e para isso contamos com todos para proporcionar àqueles que nos visitam uma experiência ainda mais inesquecível de Lisboa. Os edifícios deverão afixar na porta de entrada o conjunto identificação de rede/palavra-passe de pelo menos um dos acessos internet por wifi dos moradores do prédio. Ainda que os custos do roaming na União Europeia sejam uma coisa do passado, a verdade é que nem todos os profissionais do Airbnb respeitam com o necessário escrúpulo o horário de recebimento dos turistas, pelo que o usufruto de um serviço de internet sem fios pode contribuir decisivamente para proporcionar, logo à chegada, a imagem de uma Lisboa tão moderna quanto acolhedora. Serão abertos concursos para providenciar os bairros emblemáticos da cidade cujo número de autóctones não seja suficiente para proporcionar a Experiência de Imersão Total em Lisboa que definimos como prioritária para o programa O Turismo é uma Festa com figurantes cuja admissão dependerá de critérios definidos pelo Grupo de Verificação e Controlo do departamento de Turismo de Lisboa e da eventual possibilidade de caracterização dos candidatos. Dar-se-á naturalmente preferência aos candidatos cuja aparência e fisionomia melhor se adeque às expectativas imaginadas da generalidade dos turistas. NOTA: a não ser em casos muitos excepcionais (candidatos com semelhanças muito vincadas a figuras públicas portuguesas internacionalmente reconhecidas) a função não implica qualquer vínculo contratual. Abrir-se-ão diversos cursos em regime pós-laboral de Competências Práticas Turísticas como Línguas (Alemão, Francês, Mandarim, etc.), Olissipografia Museológica e Tuk-Tuk para Iniciantes, entre outros. A frequência completa de cada um dos cursos implica creditação de competências e maior probabilidade de ser seleccionado para uma das muitas funções do programa de reconhecido sucesso Um Dia, Muitos Sorrisos. Encorajamos de igual modo os munícipes a darem quando possível os seus lugares nas muitas filas que se geram no quotidiano de Lisboa como, por exemplo, no supermercado, nos transportes públicos – muito especialmente aqueles que contemplam percursos eminentemente turísticos – e nos restaurantes. É sabido que as demoras no atendimento em ambiente de estadia longe de casa causam um stress desnecessário e impedem que se usufrua adequadamente do Tempo Turístico, por regra mais dispendioso do que o Tempo do Trabalhador. Esperamos que esta pequena lista contribua para aprimorar a experiência já muito positiva que os turistas reportam ter da cidade de Lisboa e aproveitamos para reforçar a nossa inteira disponibilidade para dissipar eventuais dúvidas. Mãos à obra!
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasFechem tudo, caramba [dropcap style=’circle’]F[/dropcap]echaram o Adamastor. A Câmara Municipal de Lisboa, a pretexto da “Requalificação do Jardim do Miradouro de Santa Catarina”, elenca objectivos como “melhor segurança” e “melhor ambiente urbano” para gradear o icónico miradouro de Lisboa. Por ora, a vedação é provisória, mas a Câmara assegura que pretende torná-la definitiva, para assim poder controlar o acesso ao espaço. O Adamastor tem muitos problemas que não vêm de hoje. Falta de higiene – que as casas de banho públicas deficientemente cuidadas não resolvem –, excesso de vasilhame resultante das noites de festa no local, algum barulho, alguma confusão. Mas tem igualmente condições únicas e incríveis: é um espaço verdadeiramente democrático, onde convivem criaturas de esferas sociais e culturais inteiramente diversas, betos e amigos do djembê, turistas e moradores, miúdos de escola e velhos sequiosos de sol. A pressa em resolver o “problema” do Adamastor não será alheia ao facto de ter sido implementado um hotel de cinco estrelas a poucos metros do Miradouro. No Booking.com, o Hotel é descrito do seguinte modo “Esta luxuosa propriedade beneficia de uma localização privilegiada, no centro histórico de Lisboa e oferece vista para o Rio Tejo. O Verride Palácio Santa Catarina disponibiliza quartos e suites elegantes, que combinam detalhes vintage com confortos modernos. A área do último piso do edifício proporciona vistas deslumbrantes de 360º para a cidade.” Paula Marques, directora do Hotel, diz ao Público: “O problema são os traficantes aqui em volta. Ao longo da rua, com os clientes a virem para o hotel, são abordados esquina sim, esquina sim por traficantes. Não acho que a segurança seja uma questão, o problema é mesmo a abordagem insistente. Não é uma vez, são várias vezes.” Várias vezes, veja-se o topete destes traficantes. O que está em causa no Adamastor é sintomático de um problema mais vasto. Lisboa é uma cidade excepcional por diversos motivos, mas um deles é precisamente a convivência transversal e relativamente pacífica de pessoas de diversas proveniências. Não é uma cidade guetizada, higienizada, falsa. No mesmo edifício podemos ter uma tasca frequentada pelos bêbedos profissionais do Caís do Sodré e uma gelataria gourmet. E uma coisa não choca com a outra porque as coisas foram acontecendo assim, organicamente. Como a vida. É esta ocorrência múltipla e desordenada de modos de vida diferentes que lhe dá um carisma único e irrepetível. Diria mesmo que é isto que as pessoas vêm ver. E é isto que o capitalismo, na sua vertente mais estúpida e incisiva, quer destruir. Para quem não conhece Lisboa, para os departamentos de marketing das agências de viagem um pouco por todo o mundo, esta liberdade é inadmissível. Há que domar a vida pulsante da cidade e torná-la mais civilizada – a saber, plástica, artificial, redundante. Há que planear e executar a Lisboa que se pretende para o turista de classe média francês, para o abonado russo, para o chinês investidor. Porque Lisboa não pode ser só Lisboa, tem que ser um produto. Até isso acontecer, esta gente não vai descansar. Já ouvimos ou presenciámos histórias semelhantes. Às vezes é uma cidade que vai acolher os jogos olímpicos e de onde os cães vadios desaparecem misteriosamente antes da cerimónia de abertura. Às vezes são os pobres que deixam de ser vistos. A cultura do empreendedorismo não admite sequer a existência visual daquilo que esta considera ser o fracasso. Tudo o que é vivo e livre tem que ser reconduzido à lógica do parque de diversões temático. Até que, de cidades inteiras, restem unicamente os edifícios – renovados e silenciosos – e uma mão-cheia de figurantes pagos para passar por locais.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasDo turismo [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] turismo chegou para ficar. Pelo menos enquanto Lisboa for a capital do cool e da luz de Byron, os portugueses o povo mais acolhedor da Europa e Portugal um país tão pacífico como ridiculamente barato. No fundo, como alguém de que não me recordo terá dito, o melhor dos mundos consiste em viver num país do sul com um ordenado de um país do norte. Mas a questão do turismo, para os lisboetas, está longe de ser respondida de forma consensual. Se há os que prezam e louvam tudo quanto os turistas trouxeram de bom a uma cidade que, há apenas dez anos, se encontrava em estado vegetativo, desertificada no seu centro excepto por aqueles que não tinham para onde ir e por meia dúzia de excêntricos encantados por morar num quarto andar sem elevador desde que se visse uma nesga de rio, existem também os que protestam por causa do aumento absurdo das rendas, por causa da sobrelotação dos transportes públicos, por causa do barulho nocturno e da sujidade e, não infrequentemente, por causa dos tuk tuks que se tornaram uma espécie de cartão postal da cidade e um hóspede regular dos pesadelos dos lisboetas mais agorafóbicos que se imaginam a ser atropelados por um daqueles modelos cem porcento eléctricos que fazem menos barulho do que uma geisha na cerimónia do chá. Eu vivi muito tempo em Albufeira, antes de esta se ter tornado um protectorado britânico, antes dos pubs com live football e typical english breakfast e antes de o cheiro a terra vermelha tostada pelo sol ter sido substituído pelo cheiro a bronzeador na variante coco e cenoura. Na altura, a estrada que ligava Albufeira às Areias de São João era de terra e brita – very typical –, a praia de Albufeira ainda tinha uma generosa porção de areia reservada aos barcos dos pescadores e o português ainda era a língua oficial, embora alguns afoitos do engate de praia se aventurassem em iterações do inglês – factor tuelve, beibi, no sics – a que as inglesas respondiam com a generosidade do sorriso. A inesgotável cobiça e o passar do tempo fizeram com que Albufeira fosse crescendo de forma absolutamente caótica excepto pelo facto de tudo passar a ser feito pelo e para o turista: os aparthotéis, os restaurantes, as esplanadas de praia com preços proibitivos para os autóctones, as lojecas de rua entupidas de bóias e baldes de plástico e de todo o tipo de jornais e tabaco exceptuando, claro, os nacionais. De repente, o turista com algumas posses e sequioso de sol e sossego passa a cruzar-se, na Albufeira que escolheu para torrar o subsídio de férias em gins e cataplanas de marisco, com o seu jardineiro, com o tipo que lhe guarda o jornal no quiosque e com o taxista que por vezes o leva a casa depois de uma noite no pub. De repente, os pescadores convertem-se ao comércio de bugigangas nas artérias que circundam a praia ou ao alcoolismo profissional, as tascas em pistas de dança multicolores animadas por sessões de karaoke e música de micro-ondas e as praias, outrora tão desertas como paradisíacas, são agora línguas ínfimas de areia pejadas de gente desejosa de levar para casa um melanoma de origem demarcada. Lisboa, ainda vamos a tempo de perceber a distinção entre óptimo e o incomportável, entre qualidade e quantidade e entre viver e sermos meros actores involuntários ou bichos de circo. Lisboa só tem graça porque é the real thing e não uma encenação feita para consumo alheio. E as pessoas percebem isso. E as que não percebem ou não se importam, acreditem, não queremos que sejam a maioria dos que vêm para cá.