Carlos Coutinho VozesA temperatura e os crepúsculos COMEÇOU na segunda-feira o maior exercício militar aéreo da história da NATO, o “Air Defender 23”. Coordenado pela Alemanha, onde o ‘kaiser’ e o ‘führer’ deixaram certas ambições antigas e recalcadas, o objetivo destas manobras é demonstrar a conformidade e a prontidão de todos os membros da aliança, face a potenciais ameaças, venham elas da Rússia ou da China, mancomunadas estas ou não, e vai decorrer até dia 23. Aliás, o chanceler Scholz, social-democrata em modo Kautsky, afirmou hoje mesmo que a China é uma ameaça para a Alemanha. Assim, aumenta seriamente a temperatura que já é tórrida na presente II Guerra Fria. Nos céus atlânticos, mediterrânicos, bálticos, nórdicos e polares já voam 250 aeronaves de 25 países natistas, além do Japão, que alegam querer fortalecer a resposta ao ar, ao mar e à terra, em caso de confronto que pode incluir drones e mísseis. Em jeito de rodapé, apetece-me pôr aqui o que certamente não aconteceria na martirizada Ucrânia e Donbass, se o Pentágono, a NATO, a União Europeia e o Presidente Zelensky obedecessem ao que ficou plasmado na Ata Final dos Acordos Internacionais de Helsínquia e no Acordo de Minsk. Sem contar os mortos de ambos os lados, que já são muitos milhares (militares e de civis), a ofensiva bélica da Rússia causou até agora, segundo a ONU, a fuga de 14,7 de pessoas, ou seja, 6,5 milhões de deslocados internos e mais de 8,2 milhões de ucranianos para países europeus. Leopardices ENCONTREI quarta-feira, na Régua, com o longo canhão apontado às vinhas de Loureiro, um Leopard 2, o ultramoderno carro de combate que dá, quase todos dias, histórias com deliciosos temperos aos gulosos que comem tudo o que chegue da guerra da Ucrânia. Veio de Lamego para a celebração, hoje, do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades, à beirinha do Rio Douro, e, a meio da descida da A24, teve ser salvo do fogo que desatou a queimar as 16 rodas do reboque. Foi um vê se te avias de carros de bombeiros a rolar no asfalto, mas só ali passei dois dias depois, pelo que não ouvi o concerto de sirenes alarmadas que, compreensivelmente, revoou pelas encostas. Salvou-se o leopardo guerreiro, mas eu, a 400 quilómetros de distância, vou, se tiver pachorra para tanto, ouvir o Marcelo na televisão. É bem possível que ele aproveite a circunstância para deitar mais umas pitadas de veneno de efeito lento no prato do Costa. Crepúsculos CHOVEU esta noite, forte e feio. A meio da manhã, em todo o Douro, o céu ainda era um dossel total em tons de chumbo que impunha uma espécie de crepúsculo matinal. Tudo continuava molhado nesta varanda, nestas vinhas em cascata e em toda a paisagem apreensível. Aí pela hora do almoço, já não chovia nem disso se notava ameaça. Depois de Lamego, o sol começava a bater em pontos vários das serranias frontais, porque o dossel estava a sofrer grandes rasgões e as massas escuras de nuvens densas, fragmentando-se, formavam enormes rebanhos de nimbos zoomórficos que arranhavam impunemente o azul celeste. EU tinha pela frente 400 quilómetros de asfalto molhado e um tráfego nervoso que não me assustou, porque apenas se adensou a partir de Viseu. Começou a molhifar na zona de Coimbra, passando a chuviscos intermitentes em poucos minutos, porque o dossel se refez e até o ar escureceu, ficando baço e pardacento. À passagem pela zona de Santarém, a chuva tornou-se tão intensa e barulhenta que só os farolins vermelhos das constantes travagens à minha frente eram discerníveis, como se a depressão “Óscar”, que anteontem fustigou a Madeira e estava prevista a tarde de amanhã no Continente, houvesse antecipado a sua chegada para hoje. Aliás, de madrugada, quando acordei e fui ver a água teimosa que escorria oblíqua do céu, não percebi a situação e pareceu-me urgente voltar a adormecer e em nada pensar. Só que o meu pensamento é rebelde, mesmo quando não deve, e mantém tiques de mergulhador – entre outros desvarios, foi cair em Tordesilhas e por lá navegou durante alguns minutos. Felizmente adormeci de novo já no crepúsculo matinal, ainda com chuva, mas depois, nas quase cinco horas da tormentosa viagem do meu regresso à beira-Tejo, voltei a matutar nas manobras de D. João II. Num dia anómalo como este, a primeira coisa que fiz quando cheguei a casa foi escabichar nos meus livros o que havia sobre o Tratado de Tordesilhas. Aconteceu, de facto, num dia 7 como o de hoje, a assinatura de um acordo internacional que ficou para a História com o título de “Tratado de Tordesilhas”. Foi em junho, no ano de 1494, que os altos representantes do Reino de Portugal e da Coroa de Castela firmaram um compromisso que atribuía a propriedade das terras “descobertas e a descobrir” de um lado e do outro do Atlântico, tendo como linha de demarcação o meridiano 370 léguas a oeste da ilha de Santo Antão, no arquipélago de Cabo Verde. Por isso é que os idiomas dominantes, ainda hoje, no Brasil e no Chile, respetivamente, são o português e o castelhano, enquanto no país da morna predomina o crioulo. É bom recordar tudo isto, porque o incumprimento de acordos e tratados está a fazer uma guerra fratricida na Ucrânia e, aqui para nós que ninguém nos ouve, até o caudilho Franco chegou a arquitetar uma grande operação de conquista de Portugal ainda antes de iniciar a Guerra Civil de Espanha, em 1936. O Tratado de Tordesilhas foi ratificado por Castela a 2 de julho e por Portugal a 5 de setembro de 1494. Do lado português estiveram presentes na cerimónia Rui de Sousa, senhor de Sagres e Beringel, o seu filho João Rodrigues de Sousa, almotacém-mor, e Aires de Almada, corregedor dos feitos civis na corte e do desembargo real. A nossa embaixada foi secretariada por Estêvão Vaz e teve como testemunhas João Soares de Siqueira, Rui Leme e Duarte Pacheco Pereira. Por parte de Castela e Aragão, o mordomo-mor D. Henrique Henríquez, D. Guterre de Cárdenas, comendador-mor, e o doutor Rodrigo Maldonado, secretariados por Fernando Álvarez de Toledo, que levaram consigo três testemunhas, Pêro de Leão, Fernando de Torres e Fernando Gamarra, nomes agora nada nos dizem, mas que talvez se arrependessem hoje de grande parte do que impuseram uns aos outros. Os originais encontram-se depositados no Archivo General de Indias, na Espanha, e no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Portugal, onde são consultáveis, mas deixaram de vigorar a partir de 1750, quando ambas as coroas estabeleceram novos limites fronteiriços para a divisão territorial nas colónias sul-americanas, concordando que rios e montanhas seriam usados para demarcação dos limites. Portugal, buscando proteger o seu investimento, já tinha negociado com Castela em 1479 o Tratado de Alcáçovas, obtendo em 1481, do Papa Sisto VI a bula Æterni regis, que dividia as terras descobertas e a descobrir de ambos os lados do paralelo que passa pelas Canárias. Foi como dividir o mundo em dois hemisférios e deixar o do norte para a Castela e o do sul para Portugal, resultado a que se somavam o efeitos das duas outras bulas anteriores a Dum Diversas, de 1452, e a Romanus Pontifex, de 1455, do Papa Nicolau V, que concedia à Ordem de Cristo todas as terras conquistadas e a conquistar a sul do cabo Bojador e da Gran Canária. Gentes e bichos que lá vivessem eram bons para o tráfico de escravos e para a caça grossa, que dava muito jeito a conquistadores e missionários. Claro que as negociatas não acabaram aqui, mas já chega de curiosidades pouco edificantes.
Hoje Macau EventosExposição | “Chapas Sínicas” na Torre do Tombo, em Lisboa, até 8 de Fevereiro [dropcap]A[/dropcap] exposição “Chapas Sínicas – Histórias de Macau na Torre do Tombo”, co-organizada pelo Arquivo Nacional da Torre do Tombo e pelo Arquivo de Macau do Instituto Cultural (IC), está patente ao público até dia 8 de Fevereiro. Em 2016 e 2017, a colecção foi inscrita no Registo da Memória do Mundo para a Ásia-Pacífico a nível regional e no Registo da Memória do Mundo, respectivamente. As Chapas Sínicas são uma colecção composta por mais de 3.600 documentos, incluindo registos oficiais de Macau redigidos em chinês durante a Dinastia Qing, ofícios traduzidos para português e outros documentos diversos, documentação esta que se encontra conservada no acervo do Arquivo Nacional da Torre do Tombo de Portugal. Os registos reflectem as condições da sociedade, a vida das pessoas, o desenvolvimento urbano e o comércio de Macau durante a dinastia Qing, representando ainda a importância de Macau para o mundo e registando histórias que, embora tenham ocorrido em Macau, são de relevância histórica para a China e Portugal, bem como para a história mundial. A exposição esteve já patente em Macau no ano de 2018.
Hoje Macau EventosExposição | “Chapas Sínicas” na Torre do Tombo, em Lisboa, até 8 de Fevereiro [dropcap]A[/dropcap] exposição “Chapas Sínicas – Histórias de Macau na Torre do Tombo”, co-organizada pelo Arquivo Nacional da Torre do Tombo e pelo Arquivo de Macau do Instituto Cultural (IC), está patente ao público até dia 8 de Fevereiro. Em 2016 e 2017, a colecção foi inscrita no Registo da Memória do Mundo para a Ásia-Pacífico a nível regional e no Registo da Memória do Mundo, respectivamente. As Chapas Sínicas são uma colecção composta por mais de 3.600 documentos, incluindo registos oficiais de Macau redigidos em chinês durante a Dinastia Qing, ofícios traduzidos para português e outros documentos diversos, documentação esta que se encontra conservada no acervo do Arquivo Nacional da Torre do Tombo de Portugal. Os registos reflectem as condições da sociedade, a vida das pessoas, o desenvolvimento urbano e o comércio de Macau durante a dinastia Qing, representando ainda a importância de Macau para o mundo e registando histórias que, embora tenham ocorrido em Macau, são de relevância histórica para a China e Portugal, bem como para a história mundial. A exposição esteve já patente em Macau no ano de 2018.
Sofia Margarida Mota Entrevista MancheteSilvestre de Almeida Lacerda, director-geral da Torre do Tombo: “Se não se conhece, não se ama” O director-geral do Arquivo Nacional da Torre do Tombo está em Macau para participar hoje na inauguração da exposição no Museu das Ofertas sobre a Transferência de Soberania de Macau. A mostra intitulada “Chapas Sínicas – Histórias de Macau na Torre do Tombo” conta a história do território ao longo de cerca de 400 anos. De Portugal, Silvestre de Almeida Lacerda trouxe como presente um conjunto de imagens de Macau dos anos 30 [dropcap]O[/dropcap] que nos contam as Chapas Sínicas? Contam-nos muitas histórias principalmente associadas a questões da administração desde o séc. XVI até aos finais do séc. XIX. Contam-nos as histórias sobre a jurisdição do trabalho desenvolvido pelas autoridades quer chinesas quer portuguesas, portanto de comunicação diplomática. Mas, sobretudo, trazem-nos o quotidiano local da altura, a criminalidade, com todos os aspectos da jurisdição e da fixação dos estrangeiros, com pirataria, naufrágios, etc. Como eram as relações diplomáticas nos momentos iniciais da presença portuguesa em Macau? No início do séc. XVI as relações passavam muito pela instalação da câmara de Macau, sobretudo ao nível do procurador ou ouvidor, e pela permanência de autoridades no território. Portugal podia ter o exército aqui e isso dava uma possibilidade significativa de permanência. Diria que, desde muito cedo, eram relações entre iguais em que há uma preocupação de quem administra os portugueses serem as autoridades portuguesas, e quem administra a comunidade chinesa serem as autoridades chinesas. Como é organizar uma exposição com este tipo de peças? Estamos a falar de tesouros. Acho que há aqui um factor particularmente feliz da colaboração entre o Arquivo Nacional da Torre do Tombo, a Direcção Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas (DGLAB) e o Arquivo de Macau. Este foi o primeiro passo. Ao longo dos últimos três anos, temos vindo a desenvolver o trabalho de recuperação e de conservação dos documentos que estão na Torre do Tombo. Foi necessário preparar todo um trabalho de intervenção sobre o estado em que a documentação se encontrava, que era bastante frágil. Estamos a falar de documentos com 400 anos. Uma coisa muito interessante que aconteceu tem que ver com o suporte destas obras. Inicialmente todos os indícios apontavam para que fosse papel de arroz, mas não é. Entretanto, com esta colaboração foi possível descobrir que a base essencial é o bambu. Descobrimos isto com a colaboração de um dos técnicos aqui do Arquivo de Macau que esteve a estagiar na Torre do Tombo e trouxe com ele conhecimento acerca dos vários tipos de papéis. Estes documentos foram primeiro classificados pela UNESCO como Memória da Ásia, em 2016, e só depois é que avançámos para a classificação como registo da Memória do Mundo da UNESCO. Dos 3700 documentos que fazem parte das Chapas Sínicas, estão cá apenas alguns. Originais trouxemos seis. São poucos mas são em grande formato, alguns têm quase três metros. São organizados tipo harmónio o que nos permite trazer uma caixa relativamente pequena em boas condições. Vêm todos associados a um aparelho, um datalogger, que nos permite monitorizar a humidade, a temperatura e mandar esses dados para Lisboa. O transporte foi feito à mão. Só não trazia as algemas agarrada a elas (risos). Foi um processo de exportação temporária destes documentos classificados como tesouros. FOTO: Sofia Mota Está à frente da Torre do Tombo, muitas vezes considerada como um espaço pouco acessível. Tem feito um trabalho que visa a desmistificação do secretismo do arquivo. A Torre do Tombo tem 100 km de documentos. Muitos destes documentos já estão acessíveis através da internet. Neste momento, temos cerca de 30 milhões de imagens disponíveis que as pessoas podem fazer download gratuito. Estamos a falar da democratização da história? Sim, é preciso fazer com que as pessoas possam conhecer. Se não se conhece não há capacidade de amar. O amador é aquele que ama e não aquele que tem menos competências. E ama porque conhece. Esta forma de desmistificar as coisas é possível só através do conhecimento. Por exemplo, muitas das Chapas Sínicas já estão em boa resolução no nosso site e até se pode fazer reutilização da informação. Estas obras apresentam um aspecto muito curioso: temos a representação de desenhos que estão associados ao conteúdo dos documentos. São desenhos de artífices e com esta possibilidade de reutilização e quase de reinterpretação podemos ter uma ponte para arte. As artes plásticas e gráficas podem reutilizar este tipo de materiais. Esta é outra forma para tentar que as pessoas olhem para os documentos de arquivo. Não só como preciosidades, mas como objectos dos quais se podem apropriar. Alguns deles têm mesmo que ser apropriados. Como por exemplo? Estamos a falar, por exemplo, nos casos que pretendem obter uma dupla nacionalidade e em que o interessado tem ascendentes portugueses há três gerações. A Torre do Tombo tem um registo da população portuguesa desde 1543, depois do registo sistemático a partir do Concílio de Trento. Atendendo que a população portuguesa é 99 por cento católica, temos os registos de baptismo, casamento e óbito. A partir daí somos capazes de construir a nossa genealogia e justificar direitos. Temos também registos judiciais. Alguns mais emblemáticos como o caso do Alves dos Reis, do Zé do Telhado e de outros criminosos mais ou menos célebres. Também temos documentação dos notariados, ou seja, o registo de escrituras desde o séc. XVI. Os arquivos são vivos. Não há arquivo morto. Têm vida quer para a investigação, quer enquanto provas para as necessidades dos cidadãos Quais são os temas mais procurados na Torre do Tombo? Neste momento, em termos estatísticos, a documentação mais procurada nestes quilómetros de documentos é a documentação sobre a Inquisição. A Torre do Tombo tem os processos da Inquisição desde a sua constituição no séc. VI até à sua extinção no séc. XIX. Estamos a falar da Inquisição de Lisboa mas que também da que abrangia o Brasil e a Ásia. Um caso muito curioso: temos panos da Índia associados a estes processos da Inquisição porque um familiar do Garcia da Horta foi preso e tentou passar essa informação. Para isso, ele utilizou como suporte um pano e com fumo negro escreveu que estava preso. Tentou passar essa informação que acabou por ser apanhada e ir junto ao processo como prova. Recentemente, e isto é uma novidade, foi-nos entregue o processo associado ao acidente de Sá Carneiro. Não está o avião (risos). Temos, noutros processos suportes musicais, poucos mas temos. Estou-me a lembrar do caso do Adriano Correia de Oliveira e do Zeca Afonso em que temos alguns vinis associados a isso. Ao contrário e na área da fotografia, temos milhões de imagens. Dos últimos números que apurámos estamos com cerca de 10 milhões de negativos de vidro, acetato, poliéster e alguns nitratos. Trouxemos para oferecer ao Arquivo de Macau um conjunto de 52 imagens de Macau que não estavam disponíveis, mas que digitalizámos para oferecer. São da antiga Agência Geral do Ultramar nos anos 30. Um conjunto interessante que acho que não era conhecido e que vai ficar cá para poder ser consultado e disponibilizado. Sobre o arquivo da PIDE, temos os processos individuais mas também temos a documentação da escola de polícia. Aqui uma das peças é um conjunto de mapas com o corpo humano. Isto significa que, cientificamente, era estudada a forma de torturar e de bater em pontos particularmente sensíveis e para que, nas visitas, não se verificassem nódoas ou marcas exteriores desta mesma tortura. Também temos, os artigos relacionados com a polícia política. Trata-se de documentação desde 1919, ainda da Primeira República em que os serviços de informação são criados a partir da reorganização de Sidónio Pais. É com ele que se estrutura um serviço que depois leva à prisão de quem canta o fado, nomeadamente fado subversivo. É a definição que nos aparece e que nós temos ao longo dos anos 20 e 30. Uma das características do fado em Lisboa era o chamado fado operário que era uma forma de expressão de sentimentos que não estavam de acordo com o exercício do poder. O próprio Rui Vieira Nery faz referências na história do fado a esta realidade e nós, na altura, fornecemos-lhe vários exemplos concretos de processos políticos de quem tinha sido preso por cantar fado subversivo. Quais são os seu documentos preferidos? Há um pelo qual tenho particular apreço. É o Apocalipse de Lorvão. Um manuscrito com os comentários dos beatos de Liébana que fica na zona das Astúrias. São um bocadinho heterodoxos em relação à igreja católica e estamos a falar do séc. XII, 1189. Há comentários ao Apocalipse, o livro da Bíblia, que são ligeiramente heterodoxos relativamente à forma como era olhada a religião católica. É um manual digamos, uma matriz, que depois se vai desenvolver na Península Ibérica. Candidatamos o Apocalipse do Lorvão a registo da memória do mundo conjuntamente com os nossos colegas espanhóis e fizemos um estudo sobre a circulação de manuscritos nesta altura, ou seja, sobre a circulação de conhecimento na Península Ibérica no séc. XII. É uma história particularmente significativa. Depois não posso deixar de falar da carta de Pedro Vaz de Caminha, ou seja do achamento do Brasil, mas para mim não é possível falar desta carta sem falar de uma outra, a do Mestre João que é um astrónomo e que desenha pela primeira vez o cruzeiro do Sul. A importância do cruzeiro do sul tem a ver com a orientação daquele hemisfério. No hemisfério norte fazemos a orientação pela estrela polar e no sul pelo cruzeiro do sul. Esta é a primeira vez que aparece um desenho feito por alguém que faz parte da mesma armada de Pedro Álvares Cabral. Na carta de Vaz de Caminha temos o contacto entre civilizações, que é a versão mais oficial e há também uma menos oficial que nos diz que esta carta é uma cunha, um pedido que ele faz ao rei para a libertação de um familiar preso em São Tomé. E no que respeita a documentos mais contemporâneos? O diário de Salazar. Está disponível online mas tem uma dificuldade, a letra não é fácil. Está a ser preparada a transcrição do diário com muitas notas de contextualização. Ele tomava nota da hora, e muitas vezes dos conteúdos das conversas que mantinha. É uma peça fundamental no estudo da história contemporânea. Além disso, há uma outra peça que é o processo da Casa do Luso da prisão de Álvaro Cunhal em 1949. Temos o processo judicial que está com abundante documentação do próprio arquivo comunista. Como vê o papel da tecnologia digital quando falamos de arquivos nos tempos que correm? Acho que o digital é uma oportunidade. A questão fundamental é esta: mudámos do pergaminho para o papel e já mudámos muitas vezes de suporte, mas enquanto no papel, pergaminho ou papiro eu tinha uma leitura directa e os nosso olhos são capazes de interpretar o medium utilizado, aqui tenho que ter um instrumento intermediário que me permita ter o acesso ao tal medium e esta intermediação tem que ser devidamente garantida Uma das questões essenciais que se coloca do ponto de vista do digital é a sua autenticidade, fidedignidade e confiança naquilo que tenho acesso. Naturalmente, que sempre houve falsificações, mas já há meios de identificar a sua maioria em suportes que conhecemos bem e não no digital que é relativamente recente. Neste momento há uma discussão a propósito do regulamento geral da protecção de dados. Acho que têm que ser realmente ponderados estes valores de privacidade mas acho que há questões que têm que ser devidamente estudadas e são essenciais do ponto de vista daquilo que é o acesso à informação. Temos de encontrar os mecanismos necessários para que a ideia não seja apagar conteúdos. Esta ideia do chamado direito ao esquecimento tem que ser enquadrada devidamente e temporalmente. Não posso apagar os meus registos pura e simplesmente porque a protecção e dados o prevê. O direito ao esquecimento é uma coisa que está no Tratado de Lisboa, que está na Base do Regulamento Geral da Protecção de Dados. Uma das discussões surgiu a propósito das Brigadas Vermelhas em Itália, que depois de se poderem eliminar dados surgiu um conjunto de dirigentes destas brigadas em posições de destaque. Do ponto de vista histórico isto é grave e esta foi uma das questões levantadas pelos directores dos arquivos de toda a União Europeia. Depois, na segunda versão do mesmo regulamento, já vem prevista, neste direito ao esquecimento, a excepção dos arquivos, dos fins de investigação e dos fins estatísticos para que não sejam apagados os registos, sendo que podem ser anonimizados durante um determinado período de tempo. Mas a ideia inicial seria apagar os registos. Não é uma discussão simples e tem que se ter algum cuidado. O que é isto de ser o “guardião” da história ? Além de ser uma responsabilidade muito significativa tem uma coisa fantástica: Temos uma equipa de gente que trabalha bastante bem e que gosta daquilo que faz. Temos duas componentes: um balcão aberto a toda a gente, a única restrição é o limite mínimo de 18 anos e o estado de conservação dos documentos. A manipulação permanente dos documentos é também um facto de degradação. Portanto, gerir estas necessidades de, por um lado dar acesso e por outro ter em conta as questões de conservação, é um equilíbrio que se tem que manter. Mas também não faz sentido conservar se não tivermos acesso. Este é, provavelmente, o aspecto mais interessante do ponto de vista de quem tem a responsabilidade de gestão. Nós não fazemos história, nós damos acesso.