De Tomás ao Ribeiro de Nietzsche

[dropcap]Q[/dropcap]uando tinha 17 anos, lembro-me de entrar na Faculdade de Ciências, na rua da Escola Politécnica, para almoçar na cantina. Mais do que a feijoada de búzios, o prato forte da ementa eram os discursos de Américo Tomás, ritualmente afixados sem quaisquer comentários nos corredores da entrada. Os génios da colina Monty Python, activos já desde 1969, não ficavam atrás daqueles guiões de verdadeira estultícia iluminada.

Anteontem, retirei da estante ‘A Origem da Tragédia’ de Nietzsche por causa de um texto que ando a escrever e eis que, sem saber porquê, me pus a ler o prefácio do tradutor, Álvaro Ribeiro, sobejamente conhecido pelos seus ofícios a bordo da chamada “filosofia portuguesa”. Garanto que tive vontade de o digitalizar, imprimir e ir a correr de novo à cantina daquela faculdade, embora, como se sabe, já não exista na mesma morada.

O texto começa por demarcar-se do “racionalismo dos séculos modernos”, realçando a degradação “iluminista e positivista”, para depois vincar um contraste entre a cultura alemã, idealista e pessimista nos seus geniais representantes”, e a “filosofia portuguesa, realista e optimista, de mais nobre e valiosa tradição”.

Logo a seguir, o encapelado discurso avança com uma tirada extraordinária: “A tradição portuguesa, desde a época do Infante D. Henrique até à época de Vasco da Gama, fala-nos do Oriente em palavras completamente diversas das que nos são dadas pela erudição alemā. Assim, o orientalismo alemão que começa na filosofia pelos trabalhos de Augusto Schlegel e que atinge o cúmulo na filosofia de Artur Schopenhauer, havia de parecer-nos uma violenta inversão de sabedoria tradicional.”. Se à data da redacção deste prefácio (1953), ou mesmo hoje, fosse possível comparar o estado dos estudos orientais na Alemanha ou na Holanda e em Portugal, eu atirava-me de cabeça das arribas do Douro.

Independentemente dos delírios iniciais, o autor continuará a tergiversar sobre a liberdade e a individuação, concluindo que o mal de Nietzsche era a sua ignorância do que qualificava como “filosofia atlântica” dos “europeus que por via marítima chegaram ao Oriente”: “Afastado, como todos os cientistas do seu tempo, da filosofia de Aristóteles, pensa Nietzsche que quanto mais se afirma o princípio de individuação e, com ele, a liberdade, tanto mais o homem cultiva a sua angústia e o seu desespero. Coerentemente, Nietzsche, pensador mediterrâneo, se condena Sócrates também condena Cristo, mas parece desconhecer as verdades que pertenciam já ao ciclo da filosofia atlântica, da filosofia dos europeus que por via marítima chegaram ao Oriente.”.

Não contente com este aceno a Nietzsche que, como se sabe não era nenhum anjinho, eis que o nosso Álvaro Ribeiro dispara depois ao nível de um verdadeiro clímax: “A superioridade da filosofia portuguesa sobre a cultura da Europa Central mais uma vez se afirma ao interpretar o Cristianismo e ao situar o mistério da Encarnação no quadro mais adequado à especulação teológica, evitando assim dificuldades como as que necessariamente irritavam o pensamento crítico de Frederico Nietzsche.”. Explicitada assim, sem mais nem menos, a superioridade do pensamento lusitano, segue-se a razão pela qual meio mundo sempre se mostrou negligente face à gesta filosófica dos portugueses: “Teólogos e apologetas que se preocupam demais com os problemas da Reforma e da Contra Reforma não prestam a devida atenção ao significado evangélico e universal dos Descobrimentos, porque do meridiano de Roma não é fácil ver a superioridade do simbolismo do barco sobre o simbolismo do túmulo.”.

No derradeiro passo deste luminoso prefácio, o filósofo nascido em Miragaia refere-se ao desespero de Nietzsche, esclarecendo que o pensamento português já há muito havia superado as aleivosias proferidas pelo autor nascido na Alta Saxónia: “O desespero de Nietzsche tem outro significado que foi já surpreendido por alguns teólogos da Alemanha, entre os quais é lícito mencionar Carlos Barth e Alberto Schweitzer. Para os pensadores de tradição portuguesa, este aspecto da obra de Nietzsche representa um momento já ultrapassado pela consciência religiosa que ascendendo evolui para Deus.”.

Já a terminar, Álvaro Ribeiro deixa para a posteridade dois tónicos fundamentais.
Um primeiro com o objectivo de explicar aos povos do planeta como estudar o pensamento português: “Para bem compreender a profunda religiosidade portuguesa é indispensável a demorada leitura de todos os livros do Novo Testamento, e não só dos Evangelhos. Meditando nas doutrinas dos apóstolos, e, consequentemente, nas dos missionários, não estranharemos que a filosofia portuguesa seja mais especulativa do que teorética, menos contemplativa do que actuante”.

Um segundo com o objectivo de relembrar, uma e outra vez, a superioridade da filosofia portuguesa face à alemã e o estranhíssimo interesse de algum público lusitano pelas obras do senhor Friedrich: “Se a filosofia portuguesa, mais por suas verdades cifradas do que pelos seus livros publicados, é superior à filosofia alemā, como explicaremos a inegável predilecção dos católicos portugueses pelas obras de Frederico Nietzsche? Cremos que tal interesse significa a natural reacção contra o racionalismo cristão e utópico que a cultura francesa propagou em certos melos eclesiásticos, e corresponde ao desejo de procurar, para além dos paradoxos germânicos, as verdades que não puderam ser bem formuladas nos sistemas clássicos da mentalidade moderna.”.

Enfim, estou a ver-me agora mesmo a sair do Rato, a percorrer de novo a rua da Escola Politécnica e, por fim, a entrar nos portões metálicos que hoje permitem o acesso aos ‘Artistas Unidos’. Na parede da antiga cantina, colo com fita adesiva o texto deste prefácio para que a incredulidade de uns possa ser o ADN de outros (clarifique-se que ADN é a sigla de ácido desoxirribonucléico, um composto orgânico cujas moléculas contêm as instruções genéticas que coordenam o desenvolvimento e funcionamento de todos os seres vivos, mesmo daqueles que pensam com a cabeça virada para o Império de São Lourenço do Bugio).

6 Fev 2020

Orientalismo | Obra esquecida do século XIX volta a ser editada em Portugal

Everton Machado, investigador da Universidade de Lisboa, percebeu que “As Jornadas”, livro de Tomás Ribeiro dos anos 70 do século XIX, agora reeditado em Portugal, reflecte a preocupação da época do poder político português com as colónias a Oriente

 

[dropcap]A[/dropcap]pesar de ter sido considerado um escritor de “segunda categoria”, esquecido no panorama literário português, Tomás Ribeiro, nascido em 1831 e falecido em 1901, deixou um importante testemunho sobre a época que viveu. Nomeadamente, no que toca à forma como, em pleno século XIX, a metrópole portuguesa não se preocupava apenas com as colónias africanas e com as pretensões materializadas pelo Mapa Cor-de-Rosa.

A descoberta foi feita por Everton Machado, investigador do Centro de Estudos Comparatistas da Universidade de Lisboa (UL), que lança este ano, com a chancela da Biblioteca Nacional de Portugal, o estudo “O Orientalismo Português e As Jornadas de Tomás Ribeiro – Caracterização de um problema”, que se faz acompanhar da reedição da obra esquecida de Tomás Ribeiro.

O livro não é mais do que um relato da viagem que o autor fez quando partiu para a Índia, onde desempenhou, pelo período de dois anos, o cargo de secretário-geral do vice-governador da Índia Portuguesa, Januário Correia de Almeida, visconde de São Januário, que seria depois Governador em Macau, em substituição de Ferreira do Amaral. As páginas de “As Jornadas” relatam, portanto, o périplo que Tomás Ribeiro fez por Espanha, França, Egipto, Áden (Iémen) e Bombaim até chegar a Goa, onde ficou entre 1870 e 1872. É em Goa que publica a segunda parte de “As Jornadas”, que também foram editadas em Portugal.

Em entrevista ao HM, Everton Machado declara que o livro, apesar de ignorado no meio literário, é importante porque revela essa preocupação com os territórios ocupados e administrados no Oriente. Apesar da Índia Portuguesa ter tido sempre o foco principal, Macau era também um território que gerava receios junto dos governantes.

Já quando o Império português começa a entrar em decadência, depois do fulgor vivido no século XVI, aquando dos Descobrimentos, surge “uma obsessão com o colonialismo e o império subalterno” às mãos dos ingleses e dos franceses.

“Há autores que defendem que, no século XIX, não teria havido uma questão do Oriente. Por isso, não se poderia falar de orientalismo português no século XIX, e eu tento demonstrar através da obra de Tomás Ribeiro que afinal havia essa questão”, contou Everton Machado.

“Claro que o foco maior do Governo, na altura, era África, por causa da questão do Ultimato [inglês]. Mas isso não quer dizer que o Governo não se preocupava com o Oriente. Havia de facto também interesse pelo Oriente, sobretudo pela Índia. O problema africano não deixou de lado o Oriente na segunda modernidade e a partir daí conseguiríamos falar de um orientalismo português no século XIX e XX”, frisou o autor.

Importa dar o contexto de que o ultimato inglês foi a resposta britânica às pretensões territoriais portuguesas espelhadas no Mapa cor-de-rosa, que traçava uma faixa no continente africano, entre Angola e Moçambique, englobando na soberania lusa países como Zâmbia, o Zimbábue e Maláui, entre o Atlântico e o Índico. Ora, as pretensões portuguesas esbarraram no projecto ferroviário britânico que pretendia ligar a África do Sul ao Egipto. Como tal, a Rainha Vitória fez um ultimato à coroa portuguesa: Ou esquecem o mapa ou têm guerra. Apesar dos protestos do rei D. Carlos, Portugal acaba por recuar face ao ultimato de Londres.

A preocupação com Macau

Para o investigador, há uma questão de “centralidade” no livro de Tomás Ribeiro, pela forma como o autor “coloca as questões relativamente à Índia e ao Império português”, ao estabelecer a ideia de que “há outros orientes portugueses”. Apesar disso, “a Índia acaba por ser estruturadora e representar as grandes conquistas, como a chegada de Vasco da Gama ao território. A Índia ocupa no imaginário português um lugar especial e ‘As Jornadas’ acabam por nos dar essa realidade”, acrescentou Everton Machado.

A viagem de Tomás Ribeiro é feita na companhia de vários intelectuais que iam desempenhar serviços nos territórios orientais, como foi o caso de Januário Correia de Almeida, visconde de São Januário. Este, depois de dois anos a desempenhar um importante papel como vice-governador da Índia Portuguesa, embarca para Macau. Tomás Ribeiro regressaria depois à metrópole.

Apesar de “As Jornadas” não retratarem Macau, acabam por estabelecer um elo de ligação com o território, dado o importante papel que Januário Correia de Almeida teve no desenvolvimento da Macau portuguesa.  “Ele queria desenvolver Macau”, apontou Everton Machado. “Ferreira do Amaral foi o grande Governador, que no século XIX garantiu a colonização de Macau, pois havia a preocupação de garantir a soberania dos portugueses no território”, explicou o académico.
O livro mostra também “a própria acção do visconde São Januário em Goa, que foi considerada das mais importantes, apesar de só lá ter estado dois anos, e também por causa da sua acção em Macau, que nos mostra que ele tentou lutar pela soberania de Portugal em Macau”.

A crítica ao “desleixo”

Everton Machado recorda as palavras do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, que fala da existência, no século XIX, de “um colonialismo subalterno de Portugal”, isto porque Portugal se havia tornado “quase numa colónia formal do império britânico, pois não tinha mais nenhum poder no tabuleiro político da época”.

Nesse sentido, “As Jornadas” fazem críticas ao facto de Portugal se ter rendido ao papel de país periférico e de não ter lutado para manter a glória do século XVI, tal como o fizeram outros intelectuais da época.

“O que muitos intelectuais fazem, e o que Tomás Ribeiro faz também, é essa constante crítica ao desleixo do Governo português na altura com as suas colónias, ao mesmo tempo que crítica as acções dessas posições hegemónicas, exaltando sempre a grandiosidade do império português, mas, por outro lado, pondo de parte Portugal”, disse Everton Machado.

No livro “O Orientalismo Português e As Jornadas de Tomás Ribeiro – Caracterização de um problema”, o autor não deixa de lembrar que Tomás Ribeiro não foi o único a lamentar a decadência do império português. “O sentimento híper-identitário é patente noutras narrativas de viajantes portugueses da altura, acompanhado da denúncia face ao desleixo da metrópole para com as colónias. São exemplos “Jornadas pelo mundo” (1895), do Conde de Arnoso, Bernardo Pinheiro Correia de Melo (1855-1911), e “No Oriente: de Nápoles à China” (1896-1897), de Adolfo Loureiro (1836-1911).”

Everton Machado cita mesmo Fátima Outeirinho quando esta afirma que “os textos de Tomás Ribeiro e Adolfo Loureiro são ocasião de testemunho de um sentimento de decadência, de denúncia de uma atitude de negligência e de lamento perante a malsucedida acção governativa portuguesa nessas paragens longínquas”.

10 Jul 2019