Tereza Sena, historiadora: “Houve confiança do Imperador em Tomás Pereira”

Acaba de ser lançado, em Portugal, o livro “Tomás Pereira e o Imperador Kangxi – Um Diálogo entre a China e o Ocidente”, editado pela Guerra e Paz, e da autoria de Tereza Sena, historiadora e ex-residente de Macau. Trata-se de uma narrativa histórica, com elementos ficcionais, do percurso do jesuíta português até à China e da relação especial que estabeleceu com o Imperador Kangxi. O objectivo é mostrar mais detalhes sobre a missão deste português jesuíta ainda pouco conhecido do grande público

 

Quando começou o projecto para a construção desta narrativa histórica?

Tudo partiu de um convite da embaixada de Portugal em Pequim, na pessoa de José Augusto Duarte [ex-embaixador] que fez uma proposta à Universidade de Macau em prol de uma maior divulgação da figura de Tomás Pereira. Este não é um trabalho académico, mas sim uma narrativa histórica destinada ao grande público. É uma obra síntese sobre Tomás Pereira, que é ainda desconhecido. Na altura, fiquei em Macau mais algum tempo e fui enquadrada na Universidade de São José com o objectivo principal de escrever esta obra, que poderá ser traduzida para chinês e para inglês.

Decidiu então escrever sobre a relação próxima que Tomás Pereira teve com o imperador Kangxi.

Esta foi a forma de abordar [o tema] e trazer um pouco para o lado português as relações sino-ocidentais e o papel de Macau, bem como os aspectos da acção dos missionários, com especial destaque para os jesuítas, devido ao papel que tiveram na corte imperial. Há todo um trabalho académico que foi feito sobre Tomás Pereira, sobretudo em 2008, uma série de iniciativas comemorativas dessa personalidade, quando se celebraram os 400 anos do seu falecimento. Nessa altura, do ponto de vista científico, ele era uma figura pouco estudada. Em toda a historiografia, mesmo dos jesuítas, dá-se sempre relevo a outras personalidades na corte de Pequim. Nessa altura surgiu o projecto, no seio do Centro Científico e Cultural de Macau (CCCM), de reunir, com vários académicos, as diversas obras de Tomás Pereira, que estavam dispersas, nomeadamente as cartas.

Que trocou com que personalidades?

Dentro da própria Ordem, com os superiores e os companheiros, e temos algumas cartas trocadas com autoridades, algumas com o próprio rei de Portugal, e cartas de viagens que fez. Temos um texto, a pedido de um antigo mestre dele, o João Queirós, sobre o budismo na China. Mas esse foi um trabalho académico, aqui faço uma abordagem diferente, uma tentativa de construção de um quase romance, um guia do que foi a vida de Tomás Pereira, mas contextualizado. Isto porque pouco sabemos dele até à sua chegada a Pequim. Tentei fazer esse ajuste biográfico, construindo uma narrativa em que o Tomás Pereira aparece como protagonista, mas não como herói. Aparecem no livro uma série de conjunturas em que ele está inserido. Fui buscar textos, mesmo que não sejam do tempo do Tomás Pereira, que contextualizam a viagem marítima, a vida em Goa, a formação dos jesuítas, um pouco da história de Macau. Há depois uma segunda parte em que o protagonista entra directamente em cena e já é uma narrativa construída, mas onde fui buscar mais elementos à sua epistolografia [escrita de cartas]. Não só utilizei material que tinha compilado em 2008 como me socorri das Obras Completas de Tomás Pereira, que foram depois publicadas.

Porque é que Tomás Pereira foi tão importante?

Houve uma grande propaganda, por parte dos jesuítas franceses, com o Tratado de Nerchinsk [assinado em 1689], quando se conseguiu uma certa liberdade religiosa em Pequim, embora não fosse plena. Há que olhar para os conflitos entre as nações que existiam na altura. A Companhia de Jesus [a que pertencia Tomás Pereira] estava cada vez mais nacional e menos internacional, porque tinham membros de todas as nacionalidades. Os jesuítas eram criticados pela exclusividade da missão missionária na China por parte de outras ordens, que também queriam ter as suas missões e, como sabemos, a Companhia de Jesus teve a exclusividade, até certa altura, do trabalho missionário na China e no Japão. Houve a contestação dos direitos do Padroado também. Tomás Pereira foi um acérrimo defensor dos direitos do Padroado e assume um papel extremamente importante nesse aspecto, tendo sido atacado por muitos, acusado de estar ao serviço do Padroado. Sendo um jesuíta português de grande envergadura, e com assento na corte de Pequim, com contactos com o Imperador, ensinando-lhe música, e sendo-lhe confiadas algumas missões importantes, mesmo ao serviço da corte…

Tais como?

Uma delas foi o papel de mediador na assinatura do tratado sino-russo [de Nerchinsk]. Foi-lhe atribuída a responsabilidade sobre o tribunal das matemáticas, embora em conjunto com outro jesuíta. Houve uma confiança que o Imperador depositou em Tomás Pereira, que é, de facto, uma figura de relevo nas relações sino-ocidentais e é um português. Não é tão conhecido, porque todos falam do Mateus Ricci, por exemplo. Todos tinham o seu papel no seio da Companhia de Jesus, mas de facto Tomás Pereira não é uma figura tão popular como os outros.

Esta relação com o Imperador Kangxi foi de facto especial.

Creio que sim, embora tenhamos de ter sempre alguma precaução. Nestas narrativas jesuíticas sobre este conflito de interesses, de contestações, de Roma e de outras ordens, sempre com as pressões nacionais por detrás, qualquer gesto do Imperador, relativamente aos jesuítas, à Missão, à própria Companhia ou à Igreja, era exacerbado. Colocavam tudo nas cartas para que o Ocidente soubesse da sua relação privilegiada com o Imperador. Por isso temos sempre de ter alguma precaução. Os pequenos gestos que são descritos, de ofertas do Imperador, por exemplo, têm de ser interpretados como sinais que o Imperador dava de estima daquelas pessoas, e que os considerava seus cortesãos, embora respeitando uma hierarquia na corte imperial.

Chegou-se a estabelecer uma espécie de relação de amizade entre os dois?

É muito difícil de dizer, embora Tomás Pereira se tenha referido ao “grande amor” que o Imperador sentia por ele. Amor no sentido figurado, de respeito. A minha interpretação é que se tratou mais de uma relação de respeito e de confiança. Ao atribuir-lhe determinadas tarefas e missões o Imperador revela ter confiança em Tomás Pereira. Havia sempre um cerimonial, regras. Era uma relação sempre um pouco à distância, até porque o Imperador era sempre intocável. Não havia uma intimidade entre os dois como a concebemos no Ocidente. Eles poderiam, por exemplo, inquirir mais directamente o Imperador, enquanto os restantes cortesãos tinham de fazer um requerimento.

Sente que, com esta obra, dá mais um contributo para o conhecimento da China, também, além da própria figura de Tomás Pereira?

Sim. A ideia é também essa, mostrar e despertar a curiosidade do leitor que não está familiarizado com estas temáticas para este tipo de relações e sobre a presença de portugueses na China, neste período, com determinados objectivos. Perceber como se faziam os contactos, como se organizava a corte imperial chinesa e até como era o papel de Macau em tudo isto. Este tipo de livros praticamente não tem uma bibliografia porque é quase ficção, ainda que seja uma narrativa histórica.

O livro tem muitos elementos ficcionados?

Alguns. A parte da viagem, por exemplo. A infância. Inspirei-me em leituras que já tinha feito e em muitos textos que são aqui utilizados, [existindo elementos] que fazem parte do nosso imaginário sobre a Expansão e que nem são do tempo do Tomás Pereira. Fiz isso para mostrar, por exemplo, como era a vida a bordo. É uma narrativa plausível, e se ele não passou exactamente por aquilo, poderia ter passado. A ideia é dar a conhecer a vida destes homens e por isso não dei a Tomás Pereira o papel de herói, mas sim de protagonista de um movimento que envolveu muitos portugueses. Não se sabe a rota exacta que fez de Macau para Pequim, e aí aproveitei elementos dos escritos do Fernão Mendes Pinto, por exemplo. Foi uma conjugação de múltiplos textos que fazem parte da nossa memória colectiva.

6 Out 2022

Tereza Sena, historiadora: “Estamos aqui de pleno direito”

Passaram mais de 30 anos desde que chegou a Macau. Agora está na hora de partir. Aos portugueses que ficam, Tereza Sena lembra que “estamos aqui de pleno direito”, enquanto intervenientes seculares das relações da China com o resto do mundo. Mas sublinha: “com respeito ao que está em jogo e à soberania”

 

Quando chegou pela primeira vez a Macau?

Vim a primeira vez em 1986. O meu marido tinha vindo em Outubro e eu vim com a miúda passar o Natal. Estive cá até Fevereiro — estava a acabar a minha tese nessa altura. Vim definitivamente no ano seguinte, em finais de 1987.

Era uma Macau muito diferente do que é hoje?

Completamente diferente. Não só em termos de estrutura da cidade, obviamente que com uma vivência completamente diferente, mas inseridos num meio profissional e um âmbito cultural. Tínhamos uma grande actividade e um grande sentido de construção e de divulgar Macau. A noção de um tempo perdido, de muita coisa que não tinha sido feita. A Administração estava empenhada nisso e havia meios humanos e financeiros.

Muito mais do que em Portugal?

Sim. Era bom trabalhar em Macau nessa altura. Tinhas ideias e podíamos fazê-las, as equipas eram relativamente novas. Tive a sorte de entrar num sítio que não tinha apenas portugueses. Era o Instituto Cultural, em que havia equipas mistas, com chineses. Todos tinham um sentido de conhecimento e de fixação da memória de Macau e da sua internacionalização.

Trabalho esse que estava ainda muito por fazer.

Sim. O Arquivo Histórico tinha acabado de abrir nessa altura, estava em organização, ainda não havia a informatização das bibliotecas. Houve todo um processo de digitalização de documentos e de bibliografia.

Em termos sociais como via na altura a comunidade portuguesa e as suas relações com a comunidade chinesa?

Tirando esse microcosmo onde eu trabalhava, que era um bocadinho diferente de outros [locais], pelas temáticas e áreas em que intervínhamos, havia muitas Macau, havia os gabinetes, várias camadas, muitos universos. Sempre tivemos uma postura, eu e o meu marido, de não nos envolvermos muito nesse tipo de ambiente. Nunca quisemos viver num gueto e tentámos compreender o sítio onde estávamos e tentar intervir. Nunca nos sentimos descriminados.

Isso antes da transferência de soberania.

Sim. Tivemos sempre um bom relacionamento com a comunidade macaense e com a comunidade chinesa que é mais difícil de privar ou de entrar em grande intimidade. Isso nunca aconteceu muito, tirando um ou outro caso. Mas tenho amigos chineses que frequentavam a minha casa.

A Graciete Batalha, num artigo que publicou na Revista de Cultura, fala de um sentimento que haveria em Macau nessa altura, e que se reflectia na poesia e na literatura, a que chamou “a angústia do fim”. Sentiu isso?

Quando vim essa primeira vez passar o Natal, colaborava também com os jornais, incluindo o Diário de Notícias. Fiz uma grande entrevista ao [Henrique] Senna Fernandes. Foi publicada no DN e agora foi republicada num volume sobre os macaenses feito pelo professor Roberto Carneiro. E o título da entrevista “Macau, a saudade antecipada”, e fez-me lembrar isso. Havia sim [esse sentimento]. Cheguei na altura da Declaração Conjunta e havia esse sentimento, a questão da perda, o que iria ser o futuro. O Senna Fernandes dizia que não podia pensar, de maneira nenhuma, não viver aqui. Disse-me que iria ter muitas saudades, mas sabemos que ele se adaptou. Era o sentimento dominante na altura, porque era uma grande incógnita. E também essa preocupação com a fixação da memória que nunca tinha sido feita, ou contribuir para uma história mais actualizada, tem tudo a ver com isso. Uma tentativa de deixar uma memória.

Mas houve uma diferença em 1991/1992, com a chegada de Rocha Vieira e da sua equipa.

Sim. As coisas aí mudaram um pouco. Houve altos e baixos. Mas um pouco esse espírito do final dos anos 80 perdeu-se um pouco, porque a Administração burocratizou-se demasiado. Aquela facilidade e sentido de construção dos projectos, o saltar todas as barreiras, houve uma série de entraves colocados. Lembro-me que, na altura, no IC, estava a gerir a parte da investigação, quando se estabeleceram critérios e pareceres científicos, começaram a colocar-se, na explicação destes trabalhos, a teoria da consulta pública, o que não fazia sentido. Se estávamos no meio académico e é apresentado um projecto sobre Macau que tem consistência e que é importante ser concretizado, não se pode abrir uma consulta pública para ver a quem se pode adjudicar o projecto.

Alguma dose de desconfiança?

Houve uma certa desconfiança, mas mais para a frente as coisas acalmaram.

Até que chegamos à transferência de soberania. A Tereza ficou cá, como sentiu esse processo e os tempos posteriores?

Em termos profissionais estive bem, e houve continuidade nos primeiros anos, até 2001. Houve mudanças no IC e o projecto e a noção que havia das coisas alterou-se um pouco. Achei que aquela contribuição que poderia dar não seria a mesma, os critérios de cientificidade também, e fui para Portugal durante dois anos, até 2003. O Instituto Ricci convidou-me depois e vim. Mas isso é uma conjuntura profissional.

Foi o que sentimos até 2003, uma reacção quase natural.

Eu diria mais pelo perfil das pessoas que estavam à frente destas áreas, teriam outras prioridades que não se coadunavam com aquelas que eu achava que seria as importantes. Quando achei que o projecto poderia voltar a ser interessante, voltei. Mas em termos pessoais não tenho nada a dizer, as relações que tinha continuaram na mesma. Começaram todos a tentar falar português, o que antes não acontecia, porque como era a língua do poder tinham medo. Quando esta terra já era a deles queriam mostrar que nós éramos bem recebidos, então esforçavam-se imenso por falar português, mesmo nas lojas. Depois da cerimónia da transferência de soberania, eu vinha emocionada e houve um senhor chinês que reparou nisso e agarrou-se a mim, abraçou-se a mim e disse: “Amiga, não vá embora, nós precisamos de si”. No ano 2000 os meus colegas chineses tomavam conta de mim, diziam o que eu precisava de fazer.

Mas em termos políticos houve uma mudança com o Fórum Macau.

Lá está, não vivi isso. Houve uma travessia no deserto e não se sabia qual era o sentido de Macau nem dos portugueses que cá estavam.

Quando voltou continuou na mesma linha de investigação?

Da parte do Instituto era gestora cultural, embora fosse fazendo sempre alguma investigação. Tinha muito trabalho. O meu trabalho não era exactamente desenvolver a investigação, mas pontualmente fui fazendo isso. Só quando fui para o Instituto Ricci é que passei a investigadora a tempo inteiro, mas não só. Havia as sessões culturais, os congressos, já numa perspectiva de relacionamento com a China e de história contemporânea. Aí tive de entrar mais pelo campo dos jesuítas. No IC houve outra coisa muito importante que foi a internacionalização. Havia muito interesse em Macau a nível internacional e também por parte da academia.

Isto antes de 1999.

Sim. Todos os dias tinha correspondência e recebia um investigador estrangeiro.

Como vê a história de Macau do ponto de vista do seu desenvolvimento e da quantidade de trabalhos produzidos?

Houve uma linha de continuidade em alguns casos, com o mesmo entusiasmo, com menos financiamento, mas foram-se fazendo algumas coisas.

Podemos considerar que, de alguma maneira, existem duas histórias de Macau?

Há muitas.

Temos aquela que é feita a partir dos documentos chineses e a outra, a partir dos documentos portugueses. Até que ponto é que estas histórias diferem?

No final dos anos 90 uma das coisas que se conseguiu fazer… até aí os encontros que se faziam havia as histórias nacionais que marcavam as abordagens. Às vezes era difícil entendermo-nos porque os pressupostos de onde partiam eram diferentes. E mesmo a própria adjectivação e catalogação da história assim existia. Depois de muitas conversas conseguimos entrar num acordo em termos conceptuais, num célebre encontro sobre a história de Macau que aconteceu na Fundação Oriente. Vieram investigadores chineses e ocidentais e foi decidido que se ia por de lado esse tipo de classificação e começar a trabalhar aspectos da história de Macau. Toda aquela geração, a linha de Camões Tam… a Revista de Cultura publicou muita coisa sobre isso e passamos a olhar para a história de Macau como várias histórias. E penso que nunca haverá uma história de Macau, porque é impossível. Se formos a ver, do ponto de vista americano, ou do comércio internacional das comunidades que por aqui passaram, eles têm uma outra história de Macau. Nós temos uma, e os chineses têm outra. Quando chegamos ao consenso de que tinha sido um território de administração partilhada, que teremos sempre de ir sempre por essa perspectiva.

Foi essa a conclusão a que chegaram, que foi sempre um território de administração partilhada?

Sim. Havia visões de um lado e do outro, e nenhuma se poderia sobrepor à outra. Pensamos que cada um iria trabalhar os seus documentos, discutir aspectos.

Olhando só para os documentos, é talvez difícil… há muita coisa que fica de fora, porque muita da história de Macau não foi feita em documentos. Será assim?

Exactamente. Nomeadamente essa partilha, que não foi feita em documentos. Por isso é que comecei depois a estudar a história da tradução, embora não haja muitas fontes nem documentos. Consegue-se detectar, nas entrelinhas e nos conflitos, ou nas cartas do Senado, ou nas chapas sínicas, o papel do mediador. Percebe-se que houve tensões que foram sendo resolvidas que não vêem nos documentos.

Queria falar agora de dois momentos de tensão na história de Macau. Ferreira do Amaral e a expulsão das alfândegas chinesas e mais recentemente o 1,2,3. Parece que, tendo havido a inclinação do bambu para um lado, depois o bambu volta ao mesmo sítio.

Há ainda um momento de tensão anterior, grande. Porque a história de Macau é isso. Quando falo da história de Macau falo da cidade portuária, que não é uma cidade portuguesa. Foi, em 1887, reconhecida a soberania portuguesa com o tratado, mas com limitações. Mas vamos mais para trás.

Isso é o que está escrito no tratado, mas na prática…

Mas isso já existia desde finais do século XVI, quando em 1582 ou 1583 o procurador do Senado passa a ter o título de mandarim em segundo grau, para dialogar com as autoridades chinesas, está implicitamente reconhecida a dupla soberania em Macau. Ele é o elemento de ligação entre o Senado, o núcleo da cidade cristã, dos portugueses e macaenses, escravos, chineses aculturados, e os outros que estavam no outro lado. Quando havia algum conflito, ou abastecimento de mercadorias, havia sempre diálogo. Daí a importância das chapas sínicas para a compreensão de Macau. A partir de certo momento debate-se na China o que se há-de fazer com aqueles bárbaros, que eram úteis por causa do comércio, mas não podiam extravasar muito do sítio onde estavam. Então construíram as Portas do Cerco. Quando as coisas corriam mal fechavam a porta, não vinham alimentos e então começava-se a negociar. Isto foi assim ao longo dos séculos.

Depois vem Ferreira do Amaral.

Ele vem dar execução a um projecto que era anterior, de 1783, as providências do Martim de Melo e Castro. É o primeiro plano que existe para um controlo da coroa portuguesa sobre Macau. Era o tal documento de tensão, o chamado Código de Qianlong. Esse é que é o grande momento, de ruptura, deste equilíbrio.

Já tinha havido o Código de Quangli, mas a coisa resolveu-se. Eram as regras de não poder construir nas muralhas ou edificar mais casas, ou de que os japoneses não podiam estar em Macau. Isto para controlar. O Código de Qianlong diz o mesmo mas põe na mesa uma coisa fundamental: a proibição do catolicismo. É a única diferença, gigantesca para a coroa portuguesa, que não podia admitir uma coisa daquelas. Nesse momento de grande tensão, a coroa portuguesa faz um documento para a regulamentação de Macau. Mas aqui já estamos em contexto de comércio internacional, já outras potências estão a querer dominar. Daí todas as críticas estrangeiras em relação a Macau, de que nós não dominávamos nada. O tal projecto de Melo e Castro, com a criação da alfândega, começa a haver uma tentativa de imposição de uma lei portuguesa em Macau. Gera-se um período de conflito e o Ferreira do Amaral foi o executor desse projecto.

Então não foi ele que o concebeu.

Não. Foi o que se viu, mas perante aquela reacção, houve logo uma reconciliação. Começou a centrar-se novamente na negociação. Acabada a Guerra do Ópio e a cedência de Hong Kong e os tratados, aí Portugal começou a querer desesperadamente um tratado. Estávamos aqui há 200 anos e os ingleses já tinham [um acordo]! São 48 anos para se tentar conseguir um tratado, que é inteligentíssimo, por parte da China. Eles reconhecem realmente a soberania portuguesa, mas com duas reservas: uma é não permitir a alienação do território e não haver a delimitação das águas territoriais, como ainda hoje não há. Sem delimitação não se sabe que território se domina.

Com o 1,2,3 também se tenta atingir um equilíbrio?

Foi a mesma coisa, quando é reconhecido o papel de mediação que Macau sempre teve ao longo da história. Uma das minhas teorias, ou sínteses, é a mediação com o Japão, depois com o comércio internacional, e depois há uma fase, aquando do fecho da China, com o ouro. A China não tinha representação na ONU nem a nível do comércio internacional. Depois de 2003, a ligação com os países de língua portuguesa. A lógica é sempre a mesma.

Tem esperança que a comunidade lusófona possa ainda ter um papel a partir desta época em que vivemos?

Sim, a comunidade lusófona. Mas acho que neste momento cada vez será menos precisa a presença de portugueses para desempenhar esse papel de ponte. Porque com o investimento e o conhecimento do português… estamos no domínio da língua neste momento. O relacionamento será muito mais a esse nível, penso eu.

Mas, se calhar, a nossa comunidade não soube ou não pôde, nestas duas décadas, tornar-se num pilar dessa ponte.

Porque a nossa comunidade aqui… nem sei se é bem uma comunidade. Temos essa lógica do mercador, do comerciante, do intermediário, homem de acção, e temos ainda a herança da administração, da mentalidade do funcionário público. Houve uma renovação com alguns jovens que vieram para Macau. Começou a existir em Macau negócio português, que era coisa que não existia. Mas é muito virado para Macau, para dentro. Essa perspectiva de fazer pontes, não vejo muito.

Para estabelecer relações com os países lusófonos, seria importante desenvolver esse lado cultural?

É fundamental. Houve algumas iniciativas nesse sentido, mas acho que as instituições culturais estão muito viradas para o interior da China.

Talvez o facto de Macau ser vista como uma cidade internacional faça com que os chineses de Macau devam algo ao interior, no sentido de serem mais chinesas. Reforçar a sua identidade chinesa.

Nestes momentos há sempre essa tendência. Daí que os estudos de Macau sejam interessantes do ponto de vista para marcar a diferença, [ter] uma identidade construída. Houve muita coisa desenvolvida para o conhecimento de Macau este ano. Penso é que as próprias pessoas poderão balancear um pouco, ter receio de se quererem autonomizar demais. Talvez elas se queiram encostar um pouco ao novo poder. As gerações também mudaram. Talvez estejam a pensar no seu futuro e não podemos pensar mal disso.

Mas será que a nossa comunidade ainda pode ser útil, aqui, para a China?

Penso que sim. Pelo menos para fazer isto, este tipo de postura. Não podemos estar aqui como se nos dessem licença para cá estar. Estamos aqui de pleno direito, enquanto intervenientes neste processo de comunicação. Mas com respeito ao que está em jogo e à soberania. Macau teve um papel fundamental ao longo da história para a própria história da China, e a China serviu-se de Macau, tal como Portugal o fez, criou-se aqui uma cultura, criaram-se gentes.

Nas últimas três décadas a China mudou muito. Isso teve um efeito importante sobre Macau, mas diminui o seu papel de mediador.

Exactamente. Estamos a hegemonizar uma China que tem a sua missão e direito de a ter, e que faz o seu percurso. Mas era bom que esse percurso não fosse feito com branqueamentos nem com a imposição do que abolimos em 1990, uma visão ideológica da história.

É altura de se ir embora, porquê?

São questões pessoais, familiares. Fiz quase toda a minha vida profissional aqui e fi-lo com alguma seriedade e empenho, e dedicação a Macau.

O balanço é satisfatório?

É. Não estou arrependia, senti-me muito bem em Macau, desviei completamente a minha investigação para outra área. Não sabia nada da história de Macau quando cheguei e foi um desafio constante. Na faculdade, em Portugal, não se falava de Macau.

Como vê agora a posição da nossa comunidade?

Essa é uma pergunta muito difícil. Neste momento, é uma comunidade muito dividida. Antes também era em termos de não haver partilha de interesses ou de haver vários grupos. Mas havia um sentido de conjunto, pontos de encontro, e neste momento não há. Esse centro, de falar na rua, o nervo da cidade, a comunicação entre as pessoas, perdeu-se. Bastava pegar num telefone, porque a cidade estava lubrificada. Hoje em dia a comunidade está dispersa, encontramos pessoas e perguntamos: “estás cá?”. A cidade cresceu e as condições de vida alteraram-se. Essa polarização cultural deixou de funcionar.

Que mensagem nos deixaria no momento da partida?

Sejam felizes… Se sentem que estão a fazer alguma coisa por Macau, que vos dá satisfação em termos pessoais e profissionais, se há um projecto, um sentido de construção. Se têm necessidade em termos económicos, é admissível…, mas neste momento é difícil estar em Macau pois estamos fechados. Podemos ser elementos construtores de diálogo com a comunidade e com a própria China. Se pudermos demonstrar que somos importantes nesse projecto de diálogo que a China tem com o mundo, e se estiver dentro dos nossos parâmetros e valores, cumprimos o que sempre foi Macau.

30 Nov 2021