Odisseia nos espaços

[dropcap]R[/dropcap]evi ‘2001: Odisseia no Espaço’ há não muito tempo. A contracenar com a proto-lenda dos hominídeos, uma nave dirige-se para a estação espacial que Kubrick imaginou com a forma de uma dupla roda giratória. A banda sonora que acompanha a parte inicial da saga cósmica, a famosa valsa ‘Danúbio Azul’ de Johann Strauss II, suscitou-me profunda arrelia há quatro décadas e, desta vez, a coisa não passou de uma enigmática compaixão. À pulsão inicial (renhida) sucedeu uma quase insípida indiferença. E, no entanto, a fita era a mesma e a música replicava na perfeição a melodia estreada no carnaval de 1867 em Viena. Sou eu que hoje sou um outro.

Esta experiência de degustação existencial não é inédita. A música é uma excelente anfitriã para estes saltos no escuro, mas as cidades (ou os microcosmos) que já habitámos também o são. A ‘minha Évora’, a ‘minha Tomar’, a ‘minha Amesterdão’, o ‘meu Campo de Ourique’, para dar só alguns exemplos, são territórios que não existem para mais ninguém. São-me exclusivos e eu não saberia traduzi-los para uma outra pessoa. Trata-se de atmosferas (fóricas) que têm tornado permeável o meu face a face com o planeta (a nossa vida tem a sua ‘Route 66’ que se deixa ramificar por uma ilimitada rede de capilares).

Poder-se-ia dizer que estamos sempre em queda gravitacional, tendo como referência diversos centros, a maior parte deles instáveis, imprevisíveis. Mas essa queda vive em estado de perdição nos dois sentidos que a palavra oferece (as palavras são oferendas): seja na acepção de perda, seja na acepção do fascínio. Daí que a degustação de experiências passadas, que parecem domesticadas, não passe de puro funambulismo. Na verdade, caminhamos sempre em cima de uma estreita corda entre terraços de arranha-céus como o de Babel e a vulnerabilidade à vertigem e sobretudo ao desconhecido (com a idade, passa-se a dar ao desconhecimento um deslumbre especial) é ruidosa, no sentido de um sinal que é aleatório. E confirmamos então, se não o havíamos já feito antes por mera euforia, que tudo é intimamente transitório e que a perenidade (ou a eternidade) não passa de uma bela ideia dos humanos. Apenas isso.

Nas inúmeras teses sobre o tema (que alimentam a atracção por aquilo que não somos e que desejaríamos ser), há uma teoria dos estóicos que me agrada especialmente. Para essa corrente que habitou o Mediterrâneo durante quase meio milénio, dos idos de Zenão de Chipre a Marco Aurélio ou a Séneca, há dois princípios que constituem o cosmos: um activo, o “logos” ou “fogo inteligente” (a razão que estrutura o mundo), e um outro passivo que corresponde à matéria inerte (terra e água). Os elementos activos (fogo e ar) combinam-se para produzir a “pneuma”, ou força vital, que atravessa e sustém todos os corpos do universo, através de um duplo movimento: para dentro, unificando-os, e para fora, conferindo-lhes as qualidades. A pneuma, ou respiração universal, é, pois, uma espécie de escudo invisível e perene (isto é: que preserva e que se preserva eternamente).

Revelada a paixão estóica, devo referir que, para me aperceber de diferenças (o ‘Danúbio Azul’ escolhido por Kubrick é um óptimo exemplo), é preciso que se pise terra firme. Por outro lado, são as diferenças entre tudo o que se desencadeia diante de nós que nos permitem atribuir sentido à vida e ao que nela acontece. Se tudo se propagasse igual a si próprio e fora do tempo – seria assim a eternidade – não haveria sentido, nem necessidade de terra firme para colocar o corpo de pé e nele sentir a imprevista comoção suscitada por ‘2001: Odisseia no Espaço’.

A ‘terra firme’ a que metaforicamente me refiro deverá, de alguma maneira, corresponder à “pneuma” dos estóicos. Sem esse escudo, ou sem essa âncora que nos permite focar e objectivar os diversos passos do mundo, gravitaríamos sem consciência fosse do que fosse, tal como um protozoário unicelular cuja utopia maior passaria por poder tornar-se visível a olho nu, num futuro muito, muito longínquo (cumprindo, para novíssimos patamares, a famosa profecia dos “15 minutos de fama” de Andy Warhol).

30 Mai 2019

Estreia de “2001: Odisseia no Espaço” foi há 50 anos

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] filme “2001: Odisseia no Espaço”, de Stanley Kubrick, estreou-se em Washington há 50 anos, em 2 de abril de 1968, antes de chegar a salas de Nova Iorque e Los Angeles, nos dias seguintes.

Baseado num conto de ficção científica de Arthur C. Clarke, coautor do argumento, o filme parte da descoberta de um monólito na superfície lunar, similar ao que definira a origem da humanidade, em comunicação com um terceiro, em Júpiter, o que impõe a demanda pela nave Discovery, a sua tripulação e o quase humano computador HAL9000.

Nomeado para quatro Óscares, entre os quais os de melhor argumento e melhor realizador, “2001: Odisseia no Espaço” obteve apenas o de melhores efeitos especiais, entregue a Kubrick, mas transformou-se numa das referências da história do cinema e inspirou realizadores como Steven Spielberg, George Lucas e Riddley Scott, que o consideram uma “obra-prima”.

No início, porém, as críticas não foram favoráveis. O The New York Times colocou-o entre o “hipnótico e o chato”, a Harpers Magazine acusou-o de demonstrar “uma monumental falta de imaginação”, enquanto a Variety, embora o considerasse um filme “grande e belo”, com uma “fotografia soberba”, também o classificou como pesado, confuso e demasiado longo.

A produtora MGM considerou retirar o filme das salas, perante a falta de entusiasmo da crítica, mas os exibidores, compostos na maioria por pequenos e médios empresários, ainda independentes das ‘majors’, opuseram-se, pois tinham verificado um aumento progressivo de público durante as primeiras semanas de exibição.

“2001: Odisseia no Espaço” teve estreia portuguesa em 01 de outubro de 1968.

Cerca de 20 anos antes, em 1948, Stanley Kubrick visitara Portugal, como fotorrepórter da antiga revista norte-americana Look (1937-1971), numa viagem de Lisboa à Nazaré, na procura de locais do país europeu que escapara a bombardeamentos durante a II Guerra Mundial.

As imagens, todas a preto e branco, estão agora depositadas na Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, com o acervo da revista, e testemunham locais que vão do Buçaco à Nazaré, passam pela praia do Guincho, e detêm-se em Lisboa, em sítios como o Castelo de São Jorge e o Bairro Alto.

A reportagem foi publicada em 03 de agosto de 1948, repetida na edição de 01 de dezembro de 1953, e as imagens incluídas na obra “Drama and Shadows”, do historiador Rainer Crone, sobre o realizador como fotógrafo.

Para Crone, Kubrick, que trabalhou para a Look dos 17 anos aos 21 anos (1945-1950), “já era um cineasta”, que construía “autênticos ‘storyboards'”, com estas imagens.

“2001: Odisseia no Espaço” surgiu na carreira de Kubrick depois de “Spartacus” (1960), “Lolita” (1962) e “Dr. Estranho Amor” (1964), os filmes que lhe deram as primeiras nomeações para os Globos de Ouro e os Óscares, e antecede “Laranja Mecânica” (1971), “Barry Lyndon” (1975), “Shining” (1980), “Nascido para Matar” (1987) e o derradeiro, “De Olhos Bem fechados”, estreado após a sua morte, ocorrida em março de 1999, aos 70 anos.

“Horizontes de Glória” (1957) e “Medo e Desejo” (1953), dois manifestos antiguerra, “Um Roubo no Hipódromo” (1956), incursão no ‘filme negro’, assim como “O Beijo Assassino” (1955), premiado em Locarno, foram as primeiras longas-metragens de Kubrick, que surgiram depois de documentais como “Seafarers” (1953), elogio ao movimento sindical, e “Day of the Fight”, sobre um ‘boxeur’.

Os 50 anos de “2001: Odisseia no Espaço” – e os 90 do nascimento do realizador – vão ser celebrados no próximo Festival de Cannes, com a estreia de uma cópia de 70 mm, numa sessão apresentada por Christopher Nolan, que se inspirou no filme para dirigir “Interstellar” (2014).

“É uma grande honra para Cannes ter Stanley Kubrick na seleção oficial”, disse o diretor do festival, Thierry Fremaux, na semana passada, no anúncio da sessão.

2 Abr 2018