Um dia, dia um

[dropcap style≠‘circle’]E[/dropcap] por aí adiante. Em novo crescendo. E assim segue depois a vida, a partir de uma fronteira tão nítida, passada lentamente para que todo o imenso poder da transposição se encarne, incorpore e entranhe, sentido real e irreversível. Um dia, que podia ser um daqueles dias de fim de ano, em que resolvo fervorosa, misticamente, supersticiosamente, ou enganando-me facilmente como a uma criança, focar nessa transição para o mesmo, o mesmo começar de novo, mas nunca o mesmo atrás, nessa correria sem retorno do tempo. Sem retorno de nada. Podia ser mas nunca é. Senão uma vaga euforia de luzes, em fogo de artifício, e que é isso mesmo. Ilusões de recomeçar. Nunca do zero, diga-se.

Num tabuleiro de jogo, num momento qualquer, acabar, recomeçar. Voltar a lançar os dados, voltar à casa da partida. E também aí nunca se muda estruturalmente, nada. Mas neste jogo, os dados estão lançados. Como disse Sartre. E já não há a casa da partida. Partiu.

Essa mudança, estudada e planeada aos mínimos detalhes, subliminar a ganhar espaço, talvez seja uma raridade que facilmente se deixa escapar desse cadinho de hipóteses, da vida. Uma raridade que, com sorte, acontece uma vez na vida. Como um grande amor. Alguém disse. Com muita sorte, duas. Às vezes, nenhuma ou muitas. Como a marcação de uma viagem destas que disse. Um dia, a grande mudança. Um dia, o dia um. Com sorte. Mapas. Planos de viagem e uma agenda ordenada e limpa. A casa. O relógio um pouco adiantado. A querer mergulhar em cada migalha de momento. Com uma respiração profunda que acalme a ansiedade toda, a insegurança toda, ou a pressa. É assim que deveria ser. Sem o atropelo de todos os tempos verbais, a alucinar em cada forma simples do presente do conjuntivo, ou do presente puro presente. O de indicativo. Talvez da consciência de ser. O presente, o dos verbos, do verbo, do olhar firme e do tacto para dar o tempo até ao final da respiração. Não antes. Nem depois. Aí, às vezes, também já é tarde demais. Esta precisão de relógio afinado pelas mais finas tecnologias, é tão fácil de falhar. A pontualidade da vida, talvez. Ou a pontuação certa de uma frase. Um olhar tubular sobre o momento, o fenómeno, o acontecimento.

Ou, ainda dos verbos, uma ânsia do infinitivo.

Depois há uma questão que paira um pouco turva acima e a sombrear toda a resolução. Esta preocupação de monitorizar a vida, calendarizar os grandes fenómenos que se apresentam, delimitar recordações e sistemas de ambições. Controlar algo de definitivamente intratável neste contexto, inclui quase tudo o que é sentir. Mas há um sentido possível a imbuir cada face deste prisma, uma localização confortável, um ponto de vista sobre esse patamar ou balaustrada em que debruçamos cada aspecto, cada parte, cada uma das ramificações. Querer dominar, só o dominável. De preferência e só da pele para dentro. E acrescentar encantamento formal ao possível. Fugir de roupas em série. Somente por medida e emendadas por mãos profissionais. A alta costura do sentir com um sentido de continuidade. Afinado. Como em escultura no mais puro e cristalino mármore de Carrara.

Portanto o dia primeiro de um reencontro. O maior de todos – que me desculpe algum amor de imensidão. A vida conduz. Sub-repticiamente mascarada de decisões sobre decisões. Mas algo se afasta, quase perde, perde, até que um dia, com muito tempo de intervalo entre uma véspera qualquer, e um dia, se designa e sente a aproximação do dia. Esse outro dia. Desse reencontro enorme e o maior de todos porque, disse-se, daqueles que ocorrem uma vez na vida. Com sorte. Com muita sorte: duas. Como um grande amor. Como nascer. Morrer.

De passagem, penso que ali estará o meu monstro com toda a sua pelagem e ferocidade e doçura e timidez. Pontual. Não pode faltar, nem este grande encontro seria o mesmo sem ele. Que enorme parte faltaria, como a figura da sombra presente.

Às vezes, pensar que se chegou, como uma multidão que fossemos, e por inúmeros caminhos que simultaneamente convergiram vindos das suas diferentes viagens de caminhos, a um mesmo lugar de paragem e de balanço completo. Um barco que amarou, baloiçou, encalhou. Em terra firme, no entanto. Ou atracou serenamente e sem tempo determinado num porto qualquer. A aguardar caminho. E que daí desse porto, como em cidade de rio, divergem como é da natureza múltipla dos caminhos, diferentes resoluções. E sabendo que o momento é de uma luz desigual e rara, e que os caminhos foram difíceis, e foram o que foram, quase todos eles. E que os viajantes, unos afinal, se encontram ali feridos, alguns de morte, e que ali se encontram todos porque o encontro tinha que ser entre todos. Não é necessariamente mau, é difícil. Mas é talvez um instante único. Talvez aconteça uma vez na vida, se acontecer. Não mais. Como um grande amor. Talvez, com sorte, aconteça uma vez na vida. Só porque tem que ser.

Às vezes avanço por esses corredores e é uma espécie estranha de alegria que me conduz como se de fora. E é nessa alegria que reconheço o meu monstro hirsuto, e nela que descanso a certeza pacífica de que é animal de mim para sempre. Animal feroz e perigoso que me acompanha e não posso abandonar por nenhum dos dois. E nesses dias em que o vejo seguro em mim, ali, é afinal o limite do corredor que me pára e estanca o futuro. E mesmo assim, como se para lá do espelho que tudo duplica mesmo em espaço e em luz, avanço para uma outra terceira dimensão e dela nasce a outra que sempre alimenta a respiração diária deste mesmo ar, deste mesmo mundo e desta mesma magia. Pensar o outro, naquela dimensão de si que nasce em nós e é dar-lhe uma vida. Não sei já nunca os limites da virtualidade. Pensar o outro em mim, o outro de mim. Em mim como outra. O olhar dos outros, o nosso olhar sobre o imaginado olhar dos outros, o nosso olhar ao espelho esquecendo os outros e tudo da mesma matéria fátua e de contornos difusos demais para ser fronteira.

Eu tacteio pé ante pé a vida. Que mais posso fazer nesta absurda sensação de que todo o ínfimo sopro irreprimido que se produz mesmo só no esforço de respiração necessário, perturba na pequenez devida, às vezes com escala inesperada, um algures momento de um qualquer lugar de uma qualquer criatura nesse vasto cadinho de redes interligadas em inadvertidas malhas. Qualquer marulhar de vida, por indecisa que seja, dá encontrões de indefinida tonalidade nas gotas ao lado. Em nós. Mesmo esquecendo os pesos pesados que indistintamente calcam por querer.

Depois do dia destes dias, ainda a minha alma anda por aí a silenciar luzes e estrelas várias que sente queriam vidrar a noite antes do tempo. Anda é dia e já a minha alma vagueia sem eira no entretanto indefinido do a vir. Ainda não chegou a treva que verá sentido nos astros luminosos do céu e já anseia neles serenar. Sorrisos remotos e ténues é o que há na noite, mas nela invisíveis. Eu. Talvez reconhecê-los e entre eles um será meu. Neste intervalo. Tendo os dias atingido forte, o que resta da noite e de algum sonho oriundo dos restos do resto? Alguma coisa de mim, alguém. Tudo, contudo. Os dias atingiram a linha traçada a vermelho e finalmente cumpriram. Os dias desta tempestade subterrânea de anos a germinar. De anos ou décadas. Germinou, floriu. Apanhou-me e atingiu. O fim. Agora resta o início. Nada como dantes, só eu igual. Mas sem pais. Sem chão em torno, como pequena ilha rochosa.

Medo grande, de sempre, instalou-se. Neste ano. Bastava isso, mas o mais se conjugou num verbo destruir em todos os tempos. Talvez em todos os tempos. Um hiato. Ou apenas uma mudança do tempo. O que fica, do que parte, o que parte e que parte de mim partiu, partiu para a frente da que parou. Ou está a partir. Mas ainda a parte do meio a alongar-se. Ás vezes, os silêncios desencontram-se no tempo. As pessoas, no espaço. E a vida, é. Nos dois sentidos, como um caminho. E em nós, o que nos desencontra do que somos, quando e onde? Remadores, de costas para o destino.

Por isso, um dia. Um dia destes. Pressinto-lhe a chegada, mas nem é um pressentimento. É mais uma decisão imprecisa. Longamente sentida a devorar caminho desde uma profundeza de difícil acesso. A criar uma precisão de difícil agendamento no calendário de um tempo tão difícil. A chegar. Um dia destes e quando chegar vou saber que chegou. E um dia difícil como os outros, mas principesco de pequeno almoço nocturno a esperar a madrugada. De ovos mexidos e fruta fresca e qualquer coisa de um colorido diferente para temperar a ainda noite. E pão quente. E só por isso será tudo diferente. Magia boa, ou pintura de guerra. A desenhar-se.

E o dia, esse dia será um dia um. Como os outros, mas em tudo diferente. Antes que chegue um dia menos um. Depois de um dia zero. E até ao crescendo menos infinito, da infinita inexistência do esquecimento. Que também virá, que fazer? Mas antes, antes virá o dia quase marcado na fronteira de um agora. E esse dia, dia um.

6 Nov 2017

Da sorte que o azar trás

Monumental, Lisboa, 8 Outubro

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]este outonal Verão, acolhidos pela sombra expressionista do limoeiro, a que o Manel [San Payo] chama bonsai, montámos banca na EDIT, a Feira de Edições de Lisboa, erguida pela Filipa Valadares, da STET, pela terceira vez. Por causa do ar que me enche os bolsos, aproximei-me pouco das tentações. E se foram muitas, nesta festa de biodiversidade, com os mais díspares percursos, artísticos e da curiosidade, profissionais e do gozo, a desembocarem com faustosa riqueza no objecto livro. Riqueza não significa apenas essa luxúria dos materiais e dos formatos e das técnicas, que tanto irritam os viciados em doutrinação; mas e sobretudo a exuberância das ideias, por vezes simples, capazes de criar uma experiência completa para todos os sentidos. Por poucos que sejam os exemplares. Leitores, dos que usam o corpo todo, também existem. Comprovou-se, se preciso fosse, nas centenas que, colhendo ou cheirando, percorreram o refrescante jardim estendido ali por mais de 20 casas editoras. Para sussurrar, apesar da habitual desatenção mediática, que há mais livro para além do livro. E das livrarias (desatentas).

Mymosa, Lisboa, 11 Outubro

No último ano agravou-se, apesar da distância, uma ligação que, confirmo ao vivo e à mesa, temo ter acontecido há muito. Por admirar as várias facetas do trabalho do Rui Rasquinho, as bastante poéticas, como as outras mais pop-irónicas, chamei-o a jogo até que nos encontrámos no «Cidade em Forma de Assim» (ed. APCC), exercício delirante e trabalhoso em torno da ideia de utopia. Para as crianças que se atrevam. Isto sempre à distância, que ele vive em Macau. Ia escrever habitualmente, apesar da minha embirração com advérbios, tão conhecida na casa, mas não se vive habitualmente em Macau. Disso falámos, do fascínio com que as cidades nos consomem, também das imagens em que ardemos e até de música, de flamenco, por acaso, que ambos celebramos.

Nisto, entra Camané, que deixa como lastro do abraço o novo em que «Canta Marceneiro». Não deu para lhe dizer que entrou a meio daquele sapateado. Distraído, eu ainda não tinha visitado a casa que a sua voz ergueu a partir dos caboucos do mestre. Comecei ali a subir à pureza. «Naquela casa de esquina/ Mora a Senhora do Monte,/ E a providência divina/ Mora ali, quase defronte// Por fazer bem à desgraça,/ Deu-lhe a desgraça também,/ Aquela divina graça,/ que Nossa Senhora tem.» Irei com o Rui à Senhora do Monte, em horas tardias para escapar da turistada e dizer-lhe dos segredos do lugar onde Lisboa pode ser vista como abysmo. Por aqui, a graça e a desgraça moram na mesma rua. Vejo daqui.

Bicaense, Lisboa, 11 Outubro

A alguns, a vida assenta-lhes como pele. O mundo aconchega-se-lhes à passagem em coreografia, para mim, de espanto e simplicidade. Basta estarem para ser. As minhas nódoas negras, as cicatrizes de que tanto gosto, mostram que comigo a vida faz-se de arestas. Não me queixo, aprendi a viver com isso. O meu grande companheiro continua sendo o esforço. Sentamo-nos vezes sem conta em silêncio a olhar o mar, a ouvir música e a imaginar possibilidades. Depois levanto-me e trato de me arranhar, só por ir. Se nisto penso agora, culpo os Penguin Cafe Orchestra, caídos no ouvido. Em tempos, sem eles, tudo teria sido muito pior do mau que foi. Será o esforço um pinguim, como na capa do Matter of Life? O assunto surge também tintado de ironia por vir na sequência de se ter repetido no espaço de dias esta, para mim, estranha sensação de conforto. Preparo com os manos António [de Castro Caeiro] e Luís [Gouveia Monteiro] um programa de televisão. Pode até nem se confirmar, à semelhança de inúmeros anteriores, mas o que ganhámos já de entendimento e cumplicidade e gozo e aprendizagem compensou o pinguim, digo, esforço. A busca de sentidos faz sentido. Na dureza, está-se bem. Nasceria daqui samba se soubesse?

Horta Seca, Lisboa, sexta 13

Falta a caridade de uma reflexão ao fósforo «Um Dia Não São Dias», do António [Caeiro], sobre as sextas, 13, dia igual a nenhum outro. Qual bruxas, qual demónio! Por uma vez, não sacrificamos ao real e deixamos que o absurdo nos governe. Sem medo do medo. Atentos aos sinais, a querer por força crer. E rir, sendo outra a vontade. Gosto muito do 13, mais ainda se moldado em dia à sexta-feira. Esta concreta desfez-se pujante e mãe de múltiplas decisões, de planeamento e adiamento, de resolução e enterro de atrasos. As casas custam mais a arrumar aos que não sabem cantar. Quis o destino que ao crepúsculo me chegasse valiosa caixa de ferramentas, donde esta vontade de soltar a voz: e se a minha âncora fosse a lua. Podia ser verso de fado, házar?

Centros das Artes e Vila Flor, Guimarães, 14 Outubro

O mano Tiago [Manuel] saltou da criação e abalançou-se à organização: novo episódio na história hesitante da coisa desenhada, a Bienal de Ilustração de Guimarães. Cravou-me para membro do júri, e foi (quase) um prazer, basta dizê-lo para se arrumar na gaveta das éticas declamativas. Interessa sublinhar que a BIG surge distinta do que se vai fazendo neste país de macacos de imitação – primeiro aplauso. Há prémios a engordar as distinções, para os que vêm do passado (Carreira), como para os que se dizem do futuro (Revelação). Serão todos de hoje, tal a massa de onde emerge o Prémio Nacional, também assente em maravedis – segundo aplauso. Nada mau, se acrescentarmos a isto as costumeiras exposições, incluída a que está a cargo do fazedor do cartaz (nesta página), desta o enigmático Daniel [Lima] – mais palmas. Atenção às escolas secundárias, palestras e catálogo desenham o resto da teia que procura garantir raízes, em contra-ciclo aos mercados. De resto, puro prazer. O de ver a memória em acção, nos originais e palavras do iluminador de quotidianos (notas, selos, publicidade, livros e o mais), Luís Filipe de Abreu, resgatado do esquecimento muito pelo esforço do Jorge [Silva]; no volume da inestimável colecção D (conhecem?), da INCM; na exposição na Festa da Ilustração, em Setúbal, em 2016; e que agora nesta, acompanhada em mais uma bela lição dita, na manhã límpida de sábado. Subo ao largo do Toural para saborear a infância da Isabel em jesuíta que ilustra outras geometrias, antes de me perder em territórios conhecidos e noutros nem tanto. Estou sempre a perder rostos (Viva, Sebastião [Peixoto]! Olá, Bárbara [Rocha]!). Mais prazer, portanto, na alegria infantil das descobertas, mesmo depois de tantos salões, festivais, exposições. O Prémio Revelação, entregue à Carolina Celas, foi isso mesmo. Mergulho naquela frescura, nos materiais e perspectivas, tal qual a da sujidade preto e branco com que o João [Fazenda] pintou os contos da Granta. A coisa desenhada está viva! Irrequietude, com sabor a pastelaria fina?

Horta Seca, Lisboa, 16 Outubro

Na exacta madrugada destas linhas, metade do país ainda arde, a outra volta a chorar cinzas. Nesta altura não, mas estaremos em outra qualquer dispostos a enfrentar a realidade de que somos todos culpados? Que fomos nós quem escolheu saborear este coquetel de capitalismo selvagem e abandono das raízes, com pitada de corrupção (nos actores mais insuspeitos e não apenas nos políticos)?

18 Out 2017