Andreia Sofia Silva EventosLiteratura | Sara F. Costa lança o seu primeiro livro de ficção em Fevereiro Conhecida pela sua poesia e proximidade com a língua chinesa, Sara F. Costa decidiu aventurar-se num novo género literário e o resultado está aí: “Cidade Cinza” é o seu primeiro romance, apresentado como “experimental”, e será lançado na edição deste ano do Festival Correntes d’Escritas que acontece na Póvoa do Varzim Maddy vive na cidade de Cinza, da qual pouco ou nada sabe. Para ela, este território é uma novidade. Segue-se uma busca pela urbanidade do lugar, os seus mistérios e complexidades, “num trilho de descobertas e reencontros”, tratando-se também de “um desafio aos limites na busca de laços familiares perdidos no tempo”. “Cidade Cinza”, novo livro da autora portuguesa Sara F. Costa, prestes a ser lançado em Portugal, vagueia pelas categorias de fantasia, fantástico ou ficção científica, sendo a estreia da escritora, habitualmente poetisa e tradutora, no género literário da ficção. Com a chancela da editora Labirinto, “Cidade Cinza” será lançado em Fevereiro e também na próxima edição do festival literário Correntes d’Escritas, que decorre na cidade portuguesa Póvoa do Varzim. A história interliga-se com as próprias vivências da autora, que residiu em Pequim, onde estudou mandarim. Segundo um comunicado, este é um “romance experimental”, onde os elementos da história não são colocados ao acaso e todos “são, de alguma forma, autobiográficos, embora dificilmente o leitor conseguisse decifrar tais elementos porque a história parece passar-se num sítio sem tempo nem espaço”. Descreve-se ainda que o estilo narrativo é inspirado “na própria prosa contemporânea chinesa e em escritoras um tanto desconhecidas para a maior parte do público português como Can Xue ou Shen Dacheng”. Mas há espaço também para as influências de nomes como Jorge Luís Borges, Samuel Beckett ou Italo Calvino. No primeiro capítulo de “Cidade Cinza”, descreve-se um condomínio como “uma espécie de criança impossível, atravessada entre os dentes”, onde “nenhum rosto humano [está] ao abrigo da dialéctica”. Foi para este condomínio que se mudaram os pais de Maddy, a personagem principal que tenta descobrir os meandros desta cidade de cor cinza. Uma certa “essência” O enredo de “Cidade Cinza” apresenta ainda uma “intrínseca interconexão entre o destino dos seus habitantes e a própria essência da cidade”, sendo que a narrativa de Sara F. Costa se caracteriza “por uma dissolução das fronteiras entre o real e o fantástico, onde a atmosfera é impregnada por um aroma que mescla elementos urbanos com vislumbres de uma fauna surreal”. É nesta “metrópole” que se apresenta o percurso de Madddy, em que a cidade se apresenta como “fusão de tradições ancestrais e avanços tecnológicos”, manifestando-se como “um labirinto de experiências alucinatórias, confundindo e cativando os seus moradores com a incerteza sobre as suas identidades”. Assim, “Maddy empreende uma jornada para desvendar os mistérios da sua origem e reconectar-se com uma família distante, ultrapassando os limites desta cidade enigmática, enfrentando desafios inesperados”. Na cidade, a melancolia “assume a forma de um cão depressivo e os ambientes de trabalho convertem-se em espaços que remetem a jardins tropicais”, pelo que Maddy “atravessa um universo repleto de simbolismos”. Desta forma, “cada elemento [do livro] apresenta um convite à reflexão, espelhando a complexidade da condição humana”. Maddy procura sempre, “através de uma jornada repleta de realidade e ficção, atenuar a sua ansiedade existencial, procurando uma compreensão mais profunda no meio do caos que a circunda”. Esta cidade cinza é reflexo da “contínua procura do ser humano por entendimento e serenidade num mundo fracturado e misterioso”. Percurso premiado Nascida em 1987, Sara F. Costa já marcou presença em Macau por diversas vezes, tendo sido uma das convidadas da última edição do festival literário Rota das Letras, dada a sua proximidade à literatura e cultura chinesas. A obra da autora tem sido galardoada com diversos prémios literários. O seu último livro, “A Transfiguração da Fome”, obteve o Prémio Literário Internacional Glória de Sant’Anna para melhor obra de poesia publicada em países de língua portuguesa em 2018. Como poeta europeia emergente, Sara F. Costa participou no Festival Internacional de Poesia e Literatura de Istambul 2017 e, no ano seguinte, fez parte da organização do Festival Literário de Macau e do Festival Internacional de Literatura entre a China e a União Europeia em Shanghai e Suzhou, China. Em 2019, foi autora convidada da segunda edição do “Chair Poetry Evenings” em Calcutá, India. Para além da poesia, escreve também ficção e traduz literatura chinesa para português e inglês. Em 2020, Sara F. Costa lançou ainda uma antologia de poesia contemporânea chinesa por si seleccionada e traduzida, intitulada “Poética Não Oficial“ e também editada pela Labirinto. Publicou várias crónicas no HM e foi membro da direcção da associação APWT – Asian-Pacific Writers and Translators). Obteve em 2021 uma bolsa de criação literária do Governo português. Dessa bolsa surgiu o livro “Ser-Rio, Deus-Corpo”, traduzido também para castelhano e inglês.
Andreia Sofia Silva EventosSara F. Costa, poetisa, tradutora e participante do Rota das Letras: “Macau é um rodopio multicultural” Sara F. Costa autora e tradutora, protagoniza as primeiras sessões de domingo, do Rota das Letras, onde irá conduzir o workshop “Como Traduzir um Poema Chinês”, apresentando uma hora depois, às 12h, o seu mais recente livro de poesia, “Ser-Rio-Deus-Corpo”. Ao HM, a autora fala do festival que conhece bem e que considera fundamental Que importância atribui ao regresso sem limitações do festival literário Rota das Letras? A literatura deve apresentar-se sempre a par das alterações de dinâmica nas sociedades. Macau é um lugar de convergências, um rodopio multicultural, transcultural que se desenrola ao longo de tempos não lineares. Preservar e lembrar toda esta energia que Macau possui, representar a sua miscelânea identitária através de poemas ou ficção, isso é prolongar a existência deste território e da sua memória, assim como assegurar que as singularidades que possui estão vivas e se continuam a reproduzir e a desenvolver. A pandemia é mais um acontecimento para o turbilhão de sentidos que é Macau. A sua tradição literária tem de continuar a inspirar autores, assim como o resto da sociedade. A realização do festival literário de Macau é agora mais importante do que nunca. Contra ventos e tempestades, cá estamos. Quais são as suas expectativas em relação às sessões em que vai participar? Vou moderar algumas conversas entre autores chineses e portugueses, trago também um workshop de tradução de poesia, e depois sigo com leitura de poemas e apresentação de poetas. Todas estas actividades se relacionam com a língua e com a poesia, assim como com o encontro de línguas chinês-português. O workshop será mais direccionado para portugueses que tenham curiosidade sobre o funcionamento da língua chinesa e sobre a história e características da poesia chinesa. Iremos ter uma parte teórica e uma parte prática em que, perante alguns versos, a sua fonetização e o significado individual de cada caractere, os participantes vão ser desafiados a transpor, nem que seja um verso, do chinês para o português. Outra coisa interessante que trago é a projecção do Fuse. Em que consiste este projecto? Inicialmente chamado “Urban fragments”, é uma colectânea áudio visual de poesia que dirigi quando estava a viver em Pequim e a colaborar com a Spittoon Arts Collective. Foi um projecto que teve três fases, primeiro tivemos a escrita de poemas por parte da comunidade internacional de poetas a residir em Pequim, depois tivemos uma composição visual que tentou imiscuir-se com a essência dos poemas e por último, tivemos o artista contemporâneo Julian GX Wang a compor a paisagem sonora das leituras que cada um dos poetas fez dos poemas que escreveu sobre Pequim. É uma experiência visceral deixar-se embrulhar na tapeçaria de sinestesias e de diálogos não só entre artes como entre culturas. Vai ainda apresentar um seminário na Universidade de Macau, intitulado “Camilo Pessanha: Simbolismo, Orientalismo, tradução poética e diálogos transculturais”. Que contributo leva para mais uma análise da obra do poeta? Estou concentrada nas traduções que Pessanha fez da compilação de poemas de long-Fong-Kong. Continua a ser fundamental falar de Camilo Pessanha, da mesma forma que continua a ser fundamental realizar o festival Rota das Letras, com mais ou menos fundos. Camilo Pessanha é um representante do legado cultural e intelectual que pertence à intersecção do Oriente e Ocidente que Macau materializa, especificamente no que se refere à relação entre o português e o chinês. É importante lembrar que os estudos chineses existem em Portugal de forma autónoma aos recursos que usamos e que estão geralmente em inglês, francês ou italiano. Falta ainda falar do encontro entre o Oriente e o Simbolismo, por exemplo ou, pelo menos, daquilo que alguém como Pessanha possa ter trazido para uma tradição literária tipicamente europeia. Acho que o diálogo não está esgotado e ainda há muito a decifrar sobre as relações linguísticas presentes em pedaços de história literária tão importantes como as Elegias Chinesas.
Hoje Macau EventosPoesia | Sara F. Costa lança “Ser-Rio, Deus-Corpo” em Portugal e na Índia O sexto livro de poesia de Sara F. Costa intitula-se “Ser-Rio, Deus-Corpo” e será lançado no próximo mês de Novembro em Portugal, na cidade do Porto, e depois na Índia, na sua versão inglesa. A obra é resultado de uma bolsa de criação literária “Ser-Rio, Deus-Corpo” é o nome do novo livro de poesia de Sara F. Costa, ex-colaboradora do HM que tem vindo a crescer no mundo da poesia. A autora, que viveu em Pequim e é fluente em mandarim, lança no próximo mês, no Porto, aquele que é o seu sexto livro de poesia. A obra ganha uma versão inglesa que será lançada mais tarde na cidade de Bengaluru, na Índia. No ano passado, Sara F. Costa ganhou uma bolsa de criação literária financiada pela Direcção Geral do Livro, Arquivos e Bibliotecas do Ministério da Cultura Portuguesa, o que deu origem a “Ser-Rio, Deus-Corpo”, livro editado pela editora Labirinto. Nesta obra, a autora incorpora vários registos poéticos de “tradição simbolista, surrealista, imagista e objectivista” interpretando a psique e a índole humana “a partir do corpóreo”. Na carta de candidatura à bolsa de criação literária, Sara F. Costa descreveu este projecto de poesia como sendo “uma ode à fertilidade” ou “um trabalho sobre a criação intrauterina do ponto de vista estritamente matriarcal”, numa clara referência à maternidade. “Ser-Rio, Deus-Corpo” retrata “a experiência intimista de uma mãe durante o período de gestação do feto, incorporando, por vezes, elementos da tradição modernista como a objectividade, intelectualidade, abstração e distanciamento necessários para transformar a experiência em arte”. Contudo, “nunca se abandona o registo privado, quase doméstico, em que a voz poética procura transcender a casa-corpo”. A autora, num comunicado de imprensa, dá conta de que os temas que se relacionam com a maternidade, no campo da literatura ocidental, começaram a surgir nos anos 70 do século XX, “quando surge a segunda onda do movimento feminista”. Desta forma, “pretendia-se combater as pré-noções que sentenciavam certos tópicos como inapropriados enquanto motivos literários”. Mais internacional Sara F. Costa trabalha, com este livro, a ideia de “mãe-poeta” que “não é uma personagem muito presente”, uma vez que a mãe “é mais representada por autores masculinos do que femininos”. “O objectivo deste trabalho é trazer a representação da mãe que não precisa de ser representada porque o é. A poeta é universal, mas é mulher”, diz a autora no mesmo comunicado. De frisar que a ilustração da capa é da autoria da artista Constança Araújo Amador. Em relação ao lançamento da obra na Índia, este surge do convite feito a Sara F. Costa para participar no Festival Internacional de Literatura organizado Asia Pacific Writers & Translators, que tem como tema “Meridian – Writing Outside the Frame” e que decorre entre os dias 28 a 30 de Novembro. O livro é editado pela “Red River”, uma editora independente de Nova Deli, sendo apresentado no dia 28 de Novembro em Bengalore, no Festival Internacional de Literatura Asia Pacific Writers & Translators. Além das edições em português e inglês, “Ser-Rio, Deus-Corpo” será também editado em Espanha. Os textos de Sara F. Costa têm vindo a ser publicados e traduzidos um pouco por todo o mundo, tendo a autora sido convidada para participar em festivais literários em países como Espanha, Polónia, Turquia, China e Índia. O seu livro “A Transfiguração da Fome” obteve o Prémio Literário Internacional Glória de Sant’Anna para melhor obra de poesia publicada em países de língua portuguesa em 2018. Sara F. Costa publicou ainda uma antologia de poesia chinesa contemporânea por si organizada e traduzida, fruto do contacto com os meandros literários e artísticos de Pequim, onde viveu até 2020. Nesse ano, quando começa a pandemia da covid-19, a autora regressou a Portugal, quando estava grávida de oito meses.
Andreia Sofia Silva EntrevistaSara F. Costa, tradutora de “Poética Não Oficial – Poesia Chinesa Contemporânea”: “Há um trauma colectivo nestes poemas” Depois de “Transfiguração da Fome”, Sara F. Costa decidiu embrenhar-se no mundo da tradução de poemas chineses escritos após um dos períodos mais conturbados da história da China. “Poética Não Oficial – Poesia Chinesa Contemporânea” traz uma selecção e tradução para português de 33 poemas escritos após a Revolução Cultural [dropcap]P[/dropcap]orquê a escolha de autores do período pós-Revolução Cultural? Apesar de eu me ter guiado por um certo enquadramento tanto a nível temporal como conceptual, realço que se trata de uma selecção que tem muito de pessoal. Vão encontrar nomes sonantes como Bei Dao, Hai Zi, Gu Cheng, mas vão encontrar nomes que só se encontram deambulando de leitura em leitura pela cena literária dos hutongs em Pequim ou no bar da poeta Zhai Yongming em Chengdu, sem terem necessariamente publicado fora de revistas literárias independentes. O período da Revolução Cultural e o Pós-Revolução Cultural fascina-me particularmente quando falamos da poesia moderna porque é quando surgem movimentos como os “poetas obscuros” (朦胧诗⼈). É quando surgem as revistas não oficiais e os salões literários (沙⻰) que, no fundo, nunca deixaram de existir nos meandros citadinos da China. Acho que é, no seu conjunto, um trabalho que pode fornecer pistas para quem quiser aprofundar o seu conhecimento sobre poesia moderna chinesa. Que China que existe nestes poemas? Diria que há, sem dúvida, sintomas de um trauma colectivo nestes poemas. Há uma certa China desmistificada, um desalento face à privação de uma primordial mudança. De salientar que nem todos os poetas deste livro têm uma postura abertamente política. Alguns apenas quebram com determinadas barreiras estéticas e optam pelo recurso a uma linguagem mais vernacular. Na sequência dessas opções estéticas, acabamos por ter acesso a uma China moderna, simultaneamente intercultural e aculturada. Uma visão crítica face à sociedade de consumo e uma pertinente revisão do conceito de “sofisticação” que a sociedade chinesa adoptou (sobretudo em relação aos produtos estrangeiros). Qual o impacto que a Revolução Cultural terá tido nestes autores? É possível estabelecer alguma comparação com a poesia que se fazia antes desse período da história chinesa? Após o fim da era imperial e o surgimento da República em 1911, Hu Shi e Cen Duxiu, proclamam a utilização de uma linguagem vernacular em detrimento do chinês clássico na produção literária, naquela que ficou conhecida como a Revolução Literária. É também nesta altura que surge o verso livre. Depois da institucionalização da poesia, a poética não oficial (⾮官⽅诗坛) opõe-se à poesia oficial ortodoxa e institucional e quebra com imposições estéticas e de conteúdo, libertando-se dos espartilhos ideológicos que a poesia oficial impunha. É por isso uma poesia com maior liberdade. Contudo, esta poesia não rompe completamente com a longa linhagem histórica que continua a influenciar muitos valores estilísticos e mesmo de conteúdo na produção poética actual. Há caractectísticas que já se encontravam até antes da época de ouro da poesia chinesa, (dinastias song e tang) como a importância do ritmo, a imagética sofisticada, muitos conceitos taoistas (nas metáforas sobre silêncio, vazio, contemplação estóica, a não-acção enquanto acção, etc), a relação alegórica entre o natural e o humano e as reflexões sobre destino e poder. É interessante verificar que a relação entre política e poesia na China é também uma conexão ancestral. Desde Qu Yuan passando pelo poeta imperador Li Yu e os inúmeros estadistas que eram poetas durante a Dinastia Tang como Yuan Zhen, quando o acesso ao poder era feito através dos conhecidos exames confucianos que avaliavam, entre outras coisas, a capacidade de escrever poesia. O que é que a surpreendeu mais nestes poemas, no que diz respeito à mensagem que transmitem, à forma da escrita? Rompem com o que se vinha fazendo desde então na poesia chinesa? Surpreendeu-me essa lealdade à tradição ancestral que referi na questão anterior, mas ainda me surpreendeu mais a forma como o melhor dessa tradição se combina com uma certa dose de ousadia. Há uma harmonia entre classe, subtileza e a função disruptiva do poema moderno. É uma poesia de pormenores, com muitos traços experimentais. É um bom exemplo da criatividade que se encontra nos artistas chineses contemporâneos em geral. Um facto curioso: apercebi-me que vários dos autores dos poemas que traduzi se suicidaram. É uma coincidência interessante. No caso de Gu Cheng, enforcou-se depois de ter assassinado a esposa. Apesar de saber perfeitamente disso, fico na mesma perplexa perante esta confirmação sobre a natureza da poesia: é um assunto sério, intenso e muitas vezes violento. Que expectativas coloca em relação à resposta por parte do público português a este livro? Quem já se interessa por poesia, terá certamente curiosidade em dar uma vista de olhos naquilo que se anda a fazer naquela parte do mundo nesta matéria. Digo “anda a fazer” porque este trabalho é sobre contemporaneidade. Há outras formas de se aceder aos clássicos – dinastias song e tang – mesmo em português, com boas traduções. Mas há muito pouco em português sobre poesia chinesa actual. Este livro pretende ser precisamente um ponto de partida, facultando pistas e deixando referências. Grande parte dos poemas seleccionados neste trabalho não se encontram traduzidos noutras línguas mais amplamente estudadas por cá como o inglês ou o francês e a única forma de aceder a esses poemas é indo directamente à fonte em mandarim. Nesse sentido, encontro assim duas vantagens para quem quer complementar e aprofundar o seu conhecimento da literatura chinesa: uma visão – na organização e selecção que fiz daquilo que considero representar o avant-garde e a poesia “não oficial” e, por outro, o acesso exclusivo a um trabalho que incorpora alguns incontornáveis poemas traduzidos para outras línguas mas que é composto, maioritariamente, por poemas que até agora só estariam acessíveis a quem lesse mandarim. Quando se deu o seu primeiro contacto com esta literatura “underground” e porque lhe interessou esta cena literária? Quando fui para Pequim no início de 2018, o editor João Artur Pinto, da Labirinto, já me tinha lançado o repto para traduzir poesia chinesa para português, mas eu estava ainda a tentar encontrar exactamente o que gostaria de traduzir. Depois de conhecer a organização com a qual vim a trabalhar, o colectivo artístico Spittoon, foi quando tive um contacto próximo com a vida dos artistas boémios dos hutongs de Pequim e quando veio o ímpeto de me desafiar mim própria para este projecto. Depois de publicar “A Transfiguração da Fome”, como foi a transição para um trabalho de tradução deste nível? Um escritor tem necessariamente que ler. Ler o máximo que puder. Muitas vezes, ler coisas que são muito diferentes daquilo que escreve. Traduzir é uma forma de leitura contemplativa. É uma forma de interpretar um poema e dar-lhe uma nova casa. Uma casa linguística. Sem dúvida que traduzir faz parte de um processo criativo que complementa a escrita. Este foi um projecto muito pessoal e fi-lo sobretudo para aprender com ele. Desde ler bastante, seleccionar, aprender a traduzir, aprofundar conhecimento linguístico, etc. Foi um acto de imensa aprendizagem e de auto-formação. Esta obra estará disponível em Macau? Sim! O editor já está a tratar de fazer com que alguns exemplares se encontrem à venda fisicamente em Macau. O livro pode sempre ser encomendado à editora que enviará para qualquer destino.
Sofia Margarida Mota EventosEntrevista | Sara F. Costa: “Os poemas são outras peles” “A Transfiguração da fome” é o quinto livro de poesia de Sara F. Costa. A apresentação da obra escrita entre Portugal e o oriente está marcada para o próximo dia 28 e vai ser feita por António Graça de Abreu e Fernando Sales Lopes [dropcap]P[/dropcap]orquê “A Transfiguração da Fome”? Este livro é publicado na sequência de uma menção honrosa no Prémio de Poesia Soledade Summavielle atribuído pelo Núcleo de Artes e Letras de Fafe (NALF). A palavra “transfiguração” está comumente associada a um episódio bíblico mencionado no primeiro testamento, e que ocorre numa montanha conhecida como Monte da Transfiguração, onde Jesus aparece em forma de brilho. Na doutrina cristã, o facto de a transfiguração se dar no alto de uma montanha representa o ponto onde a natureza humana se encontra com Deus: o encontro do temporal com o eterno, com Jesus a fazer o papel de ponte entre o céu e a terra. Na mitologia chinesa taoista, é o homem que faz a ponte entre a terra e o céu, deslocando a divindade para o humano. Seja como for, o livro não é propriamente uma reflexão de pendor religioso, apenas se aproveita deste sentido para logo acrescentar uma viragem com a introdução da “Fome”. A “fome” pode ser a fome dos mais fracos, pode ser a fome mundana da ambição, pode ser o desejo. Transfigurar a fome em poesia é apenas uma tentativa de atribuir um sentido divino a tantos sentimentos mundanos que tenho. Sempre achei que tanto a poesia como o meu fascínio pelo Extremo Oriente se relacionavam. Existe algum teor religioso ao longo da obra? Não, eu diria que o meu instinto, ao utilizar estes termos, foi mais irónico. Ao longo do livro os poemas abordam certos valores tidos como religiosos como o nascimento, a verdade, a fé e a esperança, acho que se quisermos interpretar algo timidamente religioso aqui, é possível, mas é possível interpretar exactamente o oposto, o mundano e existencialista, o estado de coisas em que se espera para sempre por uma ausência infinita. Foi escrito entre Lisboa e Pequim. Como foi o processo de escrita deste livro? Há uma diferença de tonalidade entre a primeira parte e a segunda parte. Recebi umas observações do António Graça Abreu que me disse que gostou sem dúvida mais da segunda parte porque, escrita num momento em que já estou a viver em Pequim, sente-se que os poemas respiram e falam sobre este espaço geográfico. Como historiador e especialista em estudos chineses, compreendo o interesse dele por esta faceta. A primeira parte foi escrita em Lisboa ao longo de vários meses. Não tenho um processo muito específico. Sento-me e escrevo. Escrevo no computador ou escrevo à mão se não estiver com o computador. Há alguns momentos no livro que são muito intimistas e outros que se focam mais no tema da transfiguração. Acho sempre que o desafio é falar tão especificamente de algo que é meu de tal modo que se torna identificável porque, por muito que possamos passar por coisas particulares, há sempre forma de fazer com que os outros compreendam e se crie uma empatia entre o que está escrito e quem lê. Como é que sente a influência asiática no que escreve? A segunda metade do livro foi escrito entre Macau, Coreia do Sul e Pequim. É aí que se sente mais a influencia asiática nos meus poemas. Muitas vezes são apenas menções a lugares, outros poemas são uma reflexão sobre a minha aculturação. Sempre achei que tanto a poesia como o meu fascínio pelo Extremo Oriente se relacionavam, na medida em que o que me faz criar é realmente encarnar diferentes papéis, deslocar-me daquilo que eu sou para aquilo que eu posso vir a ser depois de passar por determinada experiência. Os poemas são outras peles e experienciar outras culturas é também ter a capacidade de ocuparmos peles diferentes das nossas em todos os níveis, no sentido social, no sentido cultural, no sentido linguístico, etc. “A Transfiguração da Fome” tem uma nota introdutória de José Luís Peixoto. Porquê este autor? O que ele escreve nesta nota é muito interessante porque ele fala de uma relação poética entre nós. Gosto sempre de trazer para os meus livros as minhas referências, por isso abro com citações de Yukio Mishima, ou Herberto Helder, ou Al Berto, dependendo do livro. Quando era adolescente cresci muito poeticamente com o livro “A Criança em Ruínas”. Sei que José Luís Peixoto é mais conhecido pela prosa, mas há nele um génio poético inegável e que influenciou muito a minha expressão. Ao falar de uma ligação de quem lê para quem escreve ou de quem escreve para quem escreve, acho que estou a chegar a um nível de meta-narrativa muito pertinente. A maioria das pessoas que leem o que eu escrevo são também muitas vezes escritores. Estas referências são talvez uma forma de celebrar esta espécie de comunidade poética que se gera à volta de livros de poesia. Por outro lado, o José Luís Peixoto tem participado em vários eventos na Ásia. Para a apresentação do meu livro em Lisboa também fiz questão de convidar um poeta que vive em Macau, Fernando Sales Lopes e o poeta e historiador António Graça Abreu, um dos maiores especialistas na cultura e literatura chinesa. Muita gente escreve poesia mas acho que se torna interessante quando temos mais em comum para além da dimensão literária, que é bastante vaga. Porquê a poesia? É daquelas questões difíceis de explicar de uma maneira completamente legível. Escrevo desde criança. Não quero entrar em misticismos e dizer que é algo que “nasceu” comigo, mas em simultâneo é um pouco assim que me sinto. Não é uma explicação muito racional. Tenho prazer em escrever e sinto muitas vezes necessidade de o fazer, uma forma de reinterpretar a realidade e dizer: “é isto que eu acho que se está a passar”.