Crer ou não crer

O grande Samuel Beckett sempre fez questão de anunciar que teria nascido numa Sexta-Feira Santa, dia 13 de Abril de 1906. Como os registos oficiais do seu nascimento aparecem com a data de 16 de Junho, durante muito tempo houve quem pensasse que o dramaturgo, fértil criador de mitos sobre si próprio, teria escolhido a data que mais lhe convinha, sobretudo por coincidir com uma Sexta Feira Santa. Mas não: Beckett terá mesmo nascido na data que sempre proclamou e se a coincidência não foi criada pelo escritor ele aproveitou-a como uma espécie de sinal para a visão que atravessa toda a sua obra: o nascimento associado a sofrimento e a vida um longo caminho doloroso, para acabar numa morte absurda, o estado puro do silêncio.

Beckett, embora não sendo crente (pelo menos nunca o assumiu), gostava muito da história da Paixão de Cristo, em que via inúmeras semelhanças com a nossa sofrida passagem terrena. Mas suspeito que por estes dias teria dificuldade em se fazer entender. Pior: seria votado ao ostracismo ou ao olhar de soslaio de quem acha que crer num Mistério está nos antípodas da inteligência ou pertencente ao reino da superstição.

Nada de novo, dirá o leitor. O leitor diz bem: o fenómeno não é de agora e o advento do Iluminismo e do desmedido endeusamento da Razão humana ajudou – por vezes com trágicas consequências – a relegar aqueles que têm Fé para um mundo de obscurantismo terrível de onde devem ser retirados ou, no pior dos casos, eliminados.

Mas estamos em 2021, amigos, e a coisa persiste. Eu sei que ao professar-me cristão e católico – coisa que na verdade só a mim me importa – vou suscitar caricaturas e análises históricas sobre a instituição da Igreja e dos seus terríveis erros. Pouco interessa a liberdade do individuo escolher ou sequer a possibilidade de que essa escolha seja sincera e sustentada até – surpresa! – pela razão. Milénios de teologia são descartados como uma brisa em favor do imediato. E tudo se torna estranho quando o imediato prefere alinhar chakras, fazer trânsitos astrológicos ou analisar “auras”. Como escreveu Marcelo Franco, num texto notável numa rede social – uma raridade , ainda por cima -, «Crer tornou-se coisa de supostos idiotas. O cidadão tira o sapato para entrar numa mesquita, mas acha que jejuar seja coisa de retardado. Segura na mão de amigos e diz, numa roda espírita, “Tem alguém aí?”, mas ainda assim se ofende quando ouve “Creio em Deus Pai”. Lê sobre Buda sem pensar em Santo Agostinho. Veste uma cuequinha branca no Réveillon e, absoluto, do alto de suas certezas, acredita que dois mil anos de teologia existam somente para o diminuir e para tolher sua liberdade, logo ele, tão próprio, tão assertivo.»

Percebam, amigos. Não se trata apenas da defesa da minha confissão – trata-se de defender a própria ideia de Fé, venha em que fórmula vier. Sim, até os que acham que a Mãe Terra irá resolver a pandemia. O Mistério tem de ser preservado para se entender as evidências. Somos demasiado imperfeitos e essa noção – essa teologia da falibilidade – deve ser aceite para que nos entendamos uns aos outros. Ou se calhar como Beckett poderia dizer, para que nos possamos salvar uns dos outros.

8 Abr 2021

Absurdez

[dropcap]P[/dropcap]or aquela é que ninguém estava espera, a de o mariola sacar da naifa e dar a guardá-la no desprevenindo entrecosto de Samuel, o próprio do Beckett. Havia-lhe saído o sujeito ao caminho certa noite que o escritor vinha por ali com uns amigos; primeiro rogou por umas moedas e depois ofereceu fêmea por uns trocos. Como do nada até ao fim do mundo é questão de se estar para aí virado, o gajo despeitou-se fosse com o descaso fosse com os vagares embriagados de Beckett, e já de caldo entornado usou então da navalha sem aviso. Não tivesse isto sucedido em Janeiro, não envergasse a vítima um sobretudo de boa e pesada fazenda e a lâmina em vez de apenas romper a pleura ter-se-ia afundado livremente até ao coração.

Convalesceu o irlandês no Hospital de Broussais, ao 14º arrondissement, enquanto a ocorrência seguiu os seus trâmites judiciais. No dia do julgamento, com a impassibilidade que a magistratura adora pôr no seu expediente, o polícia de plantão indicou a Beckett que aguardasse à entrada na sala de audiências num banco corrido de madeira onde já o faquista refastelava as nalgas. Não havendo espírito literário sem interrogação ou então por mera curiosidade humana, Beckett indagou-o acerca dos motivos do seu acto. “Je ne sais pas”, retorquiu, encolhendo os ombros com a nonchalance que só os franceses conseguem exibir sem hipocrisia.

Que o tivesse perpetrado assim sem mais nem menos já seria intrigante, mas que um proxeneta se chamasse Prudent, nome de pia baptismal e não alcunha e em cúmulo aposto a um capaz de atalhar à chinada tão vagas razões, eis o que dizem ter sido o catalisador da vocação de Beckett pelo absurdo.

Esta rixa de viela deu-se em 1938. Adensa e atesta a extrema impressão que o lance produziu em Beckett o facto de na sua posterior biografia se contarem outros factos e feitos não menos críticos e decerto bem mais empolgantes, como a sua participação na Resistência Francesa contra o invasor nazi, tendo estado um par de vezes à beira de ser capturado pela Gestapo.

A ideia de absurdo não assoma quando ao nosso entendimento escapa o sentido da natureza ou daquilo a que abreviadamente se chama de realidade. Isso seria apenas da ordem do desconhecimento ou da ignorância. O absurdo acontece quando o incompreensível ofende ou contradiz a regularidade a que as coisas nos haviam habituado, por exemplo a pedestre relação causa-efeito. Contudo, o absurdo não é uma partida pregada pela natureza ou pela realidade, porque ambas não prestam contas a ninguém. Mas mais do que um fenómeno confinado à subjectividade, o absurdo é o transplante do paradoxo para o campo existencial. O seja, o absurdo é um elemento da condição humana.

Como tudo nos pede uma explicação e como, se a isso estivermos deveras decididos, acabaremos sempre por encontra-la, o absurdo depende por inteiro do estado do nosso conhecimento e, sobretudo, no modo como experienciamos esse conhecimento. Ao mais erudito dos sábios medievais seria impossível explicar o que é a electricidade e haverá boas razões para crer que Descartes não ficaria muito convencido se lhe expusessem a física quântica.

“Pensa, porco!” Grita Pozzo. Ao que Lucky, incapaz de pensar se não lhe puserem um chapéu, jorra um magma de palavras criando a ilusão de nele se arrastarem pedregulhos com vaga forma de filosofia, resíduos de conceitos, estilhaços de razão. É pois isto a metafísica – um arrazoado sem conexão fora de si mesmo, pendurado em formas simbólicas sobre nada e acerca de tudo. Um funâmbulo às cegas a discorrer desequilibradamente sobre o que não vê.

Disto pode-se inferir que o conceito de absurdo se nega a si mesmo, ou seja, é ele próprio absurdo. Seria aliás absurdo concluir esta digressão doutra maneira.

10 Mai 2019

País sem vestígios

Rua Cor-de-Rosa, Lisboa, 8 de Abril

[dropcap]J[/dropcap]á vos tinha dito que as segundas-feiras se tornaram abomináveis? Perseguido pelos mastins das delongas, a semana começa com setas de todas as direcções possíveis mais as que se inventam no momento. E tudo concorre com este alinhavar dos dias, pingue-pingando para a última das horas. O primeiro acaba anunciando a semana que se desfaz, na mão em corrida de obstáculos. Prestes a chegar ao «Povo», para outra sessão de leituras em torno da colecção «Mão Dita», que acabou revelando-se saborosa e intensa, o telemóvel doía-me no bolso de tanto vibrar. Era, avisos de ser «taobua de tiro ao álvaro» em uma delicodoce cena do ódio, assinada por super-herói de saia justa se vangloria da mui nobre arte de espatifar supostas porcelanas, João Pedro George, sobrinho-bisneto do 1.º Visconde de Avelar e 1.º Conde de Avelar – segundo investigação na wikipédia que me deu um trabalhão.

Ora o que diz sua excelência, em douto «ensaio», assim chamado para se livrar ao contraditório, dispensável para o suposto jornalismo que a «Sábado» pratica. «Sim sim tem aqui bela coisa que bela coisa tem aqui» (aspas, ver abaixo). O enorme «investigador» foi, com cansativa dificuldade e resiliência, vitimiza-se o putativo herói, a distintas plataformas abertas ao público, do Diário da República à dos contratos públicos online, para levantar um conjunto de contratos que fui fazendo ao longo de vinte anos com câmaras ou entidades supostamente ligadas aos socialistas e ao António [Mega Ferreira]. Exclui todas as outras, de distintos quadrantes políticos, da monarquia ao comunismo, da Presidência da República ao Jardim Botânico da Universidade do Porto, que pudessem afectar a lógica narrativa, que de uma história de adormecer se trata. Põe tudo no mesmo saco, claro, projectos de dimensão e alcance variáveis, envolvendo mais ou menos participantes, assessorias concretas ou colaborações. Mais: se foram propostas ou convites. Em nenhum momento, lhe interessa investigar se alguma coisa ficou por cumprir, se sombra de sombra ou mijo de gato tombou sobre a gestão de cada uma das ideias postas em movimento.

Não, basta discorrer a demagogia dos valores e o uso das alarvidades do costume para o efeito: «empochar», «deitou a correr, dirigiu-se saltitante», etc. Aliás, o mais insidioso, que me obriga a defesa frustre perante ataque soez, é o sobrinho-bisneto não afirmar nada. Insinua, com a elegância do «elefante no nenúfar» (aspas, ver abaixo). As páginas da revista abrem para se tornar tribunal de série televisiva mediana, mas muito dramática, de apelo ao mais básico. Reparem que, ao contrário de qualquer prática deontológica, juiz e o advogado desapareceram, para entregar por completo o pôr-do-sol ao procurador-inquisidor que nem precisa apresentar prova alguma, apenas valores, maravedis, contado, dinheirinho de fazer salivar. Agora o projector cega-nos, recortando a figura do dono da justiça, a denotar torrencialmente para que o júri possa. O júri, quer dizer, os leitores. Julgar?, leia-se, condenar sem apelo nem agravo. O temível «investigador», sempre louvado pela coragem, não teve tomates para afirmar nada pelo qual pudesse ser responsabilizado. Só sugere, em nome da liberdade de putativa imprensa. As ligações à maçonaria, por exemplo, que botam sempre picante na grande caldeirada das teorias da conspiração, resultam de artigo do vizinho «Correio da Manhã», ia lá o visconde sujar as mãos…

Até na crónica anterior (primeira de quatro), no momento mais abjecto, ao falar das ameaças que vencerá com enorme sacrifício, ainda que isso ponha em risco a criação das filhas, fá-lo entre aspas. Alguém lhe disse, não foi ele. Insisto, de investigação jornalística (ou outra) a prosa nada tem, só manhosice. Para não maçar, veja-se a asneira de dizer que António Lamas sucedeu a Mega Ferreira. Mas há mais mentiras, incorrecções, torções na verdade, como se fosse esse o objecto, sendo mero ensaio. Deu-lhe sopro de ideia e vai de a borrar no papel. Com a máxima a liberdade de enlamear, por ser essa a sua pulsão, que outra. Diz ele, com extrema correcção e maior indignação: «o mártir da Abysmo e da Arranha-Céus, que tem mister de recorrer a parcerias com o El Corte Inglês, a INCM, a Direcção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas, etc., para publicar quase todos os livros do seu catálogo, é a encarnação do ideal de editor independente, que compromete o seu conforto e segurança em nome da formação cultural do país.» Lá está, o «investigador» nem sabe contar. Nos mais de 140 títulos que publicámos, se 10% resultarem de parcerias é muito, sendo que fica por explicar as diferenças, que nem tudo se resume a dinheiro, nem todos os logótipos. Talvez seja a única afirmação-acusação, logo falsa, por azar. Custa, ao rapaz, que eu seja mesmo editor independente. Agasta-o não ter pedido licença. Prova o contrário as edições apoiadas? Será que aquelas por si organizadas e devidamente apoiadas, as fez sem remuneração? Nos puros, sabemo-lo de outros quintais, a superioridade está na limpeza com que deixaram de evacuar. Tanto faz. Nada aqui carece de prova, o supremo tribunal das redes sociais já me condenou pelo crime capital da minha vida estar indelével e cabalmente ligado ao António Mega Ferreira, com o apoio activo do Duarte Azinheira, e as costas quentes do Partido Socialista sem esquecer a Maçonaria. Tenho como pior a «acusação de mau carácter», na vez desta terrível de ser, à vez e conforme as circunstâncias, extremista de esquerda, anarquista, adepto da teologia da libertação ou do Opus Dei. Decidam-se, por amor de Deus! Não me sinto lá muito bem, de nenhum ponto de vista, muito menos financeiro, mas não conto desviar-me muito do caminho feito. Até pelo orgulho nos projectos que partilhei com o António, sobretudo, o de ser um dos editores do seu português límpido, ao serviço de pensamento desabrido e curioso, hedonista e libertário. Sim, libertário significa isso mesmo: construir as montanhas de onde se respira ou vislumbram horizontes. E, de súbito, no meu país e em meio que, supostamente, pensa, a ideia de ser do contra tornou-se valor máximo. Erguemos bandeiras sem ler, sem interpretar, só por ser contra, mesmo uma parede, sem razão nem sentido. Embora lá e de cabeça, que não serve só para pensar!

Ao contrário dos santos adorados pela nova inquisição, que pagaram na pele o preço do dito e do feito, mais abjecta resulta esta manhosa impunidade. E em pasquim dirigido por alguém que, antanho, achei ser jornalista e ter noções de deontologia. Que a vergonha te seja leve, Eduardo Dâmaso! Não tenho filhos, mas tive pais e avôs e quem não se sente não é filho de boa gente. O debate pode continuar em outras sedes, com variegados modos de responsabilizar a leviandade da calúnia. Citando amigo querido, «a honra ainda é um valor e ainda há juízes em Berlim».

A propósito. Admiro o facto de o vigilante ter colocado em perigo o bem-estar das filhas por tão sanitária sanha (ou saga, ainda não sei bem). Como sou, além de independente, um romântico, acredito que estas leituras maldosas e tristes do mundo não fornecem alegria a ninguém, nem ao próprio, dobrado sobre si, ligado ao saco de fel na vez de soro, nem aos restantes, pela queima de oxigénio. Fiquei, portanto, com alguma compaixão pelas crianças que não escolheram conviver com gente desta cujas janelas dão apenas para o nevoeiro.

Mando beijo, com dedo de permeio.

A vizinha, Lisboa, 9 de Abril

Primeira intervenção do lado de lá da mesa, no «Inventário Possível», projéctil dos manos José [Romão] e Valério [Anjos], ainda por cima de Beckett e tendo por parceiro aceso de velório, o Nuno [Miguel Guedes], cuja quântica da vida reaproximou os nossos buracos negros. Antes do momento, de que já tenho saudades, uma delas o violoncelo rasgante da Sandra [Martins], o Tiago [Fezas Vital] pediu que posasse para projecto seu.

Revejo-me na ferida e no gesto. Piegas, comovo-me com o divertimento que erguemos, apesar de não ter sido servido com whiskey. De propósito, traduzi poema que me atapetou depois estes dias. Vede, sem há coincidências.

«om bom é um país/ onde o esquecimento onde pesa o esquecimento/ com suavidade nos mundos sem nome/ ei-la a cabeça que sustentamos a cabeça fica muda/ e sabemos que não não sabemos nada/ o canto das bocas mortas morre/ sobre as praias de gravilha fez a viagem/ nada há por que chorar// a minha solidão conheço-a vá conheço-a mal/ tenho tempo é o que me digo tenho tempo/ mas que tempo osso faminto o tempo do cão/ do céu empalidecendo sem parar meu quinhão de céu/ raio que sobe as cataratas tremelicando/ mícrones de anos tenebrosos// vocês querem que vá de A a B não posso/ não posso sair estou em um país sem vestígios/ sim sim tem aqui uma bela coisa que bela coisa tem aqui/ o que é que foi não me faça mais perguntas/ espiral poeira de instantes o que quer que seja dá no mesmo/ a calma o amor o ódio a calma a calma”.

17 Abr 2019