Rosa Coutinho Cabral, cineasta: “Prémios dão um novo alento”

Filmado em Macau em 2018, “Pe San Ié”, longa-metragem documental sobre a vida de Camilo Pessanha, recebeu, em Fevereiro, quatro distinções no festival New York Movie Awards. Mas a realizadora Rosa Coutinho Cabral não tem parado. Depois do lançamento no ano passado de “A Casa da Rosa”, está na forja um projecto de filme e peça de teatro sobre Natália Correia, que poderá ser apresentada em Macau

 

A longa-metragem documental de 2018 “Pe San Ié” continua a ganhar prémios. Como encara esta longevidade da obra?

Fico muitíssimo satisfeita, sobretudo porque foi um trabalho que eu gostei muito de fazer na companhia do Carlos Morais José e apoio da produtora Inner Harbour. Contou ainda com a colaboração de muitas pessoas, tal como Susana Gomes e Pedro Cardeira na fotografia e José Carlos Pontes na música. Estes quatro prémios [Melhor Longa-metragem Documental, prémio Prata para Melhor Música Original, Melhor Edição e Melhor Cinematografia] dão um novo alento ao filme. No fundo, um filme vive do seu reconhecimento e da sua projecção, e se não for visto é, de alguma maneira, um arquivo morto. O facto de estar a ser desarquivado, digamos assim, e procurado [é bom], porque são muitos destes festivais que nos procuram, convidando-nos a enviar o filme para concurso. Não há dinheiro envolvido, mas estes prémios trazem o reconhecimento. Saber que fizemos um objecto artístico e cultural com interesse que vai além do momento em que a produção termina, o facto de continuar a ser solicitado depois destes anos traz uma revitalização muito grande. Dá uma grande importância ao tema, passado em Macau, algo que também está muito presente no imaginário das pessoas, bem como a figura de Camilo Pessanha.

Passaram alguns anos desde que fez o filme. Como olha hoje para o projecto?

Tive a oportunidade de rever o filme muito recentemente. É muito raro ver filmes meus já terminados e, muitas vezes, nem os vejo quando passam nos festivais. No entanto, vi-o num outro dia e considero que continua muito actual no propósito que tinha. Não mudaria nada. Acho que a escolha do Carlos Morais José para personagem aglutinadora faz com que o documentário seja ficcional, um misto de detective com Pessanha, da nossa própria condição de português no Oriente, é muito importante. Isso faz com que o filme ganhe um trajecto temporal entre aquilo a que se refere, que é o tempo de Pessanha, e o tempo que vivemos hoje em dia, que é o tempo em Macau. Esta actualidade que se prende com o tempo anterior está muito bem resolvida no filme e não mudaria nada. Ainda hoje recebi um convite de outro festival [para apresentar o filme a concurso]. Há ainda outro aspecto que queria sublinhar: sempre considerei que isto era um ensaio cinematográfico que colocava o olhar de um morto num sítio vivo. Acho que isto foi conseguido e, passados estes anos, ainda acho que é isso que está no filme: um contrato com a pessoa que morreu e com o seu olhar sobre um espaço que ele escolheu viver e morrer e onde escreveu grande parte da sua obra. Confesso que esta ideia de ter um espaço que vacilava entre o campo, que é o olhar dele, e o contracampo, que é o presente, ainda lá está no filme e fico contente com isso. Ainda consigo achar o que tinha proposto e não fiquei zangada comigo. Quando acabo os filmes fico sempre um pouco zangada, com a sensação que não era aquilo que queria.

Venceu também outros prémios neste festival, nomeadamente com o recente documentário “A Casa da Rosa”. Fale-me desse projecto.

É um projecto sobre a perda, o outro e tem a ver comigo, com aquilo que perdi ao longo da vida, que foi bastante trágico, e que acaba por culminar com a perda de uma casa. Quis filmar todo o processo de saída, de ser obrigada a sair de uma casa que era o meu lugar, um sítio onde tinhas as minhas memórias e onde tinha tudo aquilo de que não me queria afastar, mas que fui obrigada. Na verdade, não tinha dinheiro para pagar a renda e fui despejada. Fiquei um pouco espantada com o facto de o filme ter tido todo este reconhecimento, o que é interessante para um filme muito íntimo, muito sincero, muito honesto sobre o que senti. Foi totalmente feito por mim: gravei, fiz o som, filmei-me continuamente, tive de me encenar a mim, colocar a câmara, criar um espaço. Foi uma espécie de auto-encenação, uma coisa muito intensa e feita sem dinheiro nenhum, com o meu dinheiro e de pessoas amigas. A música foi oferecida pelo José Carlos Pontes. Acho que, cinematograficamente, é um filme de grande honestidade sobre a perda. A minha pergunta é como se filma a perda, o luto, algumas situações muito trágicas. Consegui fazer o filme porque me deixei arrastar pelo meu sentimento e honestidade, de nada esconder. É uma pessoa que se despe e mostra o que é. Não sei se voltarei a fazer isso, mas dessa vez, fi-lo.

Foi uma maneira para lidar com várias situações difíceis, portanto.

Sim, pode-se dizer que sim. Este lado trágico e que culmina com o processo da catarse… possivelmente, sim. Fui muito obsessiva na filmagem, gostei bastante de a fazer, mas usei o método que quase me levou a enlouquecer com essa obsessão. Já estava farta da casa e de filmar. Andava sozinha pela casa e pelo telhado de um edifício de Lisboa sozinha, à noite, porque queria sentir tudo o que tinha a ver com aquela casa. Houve uma altura em que quase raiou a loucura, uma certa desrazão. Mas foi um processo do qual não me arrependo. Ainda bem que o fiz.

Como é ver revelado algo tão pessoal em festivais de cinema?

Não foi difícil. A primeira exibição foi no DocLisboa, foi bem recebido, segundo consta esteve muito perto de receber o prémio [principal], mas houve outro filme de que gostaram mais. As coisas são assim. Depois tive um contacto com uma curadora italiana que quis levar o filme para o festival “8 1/2”, baseado no [Federico] Fellini, e aí o filme começou a circular e recebemos convites para outros festivais. Nunca recebemos dinheiro, o que me teria dado muito jeito (risos). Houve pessoas que acreditaram no filme e ajudaram na montagem.

Está a trabalhar num documentário sobre Natália Correia. Quando termina esse projecto?

Em Setembro. Na próxima semana vou estrear uma peça de teatro, também sobre a Natália Correia, intitulada “Colheres de Prata”, que, se tudo correr bem, poderá ir até Macau.

Porquê Natália Correia?

Por várias razões: eu sou açoriana, ela é açoriana. Viemos para Lisboa praticamente com a mesma idade, não porque quiséssemos vir, mas porque a família veio. Tivemos de sair de uma ilha de que ambas gostávamos bastante para um lugar ainda desconhecido. Natália foi sempre uma mulher do lado da liberdade e da defesa dos direitos humanos. Foi uma anti-fascista. Toda a vida foi dedicada a defender estes propósitos, quer na literatura, quer na política, quer nas campanhas que apoiou, nomeadamente a de Humberto Delgado. Foi uma mulher bastante intransigente e muitos livros dela foram apreendidos pela censura. Sempre defendeu a figura da mulher, sem o feminismo um pouco bacoco da época. Ela fazia, para mim, a defesa de um feminismo mais actualizado e interessante. Ainda hoje concordo com ela. Nunca teve a ideia disparatada de as mulheres terem de substituir os homens ou de homogeneizar formas de poder. Achava que o mundo tinha de ser habitado por homens e mulheres em igualdade de circunstâncias sociais, políticas e económicas e já falava na igualdade de género. Depois do 25 de Abril de 1974, foi uma voz importante e fez um movimento crítico em relação ao seguimento da Revolução. O que também acho interessante. Nunca perdeu as características da sua voz e isso fez dela uma mulher que muita gente quis reduzir a anedota, numa mulher de direita, desbragada. Nunca foi contra as instituições democráticas e as críticas que fez foram proféticas, com coisas que hoje vemos que são verdade. Sou uma pessoa de esquerda e sempre me identifiquei com ela, por ser uma voz discordante numa época em que era difícil sê-lo, pois ser discordante era ser de direita. Mas ela nunca se inibiu, e acho isso notável. Foi ainda uma mulher extraordinária na literatura, e luto, nestes projectos que estou a fazer, contra a redução dela a uma anedota e a uma ideia política que não corresponde à verdade. Foi sempre anti-fascista, antes e depois do 25 de Abril.

14 Mar 2023

FOLIO | Exposição de Rosa Coutinho Cabral e Carlos Morais José em Óbidos

“Visto com os pés, escrito com os olhos” é o nome da exposição de rua que integra a edição deste ano do FOLIO – Festival Literário Internacional de Óbidos, e que conta com fotografias de Rosa Coutinho Cabral e textos de Carlos Morais José. As imagens foram capturadas na Rua Direita, em Óbidos, e remetem para outras perspectivas da realidade

 

Serão poucas as vezes que olhamos para baixo e encaramos as coisas sob a perspectiva dos nossos pés, ignorando o que os nossos olhos vêem. Foi com este pensamento que a realizadora e encenadora Rosa Coutinho Cabral fotografou pedaços da Rua Direita, em Óbidos, imagens que podem agora ser vistas na rua principal da histórica vila portuguesa, numa exposição que integra a edição deste ano do Festival Literário Internacional de Óbidos (FOLIO) ontem inaugurada.

Carlos Morais José, director do HM e escritor, é o autor dos textos que acompanham as imagens. “Os textos não são explicativos mas sim alusivos às imagens que a Rosa captou, acrescentam coisas que não estão nas imagens mas que se podem imaginar a partir delas ou que se podem ver num outro plano. Quer seja um plano do realmente visível, ou um plano simbólico e imaginário”, referiu ao HM.

As imagens foram captadas na última edição do FOLIO, conforme contou Rosa Coutinho Cabral ao HM. “Fiquei atraída pelas texturas quase pictóricas das paredes, os restos e as marcas dos equipamentos, como caixas de electricidade e bueiros, as faixas de azul anil e amarelo. São marcas que conferem à Rua Direita de Óbidos uma fisionomia particular mas que é praticamente invisível aos olhos, porque está ao nível dos pés.”

A cineasta e encenadora descreve que, nesta exposição, “como em tudo na arte, não há uma mensagem em particular”, mas sim “uma forma de abordar o real ou aquilo que nos rodeia”. “Eu tive essa vontade de, de certa maneira, tornar visível uma matéria que é bastante invisível”, apontou.

Esta mostra nasceu também graças ao apoio da editora portuguesa Ler Devagar. Foi a própria Rosa Coutinho Cabral que convidou Carlos Morais José para a elaboração dos textos, dando continuidade a uma colaboração antiga.

“Pareceu-me, quando estava a fotografar, que seria muito interessante ter temas que não coincidissem com o que se via, mas com o que não se vê ao nível dos olhos”, afirmou.

O lugar do outro

A edição deste ano do FOLIO tem como tema “O Outro” e esta mostra pretende, aliás, ser o reflexo de isso mesmo, criando outras perspectivas. Até porque, como escreve Carlos Morais José a propósito da mostra, “em cada lugar há uma outra imagem”.

“A ideia que ficou desta experiência de escrita e de fotografia é que, de alguma maneira, cada uma das imagens é um outro a partir do outro, são experiências de produção artística e literária. Não só aquilo que se vê a partir dos pés é uma outra forma de ver, é um outro olhar, e depois há uma parte invisível que vem das próprias palavras”, disse a autora das imagens.

Acima de tudo, Rosa Coutinho Cabral diz ter ficado “muito feliz” pela aceitação do projecto e pela oportunidade de colaborar novamente com Carlos Morais José. O autor do texto acaba por ser “a outra pessoa, neste caso o meu outro, nesta proposta de alteridade entre as imagens e as palavras”.

Para Carlos Morais José, é sobretudo “muito gratificante” o facto de esta mostra estar patente na rua e não num espaço expositivo fechado.

Óbidos e Pessanha

Muito mais do que abordar os inúmeros outros, esta exposição acaba por também estabelecer uma ligação com a relação que o poeta português Camilo Pessanha tem com a vila de Óbidos, onde viveu e trabalhou antes de ir para Macau, nos primórdios do século XX.

“A memória da sua passagem pela cidade ficou registada, entre outros documentos, no poema ‘Castelo d’Óbidos’, incluído [na obra] Clepsydra. Mais recentemente, o FOLIO convidou-me, enquanto escritor de Macau, para estar presente. Este ano a nossa relação continuou. Seria interessante manter esta ligação entre as duas cidades, os seus escritores e talvez entre os seus festivais literários”, adiantou Carlos Morais José. A mostra “Visto com os pés, escrito com os olhos” está patente até 24 de Outubro.

Portas abertas

O FOLIO começou ontem e promete dar ao público 11 dias de literatura, música e arte com a presença de 175 autores e escritores. Esta edição marca o regresso do FOLIO aos eventos presenciais depois da pandemia, com um programa que inclui 160 actividades e 16 mesas de autor e debates, além de outras iniciativas.

A título de exemplo, a conversa de ontem juntou autores como Leïla Slimani e Juan Gabriel Vasquez e foi o ponto de partida para as mesas por onde passarão Isabel Lucas, Itamar Vieira Júnior, Jeferson Tenório, Paulo Scott, Fernando Rosas, Lilia Schwarcz e Richard Zimler.

A escritora chinesa Jung Chang também estará presente, juntamente com autores como Mário Lúcio, Mário de Carvalho, Alberto Manguel, Pedro Mexia, Ricardo Araújo Pereira, Dulce Maria Cardoso, João Paulo Borges Coelho, Ana Margarida de Carvalho, Ana Luísa Amaral, Amália Bautista e Tatiana Levy, entre outros. O tema da edição deste ano é “O Outro”, com a inclusão de uma novidade: a banda desenhada. O programa celebra também a obra do escultor José Aurélio e os 50 anos da galeria Ogiva, em Óbidos, da qual foi fundador.

15 Out 2021

Realizadora Rosa Coutinho Cabral prepara documentário sobre Natália Correia

[dropcap]A[/dropcap] cineasta Rosa Coutinho Cabral, que apresentou, esta quarta-feira, o filme premiado “Coração Negro”, no Teatro Micaelense, em Ponta Delgada, prepara um documentário sobre Natália Correia, intitulado “A Mulher que Morreu de Pé”.

Em entrevista à agência Lusa, a realizadora avançou que está a preparar o documentário “A Mulher que Morreu de Pé”, sobre Natália Correia, admitindo que este é um projecto que lhe interessa, porque Natália Correia “é conterrânea, porque é uma grande poeta e dramaturga e porque foi uma mulher de intervenção”.

“Fazer cinema é um acto político”, uma dimensão que surge, naturalmente, no novo projecto que a cineasta micaelense prepara, mas também em “Coração Negro” e em todos os filmes que ainda espera fazer, admite.

“A forma de fazer um filme e a forma de mostrar aquilo que se conta, como é que eu decido os planos, como é que eu os considero importantes, como é que eu os quero fazer, é, de facto, um gesto, é uma política”, afirmou.

Em “Coração Negro”, de 2017, mostra a morte de uma relação, mas também “toda a solidariedade que é possível ter pelo sofrimento das pessoas”, evidenciando que, no sofrimento, “nada é linear, nada tem uma causa-efeito tão concreta e tão romanesca como são [é] normalmente apresentadas [apresentado]”.

A acção desenrola-se na ilha do Pico, onde o casal, interpretado por Maria Galhardo e João Cabral, está a reconstruir uma casa, uma escolha que Rosa Coutinho Cabral diz ter sido intencional, porque “toda a morfologia do Pico, a geologia do Pico, é tão intensa e é tão particular”, que “muito rapidamente, estas características da ilha tornaram-se uma metáfora da violência interna daquele casal, da violência que aquele casal vive”.

O filme arrecadou vários prémios, dos quais se destacam o de melhor realizador, no Krajina Film Festival, melhor filme no Festival ARFF – Amsterdam, e melhores actores para Maria Galhardo e João Cabral, no Best Actos Film Festival, em São Francisco.

O reconhecimento internacional é “muito gratificante, depois de um esforço tão grande que foi fazer este filme, que, realmente, teve uma rodagem longa, algo atribulada, com muito pouco dinheiro”, explicou, mas lamenta que, em Portugal, o mercado seja “muito fechado e muito injusto, às vezes”.

Da filmografia de Rosa Coutinho Cabral constam, também, os documentários “Pé San Ié – O Poeta de Macau”, sobre o poeta Camilo Pessanha, e “Arrivederci Macau”, sobre o arquitecto Manuel Vicente, bem como as longas-metragens “Cães sem Coleira”, “Lavado em Lágrimas” e “Serenidade”.

O seu novo projecto, “A Mulher que Morreu de Pé”, leva-a, novamente, aos Açores, desta vez à sua terra natal, Ponta Delgada, onde apresenta “Coração Negro”, numa sessão inicialmente prevista para quinta-feira, mas que foi antecipada para quarta-feira, no Teatro Micaelense.

14 Fev 2019

Rosa Coutinho Cabral, cineasta: “Renasci muita coisa pelo caminho”

A cineasta Rosa Coutinho Cabral está em Macau para apresentar o filme “Pé San Ié – O poeta de Macau”, um ensaio visual sobre o exílio de Camilo Pessanha, que será exibido na Cinemateca Paixão na segunda-feira, às 18h. Este é o culminar de um processo de encontros e desencontros com a fantasmagoria do poeta e da cidade onde morreu

[dropcap]E[/dropcap]stá em Macau para apresentar o filme sobre o Camilo Pessanha. Porquê este poeta?
A génese da minha ligação a este poeta extraordinário tem uma pequena história. Aliás, todas a minhas ligações têm uma história, quer seja na vida, na literatura ou no cinema. A génese desta ligação com o Pessanha começou muito cedo, quando eu era miúda. Estava ainda nos Açores e teria menos de 13 anos. Descobri um dia um livro na casa de alguém, comecei a ler, adorei, pedi emprestado, não me lembro se por não ter dinheiro para o comprar ou porque não estaria à venda ali em São Miguel. Mas li Pessanha e como todos os adolescentes, também tinha a pulsão da escrita e acabei por “roubar” palavras a este poeta. Tudo isto está no filme. O mais importante é o que aprendemos acerca de nós próprios em todo o processo. Ficamos a conhecermo-nos melhor através de um conhecimento que nos é exterior.

Um conhecimento de alguma forma projectado?
Não sei se é projectado mas acho que é uma boa palavra, ainda não tinha pensado nela. Mas, sobretudo, quando uma peça acaba, quando terminamos de realizar uma coisa com toda a alegria e sofrimento que lhe é intrínseco, na verdade o que fica de mais importante é o que se conhece acerca de nós através dessa tal exterioridade, projectada ou não, e que neste caso tinha o nome de Camilo Pessanha de Macau. O que fica também é uma ligação, que vou adjectivar de superlativa, a ligação que tive com os outros, comigo e com o objecto do filme, o Pessanha, e como estas várias ligações me trazem até aqui. Não morri pelo caminho. Morri muita coisa, toda gente morre muita coisa pelo caminho, mas também renasci muita coisa pelo caminho. Isto só acontece se houver uma ligação forte com o que se faz.

Como foi o processo para fazer este filme?
Acho que tive o privilégio absolutamente extraordinário de trabalhar com pessoas com quem gostei muito de trabalhar. Umas já conhecia, outras não. Já conhecia o João Cabral, que é meu irmão e quem diz os poemas no filme. Há uma matéria no filme que é a própria poesia do Pessanha. Já conhecia o Pedro Cardeira, aqui de Macau, de um outro filme que tinha feito. O filme não é só meu. São matérias que têm uma ligação muito profunda com cada sujeito que as produz e que, por sorte, se encontraram neste filme e congeminaram qualquer coisa que acho que tem interesse. Também tenho que referir o José Carlos Pontes que fez a música e que, além disso, acompanhou todo o processo de acabamento do filme. Foi o grande apoio do fechar do filme e sem o qual seria impossível terminar este filme. Além destas pessoas que conhecia há duas novidades grandes: a Susana Gomes, que fez a fotografia, e o Carlos Morais José. E acho que o encontro com o Carlos Morais José é muito importante no próprio processo do filme. Este acto de fazer um filme, ou outra coisa, fica sempre marcado pelos encontros.

FOTO: Sofia Margarida Mota

Da mesma forma que se reencontrou com a primeira leitura…
Na realidade, quando era miúda e descobri o Pessanha percebi que aquelas palavras na poesia eram fundamentais. Eu era uma adolescente, mas talvez também sentisse a dificuldade que é viver neste mundo. Mas acabei por esquecer o Pessanha. Um dia, aqui em Macau, o Rodrigo Guimarães pergunta-me porque é que eu não fazia um filme sobre o Pessanha. Na viagem de regresso a Lisboa o Daniel Pires faz-me a mesma pergunta. Reli o Pessanha e achei que era isso mesmo que queria fazer. Regressei a Macau e comecei a trabalhar com a Susana. Nessa altura, conheci o Carlos Morais José. Ouvi-o falar de Pessanha e pedi quase imediatamente se o podia filmar numa espécie de repérage ainda. Fiquei com a sensação de que aquela pessoa tinha que ver com o âmago deste projecto, no sentido da parte em que queria fazer um documentário ficcionado e não só um filme institucional com entrevistas. Fiquei com um duplo problema porque a partir daí percebi que estava dirigida para dois objectos: um para o documentário e o outro que era o filme. Tinha de fazer os dois e assim fiz, num tempo recorde. Durante ano e meio filmámos e montámos o filme.

Não é a primeira vez que filma em Macau. Qual é a sua relação com o território?
Já conhecia Macau. Já cá tinha filmado. Tive a sorte de o fazer com o Manuel Vicente. Adoro Macau. Há sempre coisas muito estranhas na vida e às quais eu não espero dar nenhuma explicação. Macau é uma destas cidades que produz em mim uma atracção muito forte e que esteja talvez no capítulo das pequenas ou das grandes paixões. Como todas as atracções tem os seus momentos de ódio, repúdio. Mas há qualquer coisa muito profunda que me liga a Macau, embora eu tenha cá chegado já bastante tarde até porque já não sou nova. Mas, de facto, não conheci Macau jovem nem com um olhar quase adolescente. Nada disso. Acho que conheci Macau com o olhar de quem está a entrar no envelhecimento. É uma cidade que tem diversas escala. É uma cidade aparentemente desordenada, cheia de contrastes de épocas, do antigo e do muito velho, que são coisas diferentes ao muito novo e ao muito actual. Estas diferenças agradam-me muito e produzem de um ponto de vista urbano uma espécie de desorientação muito divertida. É quase o que podemos encontrar em grandes metrópoles, porque tudo é abrangente pelo olhar mas é tudo muito diferente. Também gosto muito de estar num sítio com pessoas diferentes e Macau é a diferença por excelência. Há ainda outra questão. Sou açoriana e há uma humidade em Macau que adoro. Sinto-me absolutamente em casa. Outra coisa interessante é que da última vez que saí de Macau senti uma coisa muito especial: senti que me estava a ir embora e não que estava a regressar ao meu lugar a Lisboa. Sinto que me estava a ir embora do meu lugar e agora, quando cheguei, senti que estava a regressar a Macau o que é uma coisa estranha.

O filme foi apresentado no DocLisboa. Como foi a reacção do público?
Da crítica não sei, porque foi há muito pouco tempo. As outras reacções foram de boca a boca, do público que lá estava e que pelo que disseram gostaram muito. O filme é um objecto estranho. Não é um objecto que se diga tradicional. Aqueles que conheciam Macau gostaram da forma como viram a cidade e como filmei Macau. Fico contente com isso, fico orgulhosa por ter correspondido a qualquer coisa que as pessoas esperavam ver e ficaram muito admiradas com uma pessoa como o Carlos Morais José. Aliás, perguntaram-me onde encontrei este actor, esta pessoa, quem é ele, de onde vem. A relação entre os nossos dois discursos presentes no filme corre muito bem, interage muito bem. Eu dediquei-me a falar de cinema e não do Camilo Pessanha e esta relação com uma pessoa que está ali e fala do Camilo Pessanha. Ao mesmo tempo prestou-se generosamente ao jogo e à encenação do que eu queria fazer para poder filmar o morto. Não foi um desafio fácil, ele aceitou o desafio e fê-lo magistralmente.

“Aproximar da morte, de algum modo, aproximar da fantasmagoria e, sobretudo, não querer tornar presente aquilo que está ausente no sentido da carne. Ele não está cá, há outras coisas que podem estar.”

Porque é que este filme é um objecto estranho?
Só posso falar da estranheza do objecto, ou da forma como fiz o filme pensando no filme acabado. Esta é uma circunstância nova. É estranho porque a tal ligação que tive com este Camilo Pessanha foi um encontro muito profundo, especialmente, por razões próprias com a dor. Tinha de chegar aí e tinha de trabalhar esta ligação de uma forma que se convertesse cinematograficamente. Essa ligação tinha de ser uma faca afiada, profunda, até ao fim do mundo. Finalmente, tinha de me colocar a mim própria, pela primeira vez num filme feito por mim, ensaiar numa experiência quase repetitiva este acto de me aproximar de alguém que não está cá. Aproximar da morte, de algum modo, aproximar da fantasmagoria e, sobretudo, não querer tornar presente aquilo que está ausente no sentido da carne. Ele não está cá, há outras coisas que podem estar. Isso era um grande desafio e torna imediatamente o objecto deste filme num objecto estranho.

Depois há o modo de fazer, como é que se faz isso?
São as questões que coloco no filme. Como faço e experimento isso? Acho que o cinema é, acima de tudo, um acto de experimentar que deve ser feito com a maior honestidade possível. Acho que ninguém faz tudo o que quer, mas acho que me aproximei o quanto baste para me sentir bem. Uma pessoa experimenta e eu experimentei o espaço por forma a decantar essa presença do Camilo Pessanha nesta cidade e a cidade Macau de Caminho Pessanha.

FOTO: Sofia Margarida Mota

Teve uma experiência semelhante, mas com uma pessoa viva. Manuel Vicente. Foi muito diferente?
A diferença reside num ponto muito simples. A vida e a morte. O Manuel Vicente veio a Macau pela última vez comigo. Ele próprio diz, a dada altura no filme, “sei lá se volto a Macau”. Eu acho que ele sabia que não voltava, intuía. Acho que aquele filme foi uma despedida do Manuel Vicente a Macau. Era a Macau de Manuel Vicente. Eu gosto muito de cidades, e a forma como se vive e usa a cidade. Portanto, o Manuel Vicente deu-me uma perspectiva de Macau mas com aquela diferente, ele estava vivo, tinha carne e osso. E o Camilo Pessanha não tinha carne nem osso. Esta realidade de trabalhar atrás de um fantasma, atrás da morte, foi uma coisa muito profunda para mim e foi aquilo que tentei descobrir cinematograficamente.

Acha que este filme é mais seu que os outros?
É. Duas ou três pessoas que me conhecem há muito tempo disseram-me que este é o meu melhor filme. Não sou um cineasta VIP, fiz pouca coisa e não estou na boca do mundo. Não faço parte do mainstream e também nunca quis fazer. Sempre tentei fazer o que queria e acho que, finalmente, comecei a ter essa possibilidade. Quero contar coisas que tenham uma certa universalidade no fim, o Camilo Pessanha é importante porque a dor dele tem uma certa universalidade, a dor da humanidade, a dor dos desvalidos da sorte. Imagino que nem toda a gente goste, ou que um número muito reduzido de pessoas goste, não me importo, mas estou-me a aproximar cada vez mais do que quero fazer. Por outro lado, é um filme que também foi buscar à própria natureza do Camilo Pessanha, à sua forma de fazer. De algum modo, é um ensaio que se divide em quatro e esses quatro ensaios estão constantemente a recomeçar e a matar o anterior. Ou seja, é uma reinscrição ao jeito de Pessanha. A sua procura da eterna perfeição que ele tentou fazer reescrevendo os seus poemas, por vezes deixando de escrever. Mas, como o Carlos diz no filme, um poeta é sempre um poeta, mesmo que deixe de escrever.

1 Nov 2018

Pe San Ié – o poeta de Macau

[dropcap]T[/dropcap]eve estreia esta sexta-feira na sala Manuel de Oliveira do Cinema S. Jorge em Lisboa, no segundo dia do 16ª do Festival Internacional DOCLISBOA.

Passava pouco das 18h30 m quando a sala ficou escura e a tela se ilumina num filme que se propõe trabalhar o exercício do cinema numa viagem fantasmática a uma materialidade impossível, a do corpo e olhar do poeta Camilo Pessanha no seu habitar da cidade de Macau, lugar da sua vida e do seu exílio.

O filme anuncia-se a si mesmo como filme ensaio em quatro capítulos, que se pretendem mudança de ângulo no olhar sobre o mesmo tempo e espaço. Como se sabe, o ponto de vista é no cinema a singularidade da escrita cinematográfica, a assinatura autoral.

Um corpo, um homem, um personagem, um sujeito, surge e ocupa a tela, depois de alguns momentos de imagens difusas que se fundem e vão perdendo o carácter de dissipação na afirmação cada vez mais nítida tinta no papel tornada palavra.

Da palavra escrita do poeta surge a presença revelação do homem corpo vivo, inquieto e pensante, que nos diz o que nos alerta para as dificuldades do que nos podemos esperar, anunciando uma primeira revolta impossível, porque, como afirmado por Bazin, o cinema é uma arte impura, e o cinema dos dias do agora, como toda a arte contemporânea, é também um exercício de citação, a si próprio e ao mundo de que se alimenta e que, de forma mais perene do que supomos , é por ele construído. E o que a voz off da realizadora Rosa Coutinho Cabral nos é anunciado é um exercício de cinema.

Como todo o filme vai demonstrar, ao longo do exercício de suspensão fantasmática, entre os diferentes tempos presentes na tela, esse momento de intervalo cinematográfico da criação de um tempo paralelo inexistente, onde a impossibilidade do tempo passado no tempo presente coabitam, interrogando quais os passos e onde, querendo até, inventariar os porquês desse caminho, é esta materialidade deste corpo homem, também ele escritor, também ele amante intimo da língua, também ele solitário no seu sentir a dor e a alegria do mundo, é esta dupla figuração de personagem e de homem verdade no tempo presente, que de forma plena enche o ecrã nesta viagem por uma arquitetura da cidade onde a opulência a existir é da ordem do mistério e da procura impossível do sublime.

De Carlos Morais José são já há muito conhecidos vários talentos, o da escrita, o do jornalista, o do comentador, este filme demonstra que o cinema também é feito de um carisma potencia, onde a verdade do pensamento encontra visibilidade na sonoridade da palavra que o expressa e no corpo que o habita. Talvez seja disso que o filme trata, ou queira tratar, do como é o habitar das palavras pelos poetas. É Carlos Morais José quem o afirma, nesta sua roupagem complexa e paradoxal de fantasma capaz da visibilidade e leitura do real, que no poeta está presente o verbo inicial, a matriz , o arquétipo, o sopro e marca primeira, a revelação inconsciente da esfinge, o suor e a languidez da morte no rio perpétuo do fogo do sangue. O trauma e a viagem inicial e iniciática.

O filme dá-nos ver a escrita de Camilo Pessanha e a escrita do poeta é-nos dada pela voz do actor João Cabral, uma voz é sempre uma leitura própria, uma procura que nos é anunciada. A redundância é usada como recurso estilístico, citação ao cinema ensaio do Godard, talvez nem sempre com a assertividade estética pretendida.

Se, e ainda que o cinema seja o lugar de todos os possíveis, onde se morre e permanece vivo, bola de cristal que dá a ver o futuro e o passado vivido no tempo presente em cada projeção na sala escura dos milagres, apesar da suspensão, do intervalo, a cidade é um organismo vivo que dificilmente se deixa capturar a não ser em sempre escassas parcelas da sua realidade e, filmar hoje Macau de Camilo Pessanha é sempre um exercício mais de imaginação do que materialidade , esse lugar do visível, o “terroir” do(s) cinema(s).

A palavra não é o lugar exacto da prática cinematográfica donde a definitiva relevância do corpo do actor e da materialidade dos elementos em ligação direta sináptica com cada um dos espectadores.

É Jacques Rancière, quem escreve : “no teatro, independentemente da dimensão dada ao gesto e ao espaço, o concreto reside antes de mais nada, na palavra. A conversa em torno de uma fogueira pode dispensar a fogueira, a erva o vento. Ao contrário, no cinema, seja qual for o esforço para o intelectualizar, o concreto está ligado ao visível dos corpos falantes e das coisas que falam. Daqui se deduzem dois efeitos contraditórios: um deles consiste em intensificar o visível da palavra, dos corpos que a carregam e das coisas de que falam; o outro consiste em intensificar o visível como aquilo que recusa a palavra ou mostra a ausência daquilo que de que ela fala”.

Quando o corpo produtor primeiro da fala do filme é uma ausência sem solução, resta a materialidade da campa no cemitério final que o acolheu, a palavra escrita no papel impresso, a marca do peso da mão ausente que ali esteve, e reescreveu, rasurou, escrevendo de novo o já antes escrito. Mas é sobretudo a presença da materialidade do corpo do actor mesmo quando este encena a sombra, a presença impossível do fantasma, que nos transporta ao sopro da vida do poeta. É o corpo e a radicalidade do dito pelo homem que o habita que nos transporta nesta procura de contacto com o poeta maior do simbolismo em Português.

Ainda que o destino apenas possa ter hipotética presença visível no depois e que o mistério passeie de mão dada no interior da beleza das coisas, sabemos que, se não destino, Macau foi facto e fim. Macau foi o território cidade da vida adulta do poeta. Foi em Macau que viveu, respirou, adormeceu, acordou, escreveu, desejou, sofreu, amou. Sim, foi em Macau os seus olhos foram vistos e viram os seus passos percorreram ruas, subiram escadas, seguiram sombras, pisaram nuvens em dores amansadas de ópio.

Se a língua é sempre o território maior da pátria, naqueles expatriados que em lugares tão distantes vivem, e ainda mais quando poetas, torna-se não já a pátria mas o mundo, o lugar onde se não é estrangeiro, o lugar identitário que o corpo habita.

“Camilo Pessanha, o maior poeta simbolista português, escreveu e reescreveu até morrer os poemas de Clepsidra, a sua única obra. O filme não é o seu retrato, nem a ilustração dos seus poemas, mas o ensaio da forma cinematográfica do seu exílio voluntário em Macau. Como filmar este opiómano singular? Dando a câmara de filmar a um morto, ouvindo os seus poemas, seguindo os passos e a reflexão de Carlos Morais José.” Lê-se na sinopse que apresenta o filme, tente-se isso, não é tempo perdido.

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22 Out 2018

Filme sobre poeta Camilo Pessanha exibido na extensão de Macau do DocLisboa

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] filme “Pé San Ié – O Poeta de Macau”, inspirado na vida e obra do poeta Camilo Pessanha, vai ser exibido na extensão de Macau do Festival Internacional de Cinema DocLisboa.
Depois da primeira exibição no DocLisboa, prevista para 19 de outubro, o filme faz a sua estreia asiática a 05 de novembro, na Cinemateca Paixão, na extensão do festival português dedicado ao documentário, que é organizada em Macau pelo Instituto Português do Oriente.

Trata-se de um projeto da realizadora Rosa Coutinho Cabral e da produtora Maria Paula Monteiro, rodado inteiramente em Macau, em 2017, e finalizado este ano.

A mesma dupla é a responsável pelo documentário “Camilo Pessanha – 150 anos”, que será exibido em Macau no auditório Dr. Stanley Ho, sustentado pelo depoimento de investigadores, biógrafos e historiadores, na sua maioria ilustres figuras de Macau.

Segundo a produtora, nesse documentário surgem as várias dimensões do homem e não só do poeta, revelando-o como jurista eminente, republicano, maçom, professor, sinólogo, colecionador, tradutor e falante de chinês, oscilando sempre entre dois eixos: o mundo a Ocidente, onde nasceu, e a Oriente, onde viria a morrer.

9 Out 2018