Com vista para as traseiras

[dropcap]Q[/dropcap]uanto mais vejo a sequência inicial do filme “Janela indiscreta” de Hitchcock, mais ela se me afigura macabra e deplorável.

Vamos dar com James Stewart de pijama transpirado e perna engessada, imobilizado numa cadeira, a dormitar. Entra de súbito o rosto radioso de Grace Kelly em crescendo para câmara, mas afinal era para os lábios de Stewart, oferecida a um beijo mais abrasador do que o Verão urbano. No dueto subsequente Grace executará o que deveriam ser invencíveis manobras de sedução, desde o voluptuoso vestido de colecção pronto a ser despido (ou nem seria preciso…) até a um suculento jantar de lagosta, encomendado ao extremamente elitista e boémio “Clube 21”, servido por criado de libré. Qualquer espectador que não seja feito de gelatina, é infalível que neste ponto já lhe inflamassem as gónadas, mesmo ignorando que dali a um ano Kelly adviria indisponível enquanto Princesa do Mónaco.

Pois Stewart nada. De todo refractário às astúcias da Vénus furta-se a elas com relutância de peixe velho em picar o engodo, empregando um sarcasmo pedante, de quem se reivindica impermeável a frivolidades. O enfado dele é exuberante, como se soubesse que estava a ser filmado, e atinge mesmo a desonestidade emocional, quando a instâncias da frustrada Grace justifica a sua incomodada indiferença como sendo uma passageira hesitação. Nunca falha ser amarelo o nosso riso vendo-a sair porta fora com um “adeus” vexado por tão inverosímeis negas. Toda a cena é indesculpável.

Ah e tal…, isso são vocês deslumbrados com a novidade e a expectativa da cena…, ou esqueceram que a rotina gera o marasmo e a excessiva solicitude a lassidão do caçador perante a presa capturada?

Seria plausível o argumento, não fossem as cãs de James Stewart denunciarem os seus 46 anos de idade. E já não era o James Stewart cândido e generoso, personificação da virtuosa mediania que víramos na década de 40. Ele viera ter a este aposento com vista para o saguão após uma sequência de filmes com Anthony Mann, realizador sumamente asseado e pragmático, que não só o meteu a cavalo e aos tiros nas bravias florestas do noroeste americano, como lhe transfigurou o carisma. Posta de lado a sua proverbial inocência, o James Stewart de agora não desdenhava a ira da vingança, haja dela necessidade para desagravar injustiças.

Vá lá, faça-se um exame de consciência: mas que homem de 46 anos solteiro e autónomo, inevitavelmente titular de um acervo de desilusões na vida e decerto advertido que os dados da sorte não rolam com a boa estrela de outrora, que varão maduro permaneceria impávido aos fervores de Grace Kelly, bem condizentes com a avidez dos seus 23 anos? Mas quem preferiria entreter-se a bisbilhotar a vulgaridade dos vizinhos do que a explorar até onde consentiria a paixão de Grace Kelly? – de Grace Kelly! Quem?

Em jovens, nas primeiras vezes que vimos esta cena, quando o tempo e as oportunidades ainda eram incomensuráveis, partilhámos com gozo e cumplicidade não tanto a petulância de James Stewart – atire pedras quem não resmungasse que dava deus nozes a quem não tinha dentes… – quanto a torpeza de Hitchcock em comprometer-nos com a intuição de que a recusa será mais libidinosa do que cedência. Mas hoje não consigo deixar de ver na misantropia da personagem de Stewart algo de mórbido e punitivo que o realizador nos quis instilar.

Hitchcock sabia bem o que fazia. A são e salvo nos bem-sucedidos 54 anos que então envergava, é deliberado que faça pouco da protérvia da juventude e desconforte o recato da meia-idade. As duas classes etárias – que é para aprenderem… – o mestre da manipulação ludibria com mão direita as intenções pecaminosos incitadas pela mão esquerda. A cena não é a comédia de uma paixão desmerecida e malograda, mas uma provação apontada à lascívia dos espectadores. E este ostensivo gosto em retirar prazer da negação do sexo poder-se-á crer que seja a versão hitchcockiana da “Noche Oscura” do místico João da Cruz – poema que nos convenceríamos ter sido escrito por um libertino se nos sofismassem acerca da sua espiritualidade. Enganou-nos muito bem enganados, o patife.

26 Out 2018

António-Pedro Vasconcelos, realizador: “Um bom filme é uma espécie de Juízo Final”

Com mais de 50 anos de carreira, António-Pedro Vasconcelos lamenta a falta de público para o cinema que se faz em Portugal e a forma como são dados os financiamentos à sétima arte. O cineasta está em Macau para apresentar “Jaime”, “Os imortais” e “Os gatos também têm vertigens” no âmbito das comemorações do 10 de Junho

[dropcap]É[/dropcap] filho e neto de juízes e começou por estudar Direito. Como é que aparece o cinema?
Estudei Direito porque a família achava que devia dar continuidade à tradição, mas isso não aconteceu. Primeiro através da banda desenhada e depois através de histórias e de romances, o meu universo sempre foi o da ficção. Sempre me interessaram as histórias. Mais tarde descobri o cinema. Acabei por sentir que tinha de passar para o lado de lá. Tinha de deixar de ser um leitor e um espectador para passar para o outro lado, para transmitir os sentimentos que a realidade me inspiravam, acerca dos meus próprios problemas e daqueles que via à minha volta. O cinema dava-me isso e foi o que me fascinou: o poder ser capaz de transmitir aos outros aquilo que sentia.

O que é para si o cinema?
O cinema foi a grande arte do séc. XX. Sempre achei que sem ficção a vida tornava-se insuportável. A ficção dá-nos a ilusão de um mundo perfeito, mesmo nas tristezas. Costumo dizer que um bom filme é uma espécie de juízo final em que decidimos quem mandamos para o inferno, para o céu e para o purgatório – agora já não há purgatório, mas era um conceito que dava jeito. O cinema tem uma coisa que lhe é particular, aliás o realizador que me marcou toda a vida, François Truffaut, numa entrevista que lhe fiz disse-me isso mesmo: no cinema, e ao contrário da literatura e de outras artes ficcionais, nós não podemos deixar que o público saia da sala com o sentimento de que a vida não vale a pena e de que é injusta. De facto, podemos escrever um mundo de injustiça, de desigualdades, de violência, de guerra até, mas o sentimento que temos de dar às pessoas é de que o facto de transmitirmos o que é mau já significa que temos uma ideia do que é justo. Apesar de ser muito céptico em muitas coisas, de ter a noção de que a natureza humana está longe de ser perfeita, que os homens não são particularmente bons, que são bons e maus, conforme as circunstâncias e conforme tudo aquilo que o Shakespeare disse, acho que cada um de nós tem de ter uma visão crítica e positiva. Não devemos aceitar a injustiça, mesmo que se saiba que nunca haverá um mundo justo, que nunca haverá um mundo solidário e totalmente livre. Temos de nos debater constantemente para corrigir as injustiças quer ao nível daqueles que nos estão perto quer ao nível da sociedade.

Quer dizer: deixar algum tipo de mensagem de esperança?
Não é bem de esperança. Acho que a esperança, como a fé, são coisas em que delegamos a responsabilidade porque não dependem de nós. Aliás, São Paulo dizia que das três virtudes – fé, esperança e amor – o amor era o mais importante. O amor no sentido da fraternidade, da solidariedade, a dádiva desinteressada e da compaixão, isso já depende de nós. Posso ter esperança que a vida me corra bem, posso ter fé que me vai acontecer alguma coisa, mas o que é importante é aquilo que depende de nós. Nós temos de ser melhores, mesmo quando não esperamos retorno. O amor tem de ser incondicional. Estou-me a referir ao sentido lato do termo e não no sentido romântico. O romantismo teve uma coisa terrível que foi confundir na expressão amor. Teve um efeito bastante perverso e negativo. Se há algum tema quase recorrente nos meus filmes, é de facto uma reflexão sobre esta ideia de que o romantismo meteu na palavra amor uma série de coisas que não são necessariamente compatíveis, ou que não coincidem com o amor. O sexo, o desejo, a paixão a conjugal idade são coisas diferentes e que às vezes até entram em conflito. A paixão, por exemplo, é uma coisa turbulenta e que, muitas vezes, conduz a qualquer coisa que pode ser o oposto do amor. Conduz ao ciúme ou ao crime.

FOTO: Sofia Mota

Traz a Macau três filmes: “Jaime”, “Os imortais” e “Os gatos também têm vertigens”. Como é que fez esta selecção?
Talvez porque são três filmes que ilustram bem a minha preocupação, sobretudo na segunda fase da minha obra. Os meus três primeiros filmes eram muito confidenciais em que o personagem principal era um pouco o meu alter-ego e reflectia muito as minhas preocupações pessoais em matéria de amor e não só. Nos outros filmes olho mais para fora de mim. São três filmes em que cada um, à sua maneira, fala de três realidades que me preocupam e que traduzem, em três épocas diferentes, as realidades do meu país. A exploração do trabalho infantil que aparece em “Jaime” é um assunto que me choca muito. “Os imortais”, porque fala de uma realidade que o cinema português fala muito pouco. Não é propriamente da guerra mas da ressaca da guerra colonial. “Os gatos também têm vertigens” foi escolhido porque tentou traduzir um sentimento que prevaleceu durante o período da chamada austeridade e da intervenção da Troika. Foi o período talvez mais negro da história da democracia portuguesa em que os portugueses foram castigados, sobretudo a classe média e os jovens. O filme não fala propriamente disso, mas dessa crise através de dois personagens que pertencem a duas gerações extremas, os idosos e os mais jovens, sobretudo aqueles que são marginalizados e que correm o risco de ficar fora da sociedade e enveredar pelo crime. Escolhi estes três filmes porque acho que traduzem bem aquilo que o meu cinema tenta ser: falar das coisas à minha volta.

Estamos no Oriente. Qual é a sua opinião do cinema que se faz aqui?
O cinema japonês foi talvez o cinema mais rico aqui no Oriente, durante muitos anos. Depois houve aqueles filmes do Bruce Lee, mas antes disso houve um grande cinema japonês que descobri nos anos 60 através de três grandes realizadores: Akira Kurosawa, Yasujiro Ozu e Kenji Mizoguchi. Há também uns filmes do Wong Kar-wai que gostei muito, mas não é uma cinematografia que conheça muito bem. Não chega a Portugal e o Wong Kar Wai foi talvez o realizador que mais me impressionou.

Tem sido muito crítico no que respeita ao financiamento do cinema e da ditadura do gosto.
Todo o cinema europeu, a partir dos anos 80, entrou em declínio. Sempre me preocupei em tentar perceber porque é que isso aconteceu e o que se podia fazer para travar este declínio. Em quase todos os países da Europa chegou-se à conclusão de que o Estado tinha de intervir, regulando o mercado, criando incentivos e inclusivamente financiando uma parte da produção. Em Portugal, em 1971, ainda em pleno regime marcelista foi criado um sistema que perdura até hoje no seu paradigma que é de que o Estado deve impor taxas – na altura às salas de cinema que eram quem lucrava com os filmes, mas hoje em dia a toda uma cadeia encarregue da comercialização dos filmes. A ideia que o Marcelo Caetano impôs com esta lei foi a de que as salas de cinema tinham de pagar uma percentagem dos seus negócios para financiar o cinema português, mas como era um regime de ditadura impôs-se que em vez de se criar um regime de obrigações como acontece noutros países, esses 15 por cento sobre os bilhetes fossem para um organismo criado pelo Estado onde um grupo de quatro ou cinco pessoas ía ler os argumentos e decidir que filmes é que eram autorizados. Este paradigma, paradoxalmente, manteve-se em democracia, ou seja, hoje em dia o Estado criou uma série de taxas e de obrigações, mas, na maioria dos casos, o grande suporte financeiro obtido por essas taxas vai para o Instituto de Cinema, que por sua vez escolhe cinco indivíduos que decidem o que é que dez milhões de portugueses devem ver. Isto é uma coisa com que não me conformo há 44 anos porque este instituto depende do Ministério da Cultura que arroga-se o direito de, com o dinheiro dos outros, escolher que filmes é que se devem fazer. Não imagino o Ministério da Cultura a decidir, cada ano, se deve escrever a Lídia Jorge ou o Lobo Antunes, ou quem deve compor música, se é o Jorge Palma ou o Sérgio Godinho. Somos o único país da Europa em que o Estado não investe directamente no cinema. Isto é tudo um completo absurdo que tem favorecido um cinema muito mais autista que o público não reconhece e que não vai ver.

Está a falar do cinema de autor?
É o que eles chamam de cinema de autor. Mas o cinema de autor não é isso. Hoje em dia criou-se esta ideia em Portugal: o cinema de autor é o cinema que não tem público e o que não tem público é o cinema comercial com os preconceitos que lhe estão inerentes. O cinema deve deixar um testemunho através do reconhecimento público, não há que ter medo do público.

Quais são os filmes da sua vida?
Isso é uma longa lista. Alguns grandes autores americanos: John Ford, Capra, Samuel Fuller foram realizadores que me marcaram para a vida. Depois há toda uma escola do cinema europeu nomeadamente a escola neo-realista. O meu autor preferido sempre foi o Rossellini. Em França, o Jean Renoir e mais tarde os autores da Nouvelle Vague. Os primeiros anos do Godard e do Truffaut. Alguns filmes do Polanski, por exemplo. O paradoxo é que hoje só se fala de cinema de autor e desapareceram os autores na Europa. O único que talvez sobrevive é talvez o Nanny Moretti. O próprio Almodovar deixou de ter interesse. Ele fez um retrato de uma época em que a Espanha mudou muito e ficou desfocado da realidade. Mas não vejo grandes autores na Europa, às vezes vejo bons filmes. A partir do momento em que os autores começaram a desprezar o público, deixaram espaço para muitos filmes que não têm alma, deixaram de dar oportunidade ao público para ver bons filmes. Ao contrario de muitos realizadores, há décadas para cá que os realizadores se sentem felizes por não ter público porque acham que a grande arte não é compreendida. Para mim isto é um contra-senso.

Que filmes lhe falta fazer?
Falta-me fazer muitos filmes, sobretudo aqueles que não fiz, mas quanto a isso já não há nada a fazer. Também não vou ter muito mais tempo para os fazer. Vou fazer mais dois ou três. Tenho 79 anos e apesar de me sentir em forma não posso fazer grandes planos para o futuro. Quero fazer um filme que se passa num lar de idosos, outro sobre os filhos de pais separados. Interessa-me a sensação de insegurança em que o mundo vive. Tenho alguns projectos e espero que os tais júris pensem que os meus filmes merecem ser feitos. Preocupa-me sobretudo as novas gerações e gostava que mudassem esta visão do cinema e a intervenção do Estado. Gostava que aparecesse uma geração que tem muitas coisas para dizer e que tenha um olhar diferente do meu. O meu é um olhar, apesar de tudo, marcado pela idade com tudo o que isso tem de bom mas também já moldado. É preciso ouvir as novas gerações que obviamente têm uma visão diferente do mundo.

Está há uns dias em Macau. O que tem a dizer?
É uma cidade estranha. É uma cidade onde floresceram os casinos. Tem um lado de Las Vegas, exuberante e muito artificial e há também marcas da presença portuguesa. É uma cidade de contrastes.

11 Jun 2018

Pelin Esmer | A cineasta de Istambul 

Pelin Esmer (1972, Istambul) estudou Antropologia e é uma conceituada realizadora turca, galardoada com vários prémios.

[dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]azes filmes documentários e filmes ficcionais, e és cineasta premiada em ambos. O que diferencia uns dos outros? Para mim, os teus filmes documentários não se diferenciam dos filmes ficcionais.
Há vários tipos de filmes documentários, de facto. Hoje o filme documentário já não se restringe a sua função informativa, embora ainda seja assim que a maioria das pessoas entendem o documentário. O que faz com que os meus filmes documentários não sejam filmes ficcionais, mas filmes documentários, é que os personagens são reais. Se eu não filmasse aquelas pessoas, ainda assim elas continuavam vivas e a terem a mesma vida que eu retrato. Este é, para mim, o argumento maior para dizer que os meus filmes documentários são filmes documentários e não filmes ficcionais. Evidentemente, os meus filmes documentários não são filmes informativos, não tem essa missão, como por exemplo os filmes documentários que se pode assistir em vários canais da TV cabo. Mas o que hoje em dia determina a diferença entre o ficcional e o documentário é precisamente a não criação de uma realidade. Eu não crio uma realidade nos meus filmes. A realidade já existe, mesmo que eu a não filme; mesmo que eu não existisse.

Nos teus filmes ficcionais não crias uma realidade, mas crias um modo de ver. Se preferires, mostras o que estava escondido.
Isso, sim. Pelo menos, é o que pretendo fazer com os meus filmes documentários. Pretendo mostrar sentimentos e condições das estruturas do humano que muitas vezes nos estão vedadas no nosso quotidiano. Por outro lado, mais do que dar respostas, os meus filmes são modos de fazer perguntas.

E essa é precisamente a razão pela qual eu julgo os teus filmes, a que chamas de documentários, como não documentários.
Entendo, mas não posso esquecer que a existência dos meus personagens não dependem da minha criação ou da criação de um escritor, eles existem. Há ainda uma outra diferença, que faz com que esses meus filmes sejam determinantemente filmes documentários: nos filmes de ficção, primeiro escreve-se o roteiro (script) e só depois se filma; no modo como trabalho o documentário há apenas um roteiro imaginado por mim, que é mais uma espécie de índice do que um roteiro, e quando vou filmar não forço a realidade que vou filmar para que actue de acordo com o meu roteiro imaginário. Só escrevo o roteiro no final, depois de ter tudo filmado, na montagem e usando o material filmado, isto é, usando o real e não o imaginário.

Depois de Oyun (A Peça de Teatro), que saiu em 2005, nunca mais filmaste documentários. E Koleksiyoncu (O Coleccionador), o teu primeiro filme, saira em 2002. Quer isso dizer que abandonaste os filmes documentários e que eles foram apenas um modo de chegar ao filmes de ficção, 11’e 10 kala (Das 10 às 11), em 2009, Gözetleme Kulesi (A Torre de Vigia), em 2012 e mais recentemente Ise yarar bir sey (Uma Coisa Útil), em 2017?
Não, de maneira nenhuma. Não deixarei de filmar documentários, aliás estou neste preciso momento a filmar um novo documentário, fora de Istambul, e nem vejo este tipo de filmes como algo para chegar aos filmes de ficção. Não penso que o filme documentário seja inferior ou superior ao filme de ficção. Fiz filmes de ficção, porque há já um tempo que tinha a ideia de os fazer. Agora, que encontrei novamente um bom assunto para fazer um documentário, regresso a esse tipo de filme. O que me interessa não é o filme documentário ou o filme de ficção, o que me interessa é o filme. Se existir algum personagem ou alguma história reais que me interessem bastante, filmo como documentário; se encontrar histórias ou personagens, quer seja eu que invente ou quer sejam outros que inventem, e que me interessem, filmo como ficção. Para além das questões técnicas, que não podem ser esquecidas, não faço distinções entre filmes documentários e filmes de ficção. Interessa-me fazer filmes.

E o que é isso “fazer filmes”?
Para mim, fazer filmes é fazer perguntas. Só faz sentido fazer um filme se tiver uma pergunta para fazer. Mas essa pergunta não vem apenas em palavras, já que se trata de usar uma câmara que capta imagens e sons. Posso até fazer essa pergunta ou perguntas sem qualquer palavra, ou com muito poucas palavras, mas sem imagens não será nunca um filme.

Depois de tantos prémios internacionais e nacionais, e em especial o de Tribeca, em Nova Iorque, que foi entregue pelo próprio director do festival, Robert de Niro, que mudou na tua vida profissional?
Deu mais visibilidade ao meu trabalho, mais oportunidades de encontrar outros directores e actores. Por outro lado, tornou-se um pouco mais fácil arranjar dinheiro para os outros filmes. E, também por causa disso, desse primeiro prémio em Tribeca, Oyun foi o primeiro filme documentário turco a ser exibido nos cinemas comerciais na Turquia.

Podes adiantar algo acerca deste novo filme documentário que estás a filmar?
Há 14 anos filmei “A Peça de Teatro”, que era um filme acerca de um grupo de mulheres numa aldeia no leste da Turquia, que resolveram fazer uma peça de teatro e com isso falar dos seus maridos, como elas os viam. A sociedade nestes lugares é demasiado fechada e esta peça constituí uma verdadeira revolução na aldeia e, por causa do filme, na sociedade turca. Agora regressei à aldeia e estou a filmar uma digressão que eles foram convidadas a fazer, por toda a região de Mersin. Por exemplo, amanhã elas irão actuar nas montanhas, para os nómadas.

Estás familiarizada com o cinema português ou brasileiro?
Do cinema português, do que conheço, o que mais me interessa são os filmes de João Rodrigues e o Tabu, de Miguel Gomes. Mas não conheço assim tanto dos novos realizadores. Quanto ao Brasil, embora não possa dizer que estou familiarizada, conheço alguns filmes. Gostei muito de Cidade de Deus, os filmes documentários de Eduardo Coutinho, o documentário Ônibus 174, o Estamira, de Marcos Prado, o Che Guevara e a Central do Brasil, de Walter Salles. Haverá mais que me estarei a esquecer… De resto, é muito difícil os bons filmes, que não tenham uma grande produtora, chegarem às salas de cinema, seja onde for. Esse é o problema do cinema, hoje, em qualquer parte do mundo.

Excerto de Gözetleme Kulesi (A Torre de Vigia)
31 Jul 2017

Entrevista | Cláudia Varejão, realizadora

O filme “Ama-San”, da realizadora portuguesa Cláudia Varejão, integra o ciclo que está a decorrer na Cinemateca Paixão, dedicado ao cinema documental. O interesse pelo Oriente vem de longe. A produção dedicada às “amas”, mulheres mergulhadoras japonesas, já foi galardoada em vários festivais e é um momento de encontro entre a cineasta e este lado do mundo

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]omo é que apareceu a ideia de fazer “Ama-San”?
Tive conhecimento destas comunidades de mulheres mergulhadoras em 2012, ao ler um livro de poesia de uma amiga, onde encontrei uma referência aos seus corpos que partiam à procura de pérolas, nas zonas costeiras do Japão. Na altura, não sabendo se era uma imagem ficcionada pela autora, comecei a pesquisar. Impressionou-me muito o que fui encontrando, desde a existência desta prática, que tem cerca de dois mil anos de existência, à bravura destas mulheres que arriscavam as vidas num trabalho tão duro. Estamos a falar de um contexto patriarcal, absolutamente dominado pelo poder dos homens e onde estas mulheres, muitas vezes, são o elemento estrutural na economia da família. Preocupou-me também que estivesse diante de uma tradição em vias de extinção. Ao longo do processo, tive a sorte de me fazer acompanhar de pessoas que acreditaram na minha vontade e capacidade de fazer este filme. Recebi uma bolsa da Fundação Oriente de Lisboa para fazer uma primeira viagem ao Japão, onde fiz um levantamento fotográfico de algumas vilas piscatórias onde as “amas” mergulham. Foi nesse período que conheci Wagu, a vila onde mais tarde viria a filmar. Na segunda viagem, em 2014, trabalhei exclusivamente no filme. Contei com a produção da Terratreme Filmes em Portugal, a Pillow Films no Japão e o apoio financeiro do Instituto do Cinema. Para finalizar o filme, contámos com a co-produção com a suíça Mira Film e apoio financeiro da televisão suíça. O Oriente em geral e o Japão em concreto sempre fizeram parte dos meus interesses culturais e até de vivência quotidiana. Não é inocente portanto o meu interesse pelas “amas”.

Além da experiência cinematográfica, foi uma experiência pessoal? 
Sim. Procuro um cinema com fortes laços na realidade, na vida que se move diante dos meus olhos. Geralmente, quando filmo, crio fortes laços de afecto com as pessoas. Desde as pessoas que estão diante da câmara, passando por todas as que estão em redor e as que me acompanham depois, na fase mais isolada de pós-produção. Neste filme criei um laço que me é muito querido com uma das “amas”, a que corresponde à geração do meio, a Mayumi. Foi ela que me ajudou a concretizar muitas das cenas que desejei filmar. Houve um entendimento muito bonito, muito maternal da parte dela para comigo, que se transformou dentro de mim num agradecimento profundo. Ainda hoje, à distância, trocamos mensagens por telefone. Não são escritas por causa da língua, trocamos fotografias semanalmente uma com a outra. Para o público, o que fica, são os filmes. Para nós, que os fazemos, o que nos fica são as memórias, mas sobretudo as relações que criamos para o resto da vida.

Existiram algumas dificuldades específicas na produção deste filme?
Não tenho propriamente um método para encontrar o meu cinema. Há muitas ferramentas de trabalho que ainda estou a descobrir e a explorar. Em nada muda a minha aproximação à realidade ou à ficção. Eventualmente, apenas a constituição da equipa com quem trabalho. Mas o meu olhar e a forma como o dirijo a quem está diante de mim são sempre os mesmos. Nesse sentido, é possível que se confundam os géneros nos meus filmes. Em verdade, parece-me que a catalogação do género é um conceito criado para o mercado de distribuição e de exibição em festivais e salas. Nós, realizadores, somos mais livres internamente se pensarmos menos isso. Não preparei absolutamente nada com as “amas”, em termos de cenas e narrativas, antes de filmar. O que foi acontecendo foi sendo filmado com a cadência da realidade, do quotidiano, da relação que íamos estabelecendo entre nós e moldado pelo meu olhar com a câmara. Muito pontualmente, repetiu-se alguma cena. Mas pouco. Depois, houve a incompreensão da língua, para ambos os lados. Filmar num contexto em que não se domina o nosso mais seguro cartão-de-visita, a palavra, exige a criação e recriação dos modelos em que estamos habituados a trabalhar e a comunicar. No caso deste filme, o facto de não dominar o japonês, acabou por resultar a favor do próprio filme: deu-lhe uma determinada intimidade. Falava sempre através da minha assistente de realização, a Aya Koretzky, que ia traduzindo aquilo que eu precisava. Por isso mesmo, quando filmava, as “amas” ignoravam a minha presença pois sabiam que não iriam falar directamente comigo. E talvez isso resulte no tal olhar íntimo que se atribui ao filme, na naturalidade dos gestos.

É um filme que tem sido destacado um pouco por todo o lado. Mais um trunfo para o cinema português?
O filme tem tido um percurso muito fluido no circuito de festivais, com alguns prémios que nos têm deixado a todos felizes. A força que atravessa a vida destas mulheres tem dado que falar. Motiva as pessoas a irem ver o filme e cria um discurso após as sessões. Quer dizer que qualquer coisa no mundo está a mudar. As consciências estão a criar raízes mais profundas, o olhar está mais livre, menos submisso às ideias que carregamos de um passado profundamente desequilibrado para as questões de género. Os estereótipos estão, lentamente, a cair. A curiosidade do público tem enchido as projecções nos festivais e a estreia comercial em Portugal foi um sucesso de bilheteira, tendo em conta o tipo de filme: é de baixo orçamento e é documental. Por todo esse retorno e reconhecimento pelo trabalho da equipa, mas sobretudo pelas “amas”, eu fico feliz. Gostava que a vida das “amas” ecoasse nas nossas próprias vidas, que nos fizesse sentir mais do que pensar. Estas mulheres viraram do avesso a própria sociedade japonesa. São um caso raro, não só no Japão mas em todo o mundo, em que as mulheres conseguiram anular uma série de estereótipos associados à feminilidade. As “amas” conquistaram a sua liberdade através do amor e força, pelo mar, pelas suas famílias, pela vida. São a poesia, mas é ainda mais, tudo verdade.

O que falta à indústria portuguesa para que se possa desenvolver e internacionalizar?
Portugal não tem uma indústria de cinema. Portugal é dos países europeus com maior dificuldade em produzir os seus próprios filmes. A única fonte de financiamento dentro do nosso país é o Estado português que, através da lei do cinema, cobra uma taxa às operadoras que depois reverte para os cofres do Instituto do Cinema e Audiovisual. Esta é a única verba disponível localmente. E, como é fácil de imaginar, o dinheiro não chega para alimentar nem um terço do potencial que temos no nosso país. Grande parte dos filmes produzidos actualmente recorre a co-produções internacionais, um pouco por todo o mundo. Vivemos com muita dificuldade. Há uma linha imensa de profissionais no cinema, desde produtores, realizadores, técnicos, distribuidores, festivais de cinema, que vivem permanentemente a fazer omeletas sem ovos. O trabalho é extremamente subvalorizado e precário. Somos um grupo de loucos alimentados quase só pela nossa fé e prazer. Para as novas gerações o estrangulamento é uma barreira bruta para darem início aos seus filmes. Ao cinema, e a toda a cultura que se produz em Portugal, falta investimento, estratégia, visão, e responsabilidade do Governo. Vivemos subfinanciados há muitos anos. É assustador que não se aprenda com os erros cometidos no passado. Os cortes no sector são permanentes. Cultura é produção de saber e, por sua vez, crescimento de uma sociedade. É a nossa mais preciosa herança. Sem memória não somos nada. Não posso naturalmente exigir o mesmo financiamento para a cultura e para a saúde. São necessidades de uma ordem muito distinta. As doenças culturais não são visíveis da mesma forma que o nosso corpo se expressa. São doenças que, por exemplo, se reconhecem na forma como as cidades crescem. Estão à nossa volta se as quisermos ver. E enquanto não existir esta consciência generalizada, continuaremos a viver, no sector da cultura, desamparados e a levar as nossas próprias energias ao limite. Para rematar este discurso triste, ainda que necessário, devo dizer que o cinema português está em grande forma. Aliás, sempre esteve. Temos autores com uma obra extraordinária, que são reconhecidos dentro e fora do nosso país e cujo os prémios que permanentemente lhes são atribuídos enchem de orgulho o público em geral. É, para mim, quase comovente que se consiga caminhar tanto e tão longe quando o corpo está permanentemente a ser impedido. Maior sinal de que o cinema que produzimos é dos mais ricos do mundo parece-me impossível. E a ideia de que o público português não vê o seu própria cinema é um boato mal contado. Por exemplo, os números de espectadores que o “Ama-San” tem feito em sala revelam um público muito curioso e participativo. Maior sinal de vitalidade é impossível. Só falta mesmo que olhar dos nossos políticos se encontre com a realidade. Entretanto, nós continuamos, individualmente mas unidos, a cuidar do cinema.

O que é que a impressionou deste lado do mundo? 
O Oriente é, de facto, um mundo específico dentro do nosso mundo. Muito se aprende na diferença. Mas o ser humano é sempre o mesmo. É aí que reside o meu fascínio e o meu olhar: na total diversidade humana que converge num só.

20 Jul 2017

Licínio de Azevedo, realizador | Uma vida a contar estórias

Licínio de Azevedo, nome maior do cinema moçambicano, fez uma transição suave do jornalismo para o cinema. Os seus filmes contam estórias de dor e profundo humanismo, e estão em exibição, até quinta-feira, na Fundação Rui Cunha, num ciclo organizado pela Associação dos Amigos de Moçambique

[dropcap]C[/dropcap]omo é que passou do jornalismo para o cinema?
Foi bastante natural. No Brasil, fazia um tipo de jornalismo diferente, baseado no novo jornalismo norte-americano, muito influenciado por John Reed, que escreveu “Os Dois Dias que Abalaram o Mundo”, “México Rebelde”, e o próprio Garcia Marquez que, antes de ser escritor, trabalhou na Venezuela como jornalista. Os textos dele já eram contos, eram estórias, não era aquele jornalismo objectivo. Procurava fazer algo assim, contar uma estória. Viajava muito pela América Latina, publicava na imprensa independente da época, nos jornais de oposição ao Governo militar. Fiz reportagens sobre os mineiros na Bolívia e coisas assim, mas sempre com uma estória, com personagens e tudo isso. Entrei pelo cinema através da escrita, com essa ligação do jornalismo com a literatura, e nem me interessava em fazer cinema, o que queria mesmo era escrever. Depois, em 1976, estive na Guiné Bissau e recolhi muitas estórias sobre a guerra da independência. Fiz entrevistas a combatentes, a camponeses, e publiquei um livro no Brasil com esse estilo, baseado nas entrevistas, mas mais literário. Entretanto, o Ruy Guerra, um cineasta brasileiro famoso, convidou-me para ir para Moçambique em 1977 para ajudar à criação do Instituto Nacional de Cinema. Era a primeira instituição cultural criada pelo Governo pós-independência. Eles apostavam muito na força da imagem para a criação da unidade, porque o povo falava várias línguas e tinha um nível de analfabetismo muito grande. O cinema era um instrumento de comunicação mais forte que a escrita.

Como foi a sua chegada a Moçambique?
Fui directo para as antigas zonas libertadas do norte do país e fiquei alguns meses recolhendo estórias que foram publicadas, inicialmente, em formato de livro. “Relatos do Povo Armado” são dois volumes com 30 e tal estórias que serviram de base para a primeira longa-metragem de ficção moçambicana, “O Tempo dos Leopardos”. O filme foi realizado por um jugoslavo porque, na época, não havia cineastas moçambicanos. Em Moçambique os documentários eram muito formais, filmávamos e eu escrevia os guiões e as partes de voz off. Só uns dez anos depois é que comecei a realizar, já em meados dos anos 80, mantendo ainda alguma ligação com o jornalismo. De vez em quando ainda enviava alguma reportagem mas, aos poucos, comecei a fazer cinema e achei que valia a pena.

Como entra na ficção?
Comecei a fazer pequenas experiências em vídeo, com narrativas diferentes em curtas-metragens. O primeiro filme grande que fiz, uma produção independente, foi uma ficção, “A Colheita do Diabo”. Depois disso, o meu lado de jornalista ganhou preponderância novamente e passei muitos anos a fazer só documentários, sempre com uma linguagem pouco tradicional. Fazia a pesquisa e um guião usando os elementos narrativos da ficção.

O que aprendeu com o contacto que teve com Jean-Luc Godard?
Tínhamos grandes discussões teóricas sobre linguagem, assim como algumas regras básicas de cinema. Ele dizia que o cinema era contabilidade, que o grande exercício seria filmar um minutos e montar três, aquelas maluquices do Godard. São coisas que nos ficam na cabeça. Além disso, foi a primeira pessoa que chegou a Moçambique com uma câmara de vídeo quando, na época, a grande opção era a 16mm, enquanto as produções maiores eram 35mm. Foi através do Godard que se introduziu o vídeo em Moçambique e, graças a ele, nunca fiz um filme em película e ainda bem. Mas ele nunca filmou em Moçambique, assim como o Ruy Guerra, tinham projectos grandes, mas o problema dos cineastas é que são muito individualistas. Como já eram estrelas, entraram em confronto com a instituição revolucionária que tinha uma visão mais colectivista. Então, as coisas não funcionaram bem para nenhum deles.

Como compara o cinema e o jornalismo em termos de intervenção social?
A criação do Instituto Nacional de Cinema era um organismo educativo de informação, um instrumento político. Isso continua até hoje, fazemos muitos pequenos filmes institucionais, educativos, que é algo que me dá muito prazer porque me faz viajar pelo país inteiro. Apesar de serem institucionais, tenho liberdade total para escolher a forma como passar a mensagem, seja sobre educação, saúde ou agricultura. Cheguei até a fazer um filme mudo, de meia hora, sobre a água dos poços, porque em Moçambique há várias línguas diferentes.

Apesar de filmados em África os seus filmes têm projecção internacional.
Moçambique passou por várias fases diferentes. Independência, euforia e depois veio o começo da guerra com a agressão rodesiana, de seguida o começo da guerra civil, que destruiu completamente o país. Depois o retorno dos refugiados, a reconstrução e o recomeço da guerra. Tudo isso levou-me a pensar em temas actuais, sendo que o cinema também passou a ter outra função bastante forte, que foi transmitir durante a guerra toda essa informação para públicos de outros países. Trabalhei muito com a ZDF, a BBC, Channel 4, com televisões francesas. Agora perderam um pouco o interesse porque há conflitos por todo o lado, o mundo está a arder completamente e há mais dificuldade em conseguir fundos. Hoje para fazer documentário em Moçambique é algo de uma dificuldade terrível, porque o interesse das televisões está muito disperso por todo o lado. Há a Síria, o Iraque, a Líbia e as Primaveras que se transformam em Invernos. É mais difícil para mim, por incrível que pareça, conseguir financiamento para documentários do que para ficção, apesar do documentário ser bem mais barato.

Qual foi o passo fundamental para entrar definitivamente na ficção?
“Desobediência” foi a transição. Fiz pequenas experiências de ficção nos anos 80, mas parei para fazer só documentário, contando uma estória onde os personagens agiam diante da câmara. O filme “Desobediência” nasceu quando vi uma pequena notícia no jornal. No centro do país, num sítio completamente isolado onde as pessoas não tinha televisão, um homem suicidou-se porque a mulher era desobediente, o que achei completamente absurdo. Com tanta mulher bonita no mundo vai suicidar-se porque a mulher não obedece? Fui para lá e encontrei uma estória completamente diferente, que me obrigou a fazer um filme diferente, onde as pessoas reproduziram tudo aquilo que aconteceu. Há um tabu, do tipo Electra ou Édipo, ao género das tragédias gregas, em que gémeos não podem fazer amor com a mesma mulher. O homem que se suicidou fez amor com a esposa do irmão gémeo. Os espíritos começaram a agir dentro dele, as pessoas acreditam nisso, e ele matou-se. Para não revelarem esse segredo culparam a viúva de desobediência. Digo que foi uma transição porque as pessoas não tinham televisão, nunca tinham visto um filme e, então, aproveitaram aquela oportunidade para provarem que tinha razão. Ou seja, que a mulher era, realmente, desobediente. Consultaram um curandeiro, houve muitas agressões que quase resultaram em morte. Inscrevi este filme do Festival de Biarritz na área de documentário e foi rejeitado. Acabou por concorrer como ficção. Enfim, ganhou o prémio de melhor ficção, um filme feito com 100 mil euros, que concorreu com ficções de 10 milhões e 15 milhões de euros. Passa amanhã às 18h30 na Fundação Rui Cunha.

Qual a estória por detrás do filme “Virgem Margarida”?

© Ricardo Rangel
O grande fotógrafo moçambicano Ricardo Rangel mostrou-me uma fotografia a que ele chamou “A última prostituta”. A foto era do tempo depois da independência, e tinha dois militares da guerrilha a escoltar uma prostituta para ser enviada para os centros de reeducação no norte do país, no meio da selva. Estes centros eram na realidade campos de concentração. Isto era algo que fazia parte de um processo maluco que era a criação do homem novo, cheio de boas intenções, mas que acabou em tragédia com a morte de centenas de mulheres. Inspirado nessa fotografia, fiz um documentário bem tradicional. Entrevistei senhoras que foram “reeducadas”, antigas prostitutas e as chefes guerrilheiras desses centros, que eram de trabalhos forçados. E uma delas contou-me uma estória de um minuto, que aparece no filme, sobre uma jovem que foi com ela para lá. Era uma adolescente camponesa, de 15 anos, que não tinha bilhete de identidade. Tinha ido à cidade comprar o enxoval para o casamento e foi considerada prostituta por não ter identificação. Uma estória que foi contada num minuto deu uma ficção de longa-metragem. O documentário serviu-me de pesquisa para escrever o guião do “Virgem Margarida”, e criei uma estória em torno daquele centro de reeducação, onde uma das personagens principais é essa jovem virgem. Coloquei elementos ficcionais, ela é violada e suicida-se. O filme saiu há quatro anos e venceu três prémios internacionais.

Como está a ser a aceitação do seu último filme?
“O Comboio do Sal e Açúcar” é um filme com co-produção portuguesa da Ukbar Filmes, e está a ser lançado com enorme sucesso. Ganhou o prémio no Festival de Locarno, onde passou na Piazza Grande para 4500 pessoas. Ganhou o melhor filme do Festival de Joanesburgo, e no Cairo ganhei o prémio de melhor realizador. O filme está a ter grande aceitação, foi convidado para 18 países diferentes, e com muitas possibilidades de sair em salas até na Turquia. Ou seja, nem consigo mais pensar em projectos de documentário, porque tudo é mais demorado. Tenho três projectos de ficção e um deles está bem encaminhado, rapidamente consigo financiamento.

O que nos pode adiantar do próximo projecto?
É um filme baseado num livro de um escritor brasileiro, Altair Maia, que é praticamente um guião. Li-o e apaixonei-me. O livro chama-se “Tributo a Jonathan Makeba”, que é um líder comunitário, mas também um homem de negócios do Burkina Faso, uma personagem real. Ele tinha um negócio de fosfatos para adubos, entre o Niger e o Burkina Faso. Makeba desenvolveu um projecto a pensar nas comunidades desses dois países, e criou milhares de empregos. Cerca de 25 por cento do investimento que vinha do estrangeiro ia para contas bancárias de líderes e não sobrava nada para a população. Neste filme falo da corrupção como um problema actual em África, Moçambique, Angola, em quase todos os países africanos. Aliás, é por isso que as pessoas ficam presas ao poder, como por exemplo, agora, na Gâmbia. O filme é muito actual, mas ainda é um projecto, ainda não rodei mas já tenho produtoras interessadas.

TRAILER DE “O Comboio do Sal e Açúcar”

25 Jan 2017