Os Prémios Nobel e as alterações climáticas

Foram recentemente laureados com o Prémio Nobel da Física 2021 três eminentes cientistas intimamente ligados à investigação sobre as alterações climáticas: Klaus Hasselmann, Syukuro Manabe e Giorgio Parisi.

Este ano o prémio incidiu sobre o ramo da física que trata de sistemas físicos complexos e, sendo o clima um sistema deste tipo, é natural que as alterações climáticas fossem alvo da atenção da Academia Real Sueca das Ciências, contribuindo, assim, para chamar a atenção para a degradação do clima, nas vésperas da 26ª Conferência das Partes (COP26) da Convenção-Quadro sobre as Alterações Climáticas das Nações Unidas , que está a decorrer em Glasgow entre 31 de outubro e 12 de novembro. Metade do prémio foi atribuído conjuntamente a Klaus Hasselmann e Syukuro Manabe, pela contribuição de ambos para a modelação física do clima da Terra, o que permitiu quantificar a sua variabilidade e prever o aquecimento global de forma fiável.

A outra metade foi atribuída a Giorgio Parisi pela descoberta da interação da desordem e flutuações em sistemas físicos da escala atómica à escala planetária.

Klaus Hasselmann, oceanógrafo alemão, natural de Hamburgo e nascido em 1931, é professor no Instituto alemão de Meteorologia Max Planck. Referindo-se ao problema das alterações climáticas, tem vindo a realçar que o principal obstáculo à sua resolução consiste no facto de os decisores políticos e o público não estarem cientes que é solúvel, bastando para isso utilizar tecnologias já existentes e investir na inovação em novas tecnologias no sentido de reduzir significativamente as emissões de dióxido de carbono por parte dos humanos. Numa entrevista publicada em 1988, já Hasselmann avisava que, dentro de 30 a 100 anos, o nosso planeta enfrentaria alterações do clima muito significativas.

Syukuro Manabe, meteorologista e climatologista nipo-estadunidense, nasceu em 1931, em Shingu (Japão). Emigrou muito novo para os EUA, onde desenvolveu a sua atividade profissional na Universidade de Princeton, sendo autor de trabalhos que demonstram que o aumento da concentração do dióxido de carbono na atmosfera causada pelas atividades humanas é a principal causa do aquecimento global. Contribuiu grandemente para o desenvolvimento do primeiro modelo climático que permitiu antever a evolução da temperatura e o comportamento do ciclo hidrológico em função do aumento da concentração do dióxido de carbono na atmosfera. De acordo com Manabe, a atribuição deste prémio deu a si e aos outros dois modeladores do clima a credibilidade e o reconhecimento que sempre desejaram. Ambos contribuíram para o primeiro (AR1) e terceiro (AR3) Relatórios de Avaliação do IPCC sobre o estado do clima, em 1990 e 2001, respetivamente, e Hasselmann também contribuiu para o segundo Relatório de Avaliação (AR2), em 1995.

Giorgio Parisi, físico italiano, nascido em Roma em 1948, é professor de Teorias Quânticas na Universidade de Roma “La Sapienza”. Desenvolveu trabalhos revolucionários na área da teoria de sistemas complexos que contribuíram para melhor compreender a evolução temporal do sistema climático. Parisi declarou recentemente, numa conferência de imprensa, que a atribuição do prémio é importante não só para ele, mas também para os outros dois laureados, na medida em que as alterações climáticas são uma grande ameaça para a humanidade e é extremamente importante que os governos ajam com determinação o mais rapidamente possível.

Não é a primeira vez que o Prémio Nobel á atribuído a personalidades relacionadas com as alterações climáticas. Em 2007, o Prémio Nobel da Paz foi atribuído conjuntamente a Albert Arnold Jr (Al Gore), que havia sido Vice-Presidente dos Estados Unidos da América de 1993 a 2001, e ao IPCC pelos esforços no sentido de aprofundar e disseminar um maior conhecimento sobre as alterações climáticas devidas a atividades antropogénicas.

Muito antes, em 1903, o prémio Nobel da Química foi atribuído ao físico-químico sueco Svante Arrhenius (1859-1927), não por atividades relacionadas com o clima, mas em reconhecimento dos serviços prestados ao avanço da química através dos seus trabalhos sobre a dissociação eletrolítica. No entanto, embora não fosse essa a razão da atribuição do prémio, Arrehnius já havia chamado a atenção para o facto de que o aumento da concentração de dióxido de carbono implicaria o aumento da temperatura da Terra.

Os prémios Nobel nem sempre beneficiaram da aprovação unânime da sociedade. Certamente os negacionistas não terão apreciado esta escolha da Academia Real Sueca das Ciências. Políticos como Bolsonaro e Trump muito provavelmente não terão concordado com a seleção dos laureados. Ambos têm sido responsáveis pela degradação do ambiente, não só nos respetivos países, mas também à escala global. Bolsonaro, alterando a legislação que impedia a exploração desenfreada dos recursos mineiros e florestais da Amazónia, demitindo personalidades das suas funções, como por exemplo Ricardo Galvão, Diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), pelo facto de ter divulgado dados sobre a desflorestação da Amazónia. Trump ficou bem conhecido por negar as alterações climáticas, retirando os EUA do Acordo de Paris, proibindo instituições americanas (como por exemplo a NOAA ) de empregarem expressões com “alterações climáticas” e “aquecimento global”, colocando à sua frente personalidades negacionistas.

Seria um desastre se as ideias (ou ausência delas) de Bolsonaro e de Trump singrassem à escala global. Este último já foi apeado do poder, mas ainda permanecem numerosos admiradores seus que poderão fazer com que volte à presidência dos EUA. Espera-se que, para bem da humanidade, o atual presidente do Brasil perca rapidamente as rédeas do poder no seu país, através de impeachment, ou das próximas eleições em 2022.

A Academia Real Sueca das Ciências selecionou, algumas vezes, personalidades cujo comportamento posterior à atribuição dos prémios veio mostrar que não eram merecedores destes. Assim, por exemplo, o antigo Secretário de Estado dos EUA, Henry Kissinger, foi laureado com o prémio Nobel da Paz 1973 (conjuntamente com Le Duc Tho), pelas suas diligências no sentido da concretização do acordo de cessar-fogo na Guerra do Vietname. Nesse mesmo ano foi um dos promotores do golpe de Augusto Pinochet contra o presidente Salvador Allende, democraticamente eleito pelo povo chileno. Esse golpe, que culminou com a tomada do poder pela extrema-direita chilena, deu origem a um regime de terror que perdurou até 1990. Kissinger, em 1975, também foi figura proeminente no apoio político à invasão de Timor. Foi um dos promotores da Operação Condor, iniciada em 1975 sob os auspícios da CIA , que consistiu numa campanha clandestina de repressão e terror de Estado, organizada pelas ditaduras da Argentina, Chile, Uruguai, Paraguai, Bolívia, Brasil e, embora menos ativamente, do Equador e Peru.

Também Aung San Suu Kyi, líder da oposição ao regime militar que governava o Mianmar desde 1962, a quem foi atribuído o Prémio Nobel da Paz de 1991 pela sua luta não violenta pela democracia e pelos direitos humanos, foi mais tarde acusada de não denunciar as atrocidades perpetradas pelos militares contra a minoria étnica Rohingya. Na sequência das eleições gerais de 2015, em que o seu partido foi vencedor, Suu Kyi era considerada a figura mais influente do governo de Mianmar, desempenhando o cargo de Chanceler e de Primeira Conselheira de Estado, o que lhe permitiria exercer ação moderadora sobre os militares.

Há ainda a considerar a atribuição do Prémio Nobel da Paz 2019 ao primeiro-ministro etíope Abiy Ahmed Ali pelos seus esforços para a paz e a cooperação internacional, principalmente no que se refere aos acordos de paz com a Eritreia. Mais uma vez, o prémio foi atribuído a uma personalidade controversa, na medida em que a sua ação, desde o despoletar da Guerra do Tigré, em novembro de 2020, entre as autoridades regionais da região do Tigré e o governo federal, tem sido muito criticada pela ONU e Amnistia Internacional. Segundo investigações levadas a cabo por estas duas organizações, ocorreram graves violações e abusos dos direitos humanos perpetrados pelas tropas etíopes, nomeadamente no que se refere à repressão dos dissidentes de Tigré, onde tem ocorrido forte repressão através de atos que podem ser considerados crimes de guerra.

A atribuição do Prémio Nobel da Física 2021 a cientistas envolvidos no estudo das alterações climáticas, pouco tempo antes da 26ª cimeira da ONU sobre o clima, poderá contribuir para dar maior urgência às decisões a serem tomadas no sentido do cumprimento do Acordo de Paris, ou seja, para que os decisores políticos ajam prontamente no sentido de que o aumento da temperatura média a nível global não atinja 2 ºC, de preferência inferior a 1,5 ºC, em relação aos níveis pré-industriais.

4 Nov 2021

Morreu o Nobel de Química japonês Osamu Shimomura

[dropcap]O[/dropcap] químico e biólogo marinho japonês Osamu Shimomura, vencedor do Prémio Nobel de Química em 2008, morreu aos 90 anos de causas naturais, informou hoje a Universidade de Nagasaki.

Shimomura venceu o prémio Nobel de Química em 2008 com os cientistas norte-americanos Martin Chalfie e Roger Tsien pela descoberta e desenvolvimento de uma proteína verde fluorescente a partir dos órgãos fotoluminescentes da medusa ‘Aequorea victoria’, que contribuiu para os estudos sobre o cancro.

O premiado Nobel de Química nasceu em Kyoto a 27 de agosto de 1928 e estudou em Nagasaki, cidade japonesa onde faleceu na sexta-feira, tendo sobrevivido ao bombardeamento atómico de 9 de Agosto de 1945.

Depois de se ter licenciado em química em 1951, mudou-se para a Universidade de Princeton, onde encontrou a proteína a partir de dez mil amostras de medusas na Costa Oeste dos Estados Unidos, uma descoberta revolucionária na área da saúde.

A descoberta permitiu criar uma ferramenta que os investigadores utilizam para rastrear o movimento de moléculas dentro de uma célula.

22 Out 2018

Sobre o medo, a violação e o Nobel

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]stou honestamente cansada. Estou cansada de ver o mundo nos meus olhos de mulher, que podiam ser uns olhos quaisquer. Cansada da forma leviana como se nomeiam putas. Cansada de tocar a cassete, rebobinar e tocar a cassete de novo. Cansada de ter medo que este mundo esteja a trnasformar-se de forma dramática e que a humanidade que outrora julgava garantida, é afinal altamente contestada. E este cansaço destrói o espírito, o desejo ou a esperança. Pelo menos destrói-me um pouquinho de cada vez. Nem o Nobel pela Paz me trouxe conforto.

Mas eu admito a culpa, como já admiti antes. Admito a minha pouca tolerância em perceber como é que as mulheres são sempre as culpadas e manipuladoras em casos de violação, como é que a cultura do estupro é banalizada, de como discursos machistas, homofóbicos e racistas são apoiados pelas massas. A culpa também é minha, mas não entendo se foi a minha inactividade política ou a minha rejeição ideológica. Não é uma dificuldade particularmente minha, leia-se, as comunidades intelectuais foram apanhadas de surpresa também. Aquelas elites que passam o tempo a pensar nestas coisas estão na dúvida sobre o que é que está a correr mal neste mundo.

A primeira assumpção é de que a ignorância impera. Ignorância face aos factos e a ausência de uma educação formal acerca de como funciona a sociedade, a política ou o sexo! – não estava a brincar quando escrevi na semana passada que o que falta é mais e melhor educação sexual e de género nas instituições formais de educação e não só – mas o problema do argumento ‘falta de educação’ é que é condescendente. E quem é que gosta de condescendência? Ninguém, porque assim que alguém assume a ignorância do outro, mais cedo ou mais tarde este outro levanta as garras de raiva e contestação. Porque as pessoas têm egos. Mesmo para aqueles que adoram discutir, discutem para quê? Para descobrir quem é que tem razão, e ninguém quer ser aquele que é o estúpido que não sabe nada. Isto é um problema que afecta todas as partes. Se há coisa que a bela da internet trouxe foi a possibilidade de ter acesso a informação – mas há quem tenha estragado isso também.

A segunda assumpção é de que as pessoas são machistas, violentas e isentas de um pingo de humanidade. Ninguém gosta de ser chamado uma coisa tão verdadeiramente feia. Cada um de nós protege-se da melhor forma que podemos, e se isso implica ter que reconstruir as nossas realidades colectivamente para que assim sejam, não vejo melhor justificação para o pensamento construtivista – e com isto eu não quero dizer que estamos deliberadamente a criar mundos paralelos. O que acontece é que cada um de nós vive nas nossas bolhas, vivemos na ilusão de que, por exemplo, a violação é categoricamente definida de vítimas e violadores de características particulares. Vivemos na ilusão que os conceitos são universalmente definidos mas não o são. Depois deparo-me com o choque que é um acordão judicial português de ‘sedução mútua’ num caso de violação, toda a história do ‘quarto de Las Vegas’ ou o candidato a Presidente que diz que os homossexuais são resultado de ‘falta de porrada’. Se calhar não sair da minha bolha é minha responsabilidade, se calhar não ter saído da bolha não me preparou para estas notícias destruidoras de espírito, não sair da bolha torna-me incapaz de perceber verdadeiramente o que se passa.

A Nadia Murad e o Denis Mukwege ganharam o nobel da paz pelo seu trabalho na sensibilização, prevenção e reparação da violência sexual em contexto de guerra. Por isso como vêem, nem tudo é terrível. Só é desafiante ser um idealista nos dias que correm.

10 Out 2018

Saramago, 20 anos de Nobel | O autor difícil que os alunos chineses continuam a procurar

Celebraram-se esta segunda-feira os 20 anos da atribuição do prémio Nobel da Literatura a José Saramago, falecido em 2010. Em Macau a sua obra continua bem presente nos currículos de quem estuda português nas universidades e, na Livraria Portuguesa, é um dos escritores lusos mais vendidos

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]s temas dos livros são fracturantes e polémicos, a pontuação, na maioria das vezes, não existe, mas isso não fez esmorecer o fascínio e interesse que os leitores continuam a ter na obra de José Saramago, único escritor português agraciado com o prémio Nobel da Literatura. Foi há 20 anos que Saramago o recebeu da Academia Sueca, tendo-se tornado um autor ainda mais lido e traduzido em todo o mundo, incluindo na China.

Em Macau, José Saramago continua a ser um autor muito presente nos currículos dos que aprendem tradução e interpretação da língua portuguesa na Universidade de Macau (UM) e Instituto Politécnico de Macau (IPM). Apesar de nem todos os alunos escolherem a área da literatura, deparam-se com textos de Saramago durante a licenciatura.

“É um dos grandes escritores portugueses e acho que os alunos de português têm de conhecer e ler este autor”, disse ao HM Yao Jingming, director do departamento de português da UM. “A obra dele faz parte das leituras dos nossos alunos, sobretudo os livros que são mais fáceis de ler, como o ‘Ensaio sobre a Cegueira’, por exemplo. Também damos alguns excertos de outros livros para os alunos lerem”, acrescentou.

Em o “Ensaio sobre Cegueira”, Saramago questiona o actual sistema eleitoral dos países democráticos, quando a população de um território vota em branco, na sua maioria, não elegendo qualquer candidato político. O tema não é acessível a quem é nativo de chinês, sem esquecer a questão da pontuação.

“Para os nossos alunos, sobretudo os de literatura, [Saramago] é ainda um escritor um bocado difícil de ler e de compreender, mas é importante que tenham uma noção da sua escrita. Ele continua a ser lido na China e as suas obras continuam a ser traduzidas para chinês.”

Yao Jingming, ele próprio tradutor de poesia e habituado à linguagem complexa dos poetas portugueses, assegura que o Nobel português “fala sobre outro pensamento e realidade, como a religião, e com uma outra mentalidade”. “Era comunista, sempre mostrou ter uma atitude muito própria, e para o compreender é necessário conhecer a sua história e até a história de Portugal”, frisou.

No caso do IPM, os alunos estudam os escritos de Saramago no terceiro ano da licenciatura, adiantou Han Lili, directora da Escola de Línguas e Tradução do IPM. “Fazemos uma abordagem geral em que são seleccionados alguns ensaios do autor, com pequenos textos. Já há algumas obras traduzidas para chinês, como é o caso do ‘Memorial do Convento’ e o ‘Ano da Morte de Ricardo Reis’. Os alunos são motivados a ler estes livros desde o segundo ano para que tenham uma aproximação das obras na sua língua mãe.”

Uma questão de gramática

O facto dos alunos do IPM lerem primeiro em chinês e depois em português reveste-se numa tentativa de aproximação à escrita de Saramago. “Não corresponde às normas gramaticais tradicionais e temos de abordar este aspecto, para que os alunos compreendam que determinadas formas de escrever do autor são uma opção pessoal e não uma forma comum de escrever em português.”

Han Lili assegura que o gosto pelas obras do Nobel é genuíno. “Há alunos que gostam mesmo do autor. Recordo-me de uma aluna da Universidade de Pequim a quem recomendei Saramago e que depois acabou por fazer, em Macau, o mestrado e doutoramento sobre o autor, além de que já traduziu duas obras dele para chinês.”

Se na UM há um projecto de investigação a decorrer, no IPM não há nenhum aluno a debruçar-se sobre a obra de Saramago. “Ao nível da licenciatura não temos nenhum projecto de tradução, é um autor que exige um nível de proficiência mais elevado. Pode ser uma boa opção para mestrados e doutoramentos.”

Boas vendas

Na Livraria Portuguesa nota-se bem o fascínio que os livros de José Saramago. De acordo com Filipa Didier, responsável pelo espaço, é um dos autores mais procurados. “Neste momento temos livros em português, inglês e chinês. É um dos autores que mais vende. Não temos muitos turistas a comprar, mas sim mais membros da comunidade portuguesa e estudantes de português, sobretudo os que vêm da China e fazem cá os cursos de Verão”, assegurou.

Para Filipa Didier, Saramago “é um autor de referência e muitos procuram-no por indicação dos professores, e também ouviram falar dele por causa do prémio Nobel”.

“Os títulos em inglês têm uma procura relativa, sendo que, dos sete títulos que temos, o mais procurado é a tradução do ‘Ensaio sobre a Cegueira’. Este sucesso está ligado ao facto de ter sido feito um filme sobre o livro”, frisou Filipa Didier, que acrescenta: “20 anos depois do Nobel, o sucesso de Saramago está longe de se esgotar”.

Este sucesso ao nível das vendas deixou Joaquim Coelho Ramos, director do Instituto Português do Oriente (IPOR), surpreendido. “Parece que há muita procura pela obra de Saramago e vai ao ponto de, quando a livraria não consegue dar resposta com o material que tem cá, encomenda a pedido das próprias pessoas. Os títulos da primeira fase são muito procurados, quando ele trouxe novas visões estruturais à produção literária, e é isso que mantém o interesse e a actualidade”, rematou.

10 Out 2018

Diário inédito de Saramago revela “a loucura” de receber o Nobel, diz Pilar Del Río

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] viúva de José Saramago, Pilar del Río, disse que o último volume dos diários do escritor, ontem apresentado, revela a sua vida em 1998 e a “loucura” de receber o Prémio Nobel de Literatura.
“É a vida no ano de 1998 até 08 de outubro [data em que Saramago foi anunciado como vencedor do Prémio Nobel de Literatura], o dia como hoje [em que se comemoram 20 anos], um caderno onde ficam referenciadas viagens, conferências, encontros, preocupações, ansiedade e, a partir de 08 de outubro, a loucura do Nobel”, disse aos jornalistas Pilar del Río.

A acompanhar o lançamento do “Último Caderno de Lanzarote” no congresso, em Coimbra, que celebra os 20 anos de atribuição do Nobel da Literatura, a Porto Editora apresentou o livro “Um País Levantado em Alegria”, de Ricardo Viel, que relata “detalhes e surpresas” de como Saramago e o país viveram aquele dia, anunciou a organização.

“É um livro que explica como viveu Portugal e como Portugal cresceu naquele dia com a notícia do Nobel”, adiantou a também presidente da Fundação José Saramago.

Questionada sobre o que significava Coimbra para Saramago, Pilar del Río recordou que foi nesta cidade que o companheiro soube da morte de José Cardoso Pires – o autor de “O Delfim”, “Alexandra Alpha”, “Balada da Praia dos Cães” -, em outubro de 1998, poucos dias depois de receber o Nobel.

“Neste dia e neste momento, para mim, Coimbra chama-se José Cardoso Pires (…) Hoje Coimbra lembra-me José Cardoso Pires”, frisou Pilar del Río.

A viúva do escritor lembrou ainda que José Saramago recebeu um doutoramento ‘honoris causa’ pela Universidade de Coimbra (em 11 de julho de 2004), proposto pela Faculdade de Letras, e que teve o ensaísta Eduardo Lourenço como padrinho do doutorando.

9 Out 2018

Almas tenras

23/03/2017

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]iz Solzhenitsyn sobre um amigo, nos diálogos que teve com o cineasta Alexander Sokurov, em 1998: “Ele tem uma alma tenra, amável e pura”. O primeiro adjectivo faz-me imaginar que, na cadeia dos seres, as almas variam de consistência, desde as cremosas como leite-creme às duras como o aço.

Já conheci almas de puro minério, tipos ruins e ufanos disso. Em África conheci o mal. Simples acaso, tive sorte na Europa e lá se camuflará mais o que aqui será exposto? É irrelevante, lidei aqui com o problema, desde situações de ostracismo a cenas de extrema crueldade que, tanto pessoal como profissionalmente, vivi ou presenciei. Ter resistido ao cinismo que quer infiltrar, espesso, a personalidade por causa do inusitado que nestas regiões se enfrenta foi claramente uma das provações da minha vida.

Ora, o fabuloso destas conversas com o autor de o Arquipélago de Gulag é perceber que quando fala do amigo no fundo fala de si. Metem-no no Gulag durante anos (num dos dias trabalhou a -35 graus) e o homem toca harpa. Confiscam-lhe os seus cinco diários de guerra e o homem toca harpa. Interrogam-no, torturam-no, por mesquinhez e maldade, censuram-lhe os livros, o homem toca harpa. Obrigam-no a viver uma miséria vexatória. Consegue que os seus manuscritos saiam clandestinamente do país e uns anos depois ganha o Prémio Nobel. Nem lhe serve de nada ter-se abstido de ir a Estocolmo, o regime soviético expulsa-o em 1974. Passa a viver em Vermont, nos EUA. Em 1996 regressa à Rússia.

E a criatura que no documentário se apresenta é a mansuetude em pessoa, sem um grama de ressentimento, sem poses, sereno, capaz de uma compaixão e de uma compreensão sobre os seus verdugos que desconcerta. Entretanto, os direitos da venda internacional de o Arquipélago de Gulag, aplica-os em auxiliar os que como ele viveram tal inferno. Pior, com convicção recusa, apesar da insistência de Sokurov, dar qualquer relevo à crueldade humana na textura das comunidades humanas e contrapõe: “se um homem cruel encontrar um homem bom perde terreno para se exercitar e acaba a sua natureza por atenuar-se!”. O que me faz lembrar como para Saramago era a bondade a primeira qualidade do humano.

O chato com a grandeza, quando a encontramos, é que não possamos imitá-la.

Leio, entretanto, que está a sair em Portugal uma nova tradução do Arquipélago de Gulag.

26/03/2017

Uma é loura, outra morena – as minhas filhas. A loura tem nove e a morena doze. A loura ensaia uma peça na viola-d’arco. A outra discute a lei da gravidade com a mãe. A loura interrompe um acorde e pergunta:

– Não percebo nada, afinal os raios são atraídos ou caem na terra – como as maçãs das árvores?

– Que raio de pergunta… – redargue a morena.

– Se for por causa da gravidade caem, não têm escolha. Uma coisa atraída ainda tem escolha.

– Não, olha os teus ímanes… são atraídos e não têm escolha.

– Mas a Miranda da minha turma era atraída pelo Vitor e preferiu não o beijar, quando ele lhe pediu… Ela sentia-se atraída mas escolheu…

– Que têm os raios a ver com as pessoas?

– Pois, por isso acho esse Newton um chato, faz-nos querer ligar maçãs com raios e agora com pessoas… E sabes, para mim, que as maçãs caiam não vejo nisso nada de especial… o que me intriga é que elas adocem.

Cala-se e volta a atacar o seu trecho na viola-d’arco. Até que o rosto se lhe ilumina e vota o baixar o arco. E atira sorridente:

– Já sei para que pode servir a gravidade?

– Diz lá, deve ser boa…

– Foi a gravidade quem engravidou a Miazinha (a nossa gata)… E lança uma gargalhada.

27/03/2017

Umas das consequências mais erróneas que se segue ao abandono dos «mitos do progresso» é deduzir-se daí que nada é passível de evolução, pelo que não haveria culturas mais avançadas do que outras. É o pretexto para uma abjecta preguiça que degenera numa violência não declarada.

Cansa ter de explicar o óbvio: ser um mero utilizador de gadgets e electrodomésticos é inferior a ter a capacitação técnica para os inventar e reproduzir; que uma cultura laica, no interior da qual cada qual pode escolher livremente a sua crença, é superior a uma cultura que de antemão sujeite o pensamento a uma forma única, condicionando-lhe os possíveis e as virtualidades; que a astronomia exige mais estudo e uma propensão para o pensamento abstracto mais complexos do que aqueles a que obrigam a astrologia, etc., etc.

Em resultado do pensamento débil do relativismo vejo, junto dos meus alunos, que se galvanizou um retorno total à superstição e à feitiçaria – mergulham na “tradição”. Nenhum aluno em dramaturgia me apresenta o esboço de uma história urbana. Lembrava uma aluna num colóquio que teve lugar na universidade, na semana passada, como os temas se socorrem invariavelmente «do caminho fácil do exotismo», ou seja, encharcam-se em histórias de curandeiros. Está presente no quotidiano, é relatado sem crivo nos media.

Em 2008 tive de explicar pacientemente a três turmas na universidade que era deveras improvável que uma mulher pudesse ter parido um bule e três chávenas, como foi noticiado em todas as televisões do país, e em 2011 o parlamento da vizinha Suazilândia aprovou uma lei que proibia as bruxas de voarem acima de cento e cinquenta metros de altitude para não chocarem com as aeronaves. Não melhorou desde então.

Simultâneos ao assomo da superstição, crescem os sinais de riqueza material – o parque automóvel de Maputo abisma pela presença maciça de últimos modelos e de carros de luxo -, de aumento da pobreza – sou assediado diariamente por uma dúzia de pedintes – e da inflação – um pequeno frasco de molho de soja custa hoje uns inefáveis 10 dólares – enquanto, agora mesmo, se assiste a um surto de cólera em todo o país; o que demonstra que, pelo menos em termos preventivos, os curandeiros trabalham pouco.

30 Mar 2017