O futuro da memória (I)

“Politics is the mortar between the bricks of history.”

Elsdon Ward

(Continuação)

O mesmo aconteceu com a China. Se os chineses não tivessem dominado a tentativa de sublevação dos estudantes de Tiananmen em 1989, também Pequim teria iniciado um processo de democratização que teria tido consequências desastrosas e incalculáveis. E o quanto foram erradas as respostas do Banco Mundial às crises das economias asiáticas no final do século, baseadas em regras abstractas e liberalistas elaboradas na mesa de desenho, foi reconhecido por muitos dos responsáveis por esses erros, a começar pelo testemunho honesto de uma grande figura como Joseph Stiglitz, nos anos em que recebeu o Prémio Nobel da Economia. Mas os americanos continuam a não compreender estes problemas. E os europeus, a quem caberia um sentido profundo da história, não só não têm força para corrigir os americanos, como estão a introjectar a utopia americana, rendendo-se a uma cultura sem história.

Portanto, é perigoso. Um neurocientista diria que é uma premissa obrigatória, pois as neurociências estudam sobretudo a memória individual, enquanto na geopolítica partimos da memória colectiva. Estabelecer as ligações entre as memórias individuais e sociais é extremamente complexo. No entanto, pode-se certamente afirmar que, na relação entre memória individual e colectiva, entram em jogo questões de poder. E assim como há uma memória consolidada no indivíduo, há também uma memória consolidada na sociedade. O problema, porém, é que estamos habituados a pensar na memória como algo estático e orientado para o passado. Não é o caso. Antes de mais, a memória não é uma coisa. É um processo dinâmico. Sempre que nos lembramos, damos forma a uma nova memória. De um ponto de vista neuronal, podemos agora ver que, quando uma nova memória é gerada, passa primeiro por uma fase latente de consolidação, durante a qual não temos consciência de que temos um “vestígio” no nosso cérebro.

Mas quando reactivamos esse vestígio ao recordar a memória, é criado um novo estímulo que dá origem a uma nova memória. Que depois se reconsolida. Em segundo lugar, a memória não se dirige ao passado. Se olharmos para ela de um ponto de vista evolucionista, apercebemo-nos de que o processo neural não evoluiu para nos fazer memorizar versos da “Divina Comédia”, mas porque nos permite actualizar as nossas teorias pessoais sobre o mundo, que servem para prever o curso dos acontecimentos e orientar o nosso comportamento. Neste sentido, o nosso cérebro é uma espécie de máquina do tempo que nos permite imaginar o futuro. Isto é feito através da combinação da informação de que dispomos e tudo depende da forma como combinamos essa informação. É este processo que nos permite imaginar e antecipar o futuro. E é neste sentido que o nosso cérebro é um cérebro prospectivo. Claro que lembrar tem a sua simetria no esquecimento.

Não faria sentido lembrarmo-nos de tudo. Pelo contrário, lembrar-se de tudo como o paciente que não conseguia esquecer, estudado pelo psicólogo russo Alexander Luria e como o escritor argentino Jorge Luis Borges nos ensinou em “Funes ou a memória”, ou que a memória é uma patologia, não nos permite generalizar, sintetizar e, portanto, conhecer. E de re-conhecer. O esquecimento é, pois, fisiológico, é uma condição da recordação. A questão é como esquecemos. O que temos de esquecer é o que não é relevante para nós no momento em que precisamos de nos lembrar de outra coisa. Por conseguinte, podemos esquecer ou porque não podemos “escrever” um traço no nosso cérebro, ou porque o apagamos e esta palavra não é acidental ou porque se torna inacessível. Um traço que se torna inacessível é um traço removido, mas a remoção não significa o simples apagamento de uma escrita. Pelo contrário, a remoção consiste em blindar e esconder um traço. Para dar um exemplo, é evidente que nenhum de nós se lembra do que viveu nos primeiros anos da sua vida. No entanto, como a psicanálise sugeriu, e a neurociência hoje confirma, há traços mnésicos infantis, mesmo muito fortes, que permanecem escritos.

Aqui, o estudo da amnésia infantil está a mostrar-nos como esses traços podem emergir da remoção. E da mesma forma que um traço pode e por vezes deve, como nos casos de stress pós-traumático ser eliminado. Podemos estudar estes mecanismos neurobiológicos, mas se os transpusermos para o plano social, verificamos que têm implicações decisivas. De facto, a nível político, uma coisa é não transcrever um vestígio, outra coisa é apagá-lo e outra ainda é não poder aceder-lhe. A questão central parece ser a da relação entre história e anti-história. A história é utilizada quando há interesse em estimular o consenso dos cidadãos (esse interesse não existe necessariamente apenas nos regimes democráticos) e é, portanto, intrinsecamente política. A anti-história, pelo contrário, serve para se relacionar com o consumidor e o homo economicus e é, por isso, intrinsecamente anti-política. Carl Schmitt já se tinha apercebido disso nos anos de 1930 e, mais ainda, nos anos de 1950. Em todo o caso, há sempre um sujeito social, mais ou menos poderoso, que tem interesse em promover uma narrativa histórica ou uma narrativa anti-histórica.

E esta não é uma questão científica ou moral, mas uma questão de luta pelo poder. Quanto mais se entra na dimensão da história, mais político se torna o confronto, mas hoje é mais fácil fazer anti-história, que é favorecida não só pelo impulso da tecnicização imposta pela economia, mas também pelo da tecnicização imposta pelo progresso científico (pensemos no desenvolvimento da inteligência artificial ou da manipulação genética). É precisamente neste terreno que se oscila o jogo da memória. Graças às neurociências, sabemos hoje que é dinâmico, mas convém notar que Aristóteles, fazendo eco de Platão, já distinguia entre mneme e anamnesis. E, precisamente por ser dinâmica, a memória está intimamente ligada à liberdade. Qualquer ataque à memória e qualquer avanço da anti-história deve, portanto, ser considerado um ataque insidioso à nossa liberdade. Para a Europa, em particular, este é um risco mortal, porque, devido a dinâmicas culturais e sociopolíticas bem conhecidas, esta é fundada na história e fez história de uma forma muito especial. Apesar disso, tal como o resto do Ocidente, estamos a correr para uma anti-historização aparentemente irreversível.

12 Set 2024

Tiananmen | Governo impede exposições sobre 4 de Junho de 1989

Como acontece todos os anos, os deputados Ng Kuok Cheong e Au Kam San pediram autorização para expor fotografias nas ruas de Macau sobre o massacre de 4 de Junho de 1989 na Praça de Tiananmen. Porém, este ano, o Instituto para os Assuntos Municipais recusou o pedido. José Tavares justificou a decisão ao HM como forma de evitar a propagação da covid-19

 

[dropcap]A[/dropcap]o contrário do que aconteceu nos últimos 30 anos, o Instituto para os Assuntos Municipais (IAM) proibiu a organização em lugares públicos de exposições fotográficas relativas ao massacre de Tiananmen. Desde a transição, esta foi a primeira vez que as exposições foram recusadas, apesar de terem sido inicialmente autorizadas.

O caso foi divulgado por Ng Kuok Cheong. O deputado pró-democracia é também membro da associação União para o Desenvolvimento Democrático, entidade responsável pela organização das exposições assim como pela vigília do 4 de Junho. Após um primeiro pedido, a 29 de Abril o organismo público liderado por José Tavares aprovou as exposições em nove locais com datas diferentes. No entanto, na quinta-feira, o IAM enviou outra carta a revogar as autorizações, com a justificação de que os eventos “não se adequam” aos espaços públicos.

Ao HM, Ng Kuok Cheong prometeu tomar as medidas necessárias para reverter a decisão e comentou o caso acusando o Executivo de estar a atacar a liberdade de expressão na RAEM. “Enviei perguntas ao Governo [e pedir explicações sobre o que estão a fazer] porque sentimos que isto é uma decisão política. O IAM disse-nos que descobriu, assim de repente, que não pode dar permissão para as exposições. Mas não nos deram justificações, apenas disseram que o pedido não era adequado aos regulamentos”, afirmou o deputado. “Não nos explicaram mais nada. Talvez seja porque não têm autorização para ser sinceros. Mas, o Governo de Macau deve pensar o que é que está a fazer à liberdade de expressão…”, acrescentou.

Depois da recusa ao pedido, a União para o Desenvolvimento Democrático recorreu da decisão: “Apesar do recurso, temos dúvidas que o Governo vá permitir esta exposição no ambiente político que se vive e que abrange Hong Kong e Macau. […] Claro que o Governo não nos disse isso, apenas nos disse que não nos dava permissões porque não era adequado”, começou por admitir. “Sabemos que o Executivo vai fazer tudo para atrasar os procedimentos e impedir a nossa acção. É o objectivo deles”, concretizou.

Ng Kuok Cheong colocou ainda a hipótese de recorrer aos tribunais, apesar de não ter confiança no sucesso da acção. “Podemos considerar uma acção legal, mas como o tribunal é controlado pelo Governo Central não estamos optimistas”, atirou. Questionado se a decisão de proibir as exposições foi imposta pelo Governo Central, Ng respondeu de forma irónica: “A resposta a essa pergunta é segredo nacional.”

O covid-19, ora pois

Por sua vez, o presidente do IAM, José Tavares, afirmou ao HM que para a decisão de não autorizar as exposições pesou a “actual situação de confinamento” e as indicações dos Serviços de Saúde “para evitar aglomerações de pessoas em espaço público” de forma a “evitar o contágio e propagação do covid-19”.

Segundo o presidente do IAM, a decisão teve a mesma linha de razoabilidade que justificou o encerramento de instalações para as práticas desportivas, como os campos de futebol ou de basquetebol, conforme as indicações dos Serviços de Saúde.

José Tavares defendeu também que os pedidos foram recusados porque “a utilização dos nossos espaços tem de condizer com as nossas atribuições e competências”. De acordo com o responsável pelo IAM, a decisão foi tomada pelo Conselho de Administração.

Sobre o recuo, depois de ter sido dada autorização num primeiro momento, José Tavares responsabilizou os “serviços” que analisaram o pedido. “Na altura, os serviços quando analisaram o pedido não foram rever as coisas. Por isso, rectificámos a decisão porque o Conselho de Administração entendeu que deve ter um âmbito mais concreto nessas atribuições”, revelou.

Segundo a lei que criou os órgãos municipais a primeira atribuição do IAM é “incentivar a harmonia e a convivência das diversas comunidades da sociedade e promover a educação cívica”. No entanto, a mesma leitura não foi feita no ano passado, quando as mesmas exposições foram autorizadas.

Perguntas para Ho

Além dos procedimentos normais de recurso da decisão, Ng Kuok Cheong elaborou igualmente uma interpretação escrita que vai ser entregue a Ho Iat Seng, Chefe do Executivo, através dos canais de comunicação entre a Assembleia Legislativa e o Governo.

No documento constam três questões. A primeira pergunta ao Chefe do Executivo se esta decisão foi tomada com motivações políticas, apesar do mesmo nunca ser dito na carta que recusou a exposição. Ng recorda que há 30 anos que estes eventos sempre foram feitos e que apenas houve uma rejeição, numa altura em que o ambiente político mudou.

Na segunda pergunta, o deputado argumenta que a decisão foi pouco fundamentada e questiona se a recusa do IAM não pode ser para considerada abuso de poder. Ng pergunta se Ho Iat Seng apoia esse abuso de poder.

Finalmente, o democrata e histórico fundador da Associação da Novo Macau, pergunta ao Chefe do Executivo se está comprometido com a defesa das liberdades fundamentais da população, garantidas pela Lei Básica.

Decisão sem efeito?

Segundo a carta partilhada por Ng Kuok Cheong, a carta com a revisão da primeira decisão no IAM não oferece mesmo qualquer justificação para a recusa do pedido. “Depois de revistos os critérios de aprovação de utilização de espaços, o IAM considera que a realização da actividade da vossa associação não corresponde aos critérios. Por isso, informamos a vossa associação do cancelamento da actividade. Pedimos a vossa compreensão pela inconveniência”, lê-se no documento partilhado.

Além disso, a carta informa que existe direito a recurso, mas que este não suspende a decisão em causa, além da menção a vários artigos do Código do Procedimento Administrativo.

Segundo o jurista António Katchi, a falta de argumentação legal da decisão pode fazer com que esta seja anulável. “O acto administrativo em causa está legalmente sujeito ao dever de fundamentação. Este dever só se considera cumprido se a fundamentação for clara, coerente e suficientemente completa para esclarecer as razões da decisão”, começou por explicar o jurista.

“Se o IAM tiver afirmado simplesmente que essas exposições não são adequadas a espaços públicos, sem ter esclarecido por que motivo assim o entende, terá violado o dever de fundamentação, ferindo o seu acto administrativo de vício formal e tornando-o, por isso, anulável. Tudo isto resulta do Código do Procedimento Administrativo”, contextualizou o jurista ao HM.

Aprender com os factos

Por outro lado, António Katchi questionou o facto de ser proibida uma exposição que tem por base factos históricos. O jurista considera que esta postura é incoerente no que diz respeito aos espaços públicos, uma vez que o Governo defende a necessidade da população de Macau estudar a história do país.

“Quanto à substância da alegação feita pelo IAM, relembro que a exposição em causa tem por objecto factos inscritos na história da China. Como se pode, então, afirmar que não é adequada a um espaço público? Não tem dito o Governo, reiteradamente, que é importante a população de Macau conhecer a história da China?”, questionou.

Vigília em perigo

A decisão de quarta-feira que proíbe exposições sobre o massacre de Tiananmen pode ter implicações mais profundas. Todos os anos a União para o Desenvolvimento Democrático realiza uma vigila para recordar as vítimas da violência militar. No entanto, a decisão do IAM levanta dúvidas quanto a realização este ano.

Ng Kuok Cheong não arrisca uma estimativa quanto à decisão do Governo, mas apontou que a intenção é organizar a vigília. O pedido, tal como exige a lei de reunião e manifestação, vai entrar com uma antecedência de cinco a dois dias. No entanto, face ao precedente aberto, as autoridades poderão utilizar a pandemia para impedir vigília.

A proibição de manifestações e reuniões em Macau não é nova. No ano passado, foi recusada uma manifestação contra a violência usada pela polícia de Hong Kong, durante os protestos contra a lei de extradição. A decisão acabou por contar com o apoio do Tribunal de Última Instância, num acórdão criticado por especialistas de Direito e que contou com um voto contra do juiz Viriato Lima, que, entretanto, cessou funções.

11 Mai 2020