[dropcap style=’circle’] A [/dropcap] s casas dos poetas são locais estranhos que devemos ter como sentinelas de energias cósmicas, pois dormitam lá os veios que desaguam dos seus lençóis freáticos. São espaços consagrados que nem sempre sabemos definir como espaços singulares. Impunemente não foram ocupados e deixaram um lastro de encanto na sua decadência que não tem preço, não se deve profanar e de todos os lares é este o mais enigmático e o que produz mais encanto nas nossas tenções emocionais. Se para tanto acrescer, as suas vidas difíceis, nem por isso perturba esse chão que parece mergulhado de um silêncio desconhecido de uma manifesta antecâmara de iniciados, pois tal como disse Safo: vedado é o choro na casa de um poeta/ nunca tal pesar se apartará de nós.

Na volúpia das transacções imobiliárias que fazem agora das populações de uma cidade seres em via de uma grande debandada para dar lugar a moradores que nada têm a ver com a terra, os hábitos e sabemos que a cidade, se lhes acrescentarmos as casas em ruínas dos poetas que ao abandono são escombros em plena via citadina, é bem mais que uma moldura para negócios imobiliários. E é da casa do grande simbolista que agora falo que em ruína está prostrada no meio da multidão, talvez que nada saiba já do seu antigo habitante, pois que a mesma Nação que vende todas as casas já pouco sabe dos que nelas viveram, sobretudo se foram poetas: há tantos, não é? – Não, não é. – E os que têm essas casas que para aí andam são “caseiros” do acto poético que não é o mesmo que o lar de um deles.

Saberão as gentes quando se inclinarem para transpor as portas daqueles de que agora falo, e se não souberem as casas, por mais caras que sejam, também não valerão nada. Sem um certo conhecimento destas coisas não há ninguém para habitar, nem as portas nos selam a raiz da nossa intimidade. Ao abandono ficaram muitas e se a de um Almeida Garrett deu lugar a um cubo habitacional depois de lhe retirarem os belos varandins , resvés à de Pessoa, que nem casa era, mas um quarto, onde fizeram um “filme” asséptico que o próprio desdenharia na sua configuração inapropriada. Não esqueçamos que o poeta é levemente como os gatos, gosta da casa, gosta do tempo das coisas que a desgastam e transformam. Mas estamos num país de movediços e de grandes “imóveis” de uma visão de habitat, estamos numa plataforma de gentes que não sabe honrar o seu legado mais bonito. Encheram-se de coisas para jogarem aos dados financeiros e tolheram a capacidade de reabilitar os sonhos.

António Nobre morreu cedo, não tendo deixado nas paredes da sua casa grandes vestígios de obras nem aclimatado as salas com a sua inquietação. Talvez estivesse recolhido com a saúde que sabemos frágil e «Só» lá habitasse ele e o que estava em queda simbólica no seu um tanto desesperado estado. O desencanto simbolista tem muitas cartas escritas em surdina que nem todos leram pois que para os “poetas” das casas novas não interessa a relação entre os pares. Mas talvez pudesse interessar às Instituições, aos Ministérios, agora que há o da Cultura, mas a Cultura tal como a conhecemos talvez nem precise de casas, mas sim de Festivais e estes “pequenos arranjos” sejam sem dúvida coisas de somenos.

E assim nesta perspectiva de Jogos Florais e muito imprópria para a memória nos vamos dando conta que morrer jovem num local assim, antes como hoje, talvez seja a melhor maneira de escapar a uma tremenda falta de um núcleo central, que é o da sabedoria das pedras falantes.

O saudosismo que embainha a obra não se refere à saudades do futuro, tão ao gosto de Antero de Quental, que este futuro brindado em derrocada e quase esquecimento tem pouco que contemplar, mas por cada casa de um destes poetas em ruína e desabamento há um anátema gigantesco que ninguém vê. E que tanto dá lembrar. O mundo nunca lhes pertenceu e agora é mais que tempo de não existirem. E quando tudo isto terminar, assim, como se a corrente da era fosse só isto, e desta maneira, as casas de todos desabarão de formas imprevistas. Não se pode atingir o esqueleto de altares sem uma manobra na atmosfera ao redor, e, se quase ninguém pode estar nas casas uns dos outros devido à magnitude das vidas impróprias, conservam-se no éter lembranças de vivas fontes e sentidas saudades quando nos damos conta daquilo que já foram.

Também se pode colocar António Nobre no sanatório, mas lá estariam muitos e insanáveis seres que deixaram as suas casas para não contaminarem os outros habitantes, quem está a mais deve ser removido para locais onde não seja factor de perturbação, e, não havendo tença, não há direito a chão, quanto mais à reabilitação de relíquias! Era um grande inovador da linguagem poética do seu tempo e uma língua precisa dos seus xamãs ou será uma artilharia mecânica com bases na Lua – idem – a colocação das vozes para se dizer o banal com o palato em forma e as ideias sem fórmula …

Mas este tão «Só» para não ficar confinado a coisa nenhuma, até foi editado em Paris quando o seu autor era jovem no ano de 1892. Convém reabilitá-los a todos, todos nos dão a Casa que esperamos ver reerguida, interlaçar simbolismo e saudosismo para a construção das nossas muralhas, porque podemos vir a não saber entrar mais nos nossos Templos. É que as nossas vidas precisarão sempre de um secreto amor. Mas nem tudo é triste na visão do poeta, nem a tristeza que deles irrompe, é, ou foi alguma vez teia de servidão, por isso há ainda uma alegria à Cesário e uma noção de festa que não pode ser arrecadada no esquecimento.

 

Georges! anda ver meu país de romarias e procissões!

Olha essas moças, olha estas Marias!

Caramba! dá-lhes beliscões.

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…………………………..

Que lindos cravos para pôr na botoeira!

Tísicos! Doidos! Velhos a ler a sina!

Etnas de carne! Jobes! Flores! Lázaros! Cristos! Mártires!

Cães! Dálias de pus! Olhos fechados!

Reumáticos! Anões! Deliriuns- tremens! Quistos!

………………………………..

Pelo nariz corre-lhes pus, gangrena, ranho!

E, coitadinhos! fedem tanto: é de arrasar…

Qu´é dos pintores do meu país estranho,

Onde estão eles que não vêm pintar?”

 

 

Como deixar cair esta deslumbrante forma manifesta, esta imensa lira de inventividade? Vamos para tua Casa!

 

9 Mar 2018

Rua Camilo Pessanha

[dropcap style=’circle’] P [/dropcap] ublicado no artigo anterior a parte inicial do discurso do então Presidente do Senado, Dr. Luiz Gonzaga Nolasco da Silva, que com “breves e sentidas palavras” falava a 3 de Março de 1926 na secção do Leal Senado da Câmara de Macau. Nessa reunião camarária, propôs um voto de profundo pesar pelo passamento de Camilo Pessanha e dar o nome desse ilustre cidadão a uma rua. Em homenagem, “dando-se o caso de o ter conhecido e convivido com ele longos anos, primeiro como seu aluno e depois, colega durante o percurso deste como professor e advogado”. Discurso que aqui continuamos, após ter descrito a acção do advogado dos advogados, versa agora sobre as outras facetas do distinto poeta.

“Como juiz, foi Pessanha de uma austeridade e de uma probidade inconcussas. Lembro-me de que uma vez um nababo chinês tinha uma questão cível pendente da sentença de Pessanha: esse litigante foi visitá-lo algumas vezes, e da última, ao despedir-se, deixou-lhe um envelope sobre a mesa… Pessanha deu pela incorrecção do homem e, obrigando-o a recolher o vil metal, correu-o à bofetada até à porta da rua. Foi assim que Pessanha castigou aquela tentativa de corrupção. Era intransigente em pontos de honra profissional, mas temperava a sua austeridade de julgador com a bondade do seu coração. Todas as vezes que o seu dever lhe impunha uma condenação, procurava aplicar ao réu a menor pena que por lei, podia aplicar-se.

Na situação de juiz substituto em exercício, teve ensejo de revelar, por mais de uma vez, os seus eruditos conhecimentos.

Está ainda na memória dos seus colegas e da família judicial, uma extensa sentença por ele escrita num processo de crime por venda de menor, sustentando que, segundo a idiossincrasia chinesa, tal facto não era criminoso.

Outra vez em que manifestou a pujança do seu intelecto com uma retentiva nunca vista, foi no processo de extradição do mandarim Pui-Keng-Foc, em que esteve seguramente quinze dias a ouvir as declarações do extraditando e outros quinze ditando-as, sem se socorrer dum único apontamento escrito, e sem pôr um ‘digo’ ou fazer qualquer emenda. Quando terminou o seu ditado, com tanta clareza e fidelidade como elegância e vernaculidade, pediu ao intérprete que traduzisse uma a uma as palavras por ele ditadas, e o mandarim Pui, que era também um literato e um poeta, ao acabar de ouvir a tradução da última linha, pediu licença ao juiz, para o cumprimentar por aquele record de assimilação e de retentiva que o fez admirar das faculdades intelectuais do juiz português. E lá da sua prisão na Fortaleza do Monte, escreveu num leque uns versos que dedicou a Camilo Pessanha.

Acham-se dispersos nos arquivos dos tribunais de Macau e da Secretaria do Governo da Província, muitos trabalhos jurídicos de Camilo Pessanha, e é pena que não se faça deles uma edição in memoriam”.

 

De jornalista a coleccionador

 

“Pessanha foi também jornalista, e eu tive a honra de o ter tido por meu colaborador no jornal que fundei, intitulado O Macaense. Neste jornal publicou Pessanha a tradução em versos portugueses, de umas elegias chinesas, seguida de eruditas notas explicativas das passagens ou palavras mais interessantes, e por ventura menos compreensíveis da história e da literatura chinesa. Pena foi que tivesse ficado em meio, ou a menos de meio, aquela tradução, que Sua Excelência com tanto entusiasmo encetara, e que pensava remeter para Portugal para que Dona Ana de Castro Osório fizesse dela uma edição portuguesa. Porém, os bocados de ouro que ficaram arquivados em O Macaense servem para dar aos estudiosos uma ideia da erudição de Pessanha em assuntos da literatura chinesa – pois é bom que se saiba, e que fique escrito, que Pessanha, apesar de não ter tido um único exame de língua chinesa, estudara esta língua, e bem assim as fontes da sua literatura, que bem se podia considerar um bom sinólogo português.

Quantas vezes, em dias calmosos, em que a maior parte da população procura nas distracções fáceis e nas brisas das praias um alívio aos calores da época, quantas vezes, nesses dias, não vi eu Pessanha, com o mestre china ao lado, aprendendo os caracteres chineses e repetindo com o professor os tons e sons da língua sínica! E que Pessanha só se recreava com coisas de espírito, e a civilização chinesa era para ele uma fonte inexaurível de estudo e de recreação do espírito.

Pessanha foi, ainda, um coleccionador de coisas de arte chinesa, as suas salas eram uma exposição permanente de muitos objectos artísticos da China, e na aquisição deles, consumiu Pessanha, estou certo, a maior parte dos seus proventos da advocacia.

Várias vezes, fez Pessanha doação ao Governo Português, do que melhor tinha na sua colecção de arte chinesa, e até ultimamente, um mês antes de morrer, doou ao Estado mais objectos artísticos. Eu lembro-me muito bem de ter visto em Lisboa, no Museu das Janelas Verdes, várias pinturas chinesas, doadas por Camilo Pessanha ao Governo Português. Nestas sucessivas doações, manifestou Pessanha o seu patriotismo”.

 

Nome para uma Rua

 

“Enfim, a morte de Camilo Pessanha veio, como disse, abrir uma lacuna entre os advogados de Macau. O país inteiro o pranteará, porque perdeu um poeta, um jurisconsulto, um artista, e um patriota.

Proponho, pois, que, além do voto de sentimento na acta e da remessa de uma cópia deste parágrafo a seu filho, Sr. João Manuel de Almeida Pessanha, se dê o nome do grande cidadão a uma das vias públicas de Macau. Tenho dito”.

Após a sentida homenagem do Dr. Luiz Gonzaga Nolasco da Silva, seguiu-se o Vice-Presidente do Leal Senado que se associa “com a maior dor e comoção à proposta de sentimento pela morte da grande individualidade que, em vida, se chamou Camilo de Almeida Pessanha. Já Sua Excelência, o Presidente, no admirável discurso que acabou de pronunciar, pôs em relevo as altas e inconfundíveis qualidades morais e intelectuais que caracterizaram o divino autor da Clepsydra, poema que foi com certeza idealizado num daqueles momentos de êxtase em que o espírito de Pessanha se evolava às mais belas regiões do sonho, envolvido pelo fumo do veneno destilado das rubras papoilas. Só lhe resta, pois, prestar o culto da sua homenagem a quem foi alguém na vida terrena”.

Após o vereador Damião Rodrigues dar o apoio às propostas do Presidente do Senado, associam-se também os outros vereadores, como Jacques Gracias e Pedro Lobo, que reside nesta colónia há bem pouco tempo. Assim aprovada por unanimidade, nesse dia 3 de Março de 1926 assenta-se mudar o nome da Rua do Mastro para Rua Camilo Pessanha, o que deverá acontecer para breve.

Com a construção entre 1910 a 1915 do primeiro lanço da Avenida Almeida Ribeiro, do Largo do Senado ao Porto Interior, a Rua do Mastro ficara dividida e assim o seu nome na parte Norte passava a chamar-se Rua Camilo Pessanha, o que terá ocorrido a 8 de Março de 1926, segundo Beatriz Basto da Silva e do lado “da Rua da Felicidade mantém a designação do Mastro, reduzida a Travessa”.

9 Mar 2018

Os derradeiros momentos de Pessanha

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]m Macau os relógios eléctricos estão parados desde 27 de Fevereiro devido à necessidade de proceder à limpeza dos instrumentos, quando, às 8 horas da manhã de 1 de Março de 1926 o autor da Clepsidra, Dr. Camilo de Almeida Pessanha faleceu na sua casa situada no número 75 da Rua da Praia Grande.

A poucos metros de distância, nesse dia ia ser inaugurado o novo edifício do Banco Nacional Ultramarino, na Avenida Almeida Ribeiro, fazendo o edifício esquina com a Rua da Praia Grande.

Professor liceal, distinto advogado e admirável poeta, o Dr. Camilo de Almeida Pessanha residira em Macau durante aproximadamente 25 anos, tendo feito quatro viagens a Portugal, algumas por motivos de doença. Se o normal era em Macau se quedar entre oito a dez meses, já na penúltima, a temporada foi mais longa, acima dos cinco anos. Nascera em Coimbra a 7 de Setembro de 1867 e chegara a Macau na primeira vez em 10 de Abril de 1894, sendo a última a 21 de Maio de 1916, de onde não mais saiu.

Viera como professor de Filosofia para o Liceu que iria ser inaugurado e como bacharel, muitos outros cargos aqui desempenhou, como refere sintetizando-os Beatriz Basto da Silva: “Camilo Pessanha veio a ser Conservador da Comarca (posse a 23 de Junho de 1900), Juiz Substituto do Tribunal Judicial (1904), Conservador servindo de Juiz e Presidente do Tribunal do Comércio (1911), Conservador do Registo Predial (1913), 1.º Substituto do Juiz de Direito da Comarca (1919), Auditor do Tribunal Militar, Professor do 4.º Grupo, efectivo no Liceu Central, sendo ali nomeado com Manuel da Silva Mendes como Director de Classe (1919). Foi ainda Juiz do Tribunal Privativo dos Chinas, como substituto (1919); juntamente com Fernando de Lara Reis e por desistência de Humberto Severino de Avelar, foi eleito Vogal do Conselho Administrativo do Liceu Central e, em 1920, Director da área de Geografia no mesmo Liceu, para onde foi nomeado Reitor Interino em 1925. Foi substituto do Juiz de Direito da Comarca (1920).”

Nos últimos tempos de existência, Camilo Pessanha fora nomeado por despacho de 17 de Setembro de 1924 para exercer o cargo de Director das classes 3.ª, 6.ª e 7.ª (letras) do Liceu Central de Macau e como Reitor a 15 de Julho de 1925. No dia seguinte saiu a sua nomeação como director da quarta e sétima classes do Liceu para o próximo ano lectivo. Em 11 de Agosto de 1925 requereu como professor efectivo do quarto grupo do liceu que lhe fosse aumentado o vencimento de categoria por diuturnidade de serviço a contar de 16 de Julho de 1924, nos termos do disposto no artigo 217 do Regulamento da Instrução Secundária de 18 de Junho de 1921. Segundo Daniel Pires, a 4 de Setembro de 1925 Camilo Pessanha pede a exoneração do cargo de Reitor e a partir de 28 desse mês, está de licença por motivos de doença. A 10 de Fevereiro de 1926 solicitava como professor do 4.º grupo do Liceu Central uma licença de trinta dias, que ainda não tivera despacho quando faleceu.

Os últimos desejos

“Há longo tempo que a doença lhe vinha minando o corpo deixando-lhe, todavia, em plena vitalidade aquela sua prodigiosa inteligência que todos lhe reconheciam e que até aos seus últimos momentos de existência na vida o não abandonou. Espírito altamente filosófico e amplamente liberal, alma aberta a todas as dores e infortúnios, encarava a vida desprendidamente, sem os preconceitos vãos e mentirosos que por aí pululam a contaminar tudo e todos. Alma sempre propensa ao Bem, praticava-o sem ostentação, gozando o prazer da sua consciência satisfeita – e por isso lhe bastava – ao saber que a sua benéfica acção, singelamente praticada, ia concorrer para a debelação de uma angústia ou de um infortúnio”, como escreve o jornal O Combate a 4 de Março de 1926, que finaliza dizendo, “Advogado de rara envergadura, perdeu o foro um dos seus mais inteligentes ornamentos; professor distintíssimo, perderam os seus alunos um bom, devotado e carinhoso mestre; e maçon por convicção, sofreu a Maçonaria e os ideais de liberdade que defende, e sofremos todos nós, a perda de um dedicado irmão e fervoroso defensor dos humildes e desprotegidos”.

“Os últimos momentos passou-os falando do enterro. Não queria ser transportado no carro funerário de Macau: embirrava com essa carripana. Desejava ser conduzido num armão de artilharia e por soldados, o que dizia, talvez não fosse difícil de conseguir visto ter sido frequentemente auditor no Tribunal Militar de Macau. Pobre Camilo Pessanha, bem fácil foi dar satisfação ao seu desejo! E sobre dois pequenos armões, de peças japonesas, assim se efectuou a última jornada de um dos mais curiosos espíritos, de um dos maiores e mais preciosos poetas portugueses”, segundo refere A. de Albuquerque. Já João Gaspar Simões complementa, “Certo de que teria um enterro oficial, professor do liceu que fora e seu reitor, juiz de Direito, advogado no foro local, prestigioso sinólogo e habituado a assistir ao saimento pomposo das outras personalidades locais, quis precaver-se pelo menos contra um dos números obrigatórios do programa. Eis porque, depois de consignar no testamento que pretendia que o seu enterro fosse o menos dispendioso e aparatoso possível, exige que não seja acompanhado de música.

Porquê tal recomendação? Porque fazia parte de todos os funerais solenes de Macau a banda dos alunos do colégio católico da província. Ora o poeta, fina sensibilidade musical, preferia o silêncio ao fungagá dos metais soprados pelos meninos chinas. Obrigado a ouvir ainda, nessa pátria ideal onde o melhor enfim é não ouvir nem ver, os discursos oficiais, pelo menos não ouviu a desafinação agressiva da charanga implacável”.

O Padre António Maria de Morais Sarmento assistiu ao último sopro de vida de Camilo Pessanha, que antes de finar pronunciou calmamente “está tudo a acabar… tudo podridão… tudo matéria…”, e referiu mais tarde, “tê-lo encontrado num estado de espírito que jamais verificara em qualquer moribundo.”

23 Fev 2018