Literatura | Escritor Paul Auster diagnosticado com cancro

O escritor norte-americano Paul Auster está em tratamentos por causa de um cancro diagnosticado em Dezembro, revelou sábado a mulher do autor, a escritora Siri Hustvedt. Numa mensagem na rede social Instagram, Siri Hustvedt explica que Paul Auster foi diagnosticado com cancro em Dezembro passado, depois de vários meses doente, estando actualmente a fazer tratamentos de quimioterapia e imunoterapia em Nova Iorque.

“Tenho vivido num lugar ao qual passei a chamar ‘Cancerland’ [país do cancro, em tradução livre]. Muita gente atravessou as suas fronteiras, ou porque esteve ou está doente, ou porque ama alguém, um parente, um filho, cônjuge ou amigo que tem ou já teve cancro”, escreveu a autora.

Romancista, ensaísta, argumentista, Paul Auster tem 76 anos e uma extensa obra literária publicada em mais de 40 línguas. Em Janeiro deste ano publicou “Bloodbath Nation”, inédito ainda no mercado português, com fotografia de Spencer Ostrander, no qual reflecte sobre a violência nos Estados Unidos e a relação dos norte-americanos com as armas.

Em Portugal, Paul Auster tem grande parte da obra literária publicada, em particular os romances, como “Mr. Vertigo”, “Palácio da Lua”, “Música do Acaso”, “Leviathan”, “Trilogia de Nova Iorque”, “Timbuktu”, “O livro das ilusões”, “As loucuras de Brooklyn”, “O homem na escuridão” e “4 3 2 1”, com o qual foi finalista ao Booker Prize.
Assinou a realização de um par de filmes, o último dos quais “A vida interior de Martin Frost” (2007), rodado parcialmente em Portugal.

Paul Auster foi já amplamente reconhecido, nomeadamente o Prémio Médicis, o International Dublina Literary Award ou o Prémio Príncipe das Astúrias.

13 Mar 2023

A liberdade problemática

Lembro-me sempre de Sebald, quando se fala da necessidade de esquecer a história de um modo intencional e compulsivo. Foi o que a Alemanha fez após a segunda grande guerra mundial. No fundo, é o que todas as narrativas fazem ao deixarem de lado o que não interessa a cada presente que as lê. Os nacionalismos e os colonialismos de todo o tipo – e de todos os tempos – sempre trabalharam desse modo. Se o esquecimento compulsivo pode atrair a ordem e uma coerência artificial dos factos, não deixa de ser verdade que o oposto – o esquecimento não compulsivo – atrai muitas vezes o acaso. A razão é simples: se o esquecimento não compulsivo está relacionado com uma quebra de continuidade e de controlo, o acaso, por seu lado, dá-se bem com saltos improváveis a que a realidade por vezes se reduz assim que a bússola e a mão de comando se dissipam.

O par ‘esquecimento não compulsivo’ vs. ‘acaso’ é um tema maior do nosso tempo e pode ser verificado todos os dias na actualidade política, na expressão da guerra (não necessariamente clássica), nos media, nas crises financeiras, na prolixidade dos comentadores, na redundância das campanhas eleitorais e até na estética publicitária.

As obras de Paul Auster reflectem estas realidades de um modo particularmente incisivo. Em quase todos os seus livros se prenuncia uma catástrofe. É assim no desfecho suicidário de Música do Acaso (1990), quando Nashe leva ao extremo a intriga em que se deixa envolver; e é assim quando o mestre Yehudi de Mr. Vertigo (1994), o caderno vermelho de Quinn (da Trilogia de Nova Iorque) e o livrinho preto dos telefones (achado por Maria Turner, em Leviathan – 1992) desencadeiam, cada um a seu modo, sucessivos movimentos de dominó nos destinos das personagens. O desconcerto assenta sempre em lapsos de memória, ou melhor, em descontinuidades entre o presente imediato e aquilo que o antecede, e apresenta-se ao leitor, por vezes explicitamente, sob a forma do acaso.

Para além disso, Paul Auster sempre explorou as semelhanças entre os acontecimentos mais diferenciados entre si. Este ponto de partida, baseado na equivalência do improvável, parece por vezes sobrepor-se a qualquer tipo de lógica. É o caso, no romance Música do Acaso, dos paralelismos entre as infâncias de Pozzi e de Nashe e entre os destinos de Flower e de Willie. É também o caso do paralelismo formal que se desenha entre os desaparecimentos de Sachs e de Dimaggio, em Leviathan, e, por outro lado, do tipo de simulação praticado por Quinn/Auster na Trilogia de Nova Iorque e por Maria/Lilian em Leviathan. É ainda o caso das semelhanças que são propostas entre o ponto de partida da própria vida de Nashe (em Música do Acaso) e o que acontece na vida de Walter, no final da segunda parte de Mr. Vertigo.

Vale a pena seguir estas pistas exemplares. As semelhanças – que atravessam a superfície lisa ou enrugada dos acontecimentos – narradas por Paul Auster não andam muito longe da interpretação que os media e os governos contemporâneos levam a cabo em situações limite. A tentação de relacionar o ‘não relacionável’ faz parte de um modo de entender o mundo, no qual o desejo adoraria transformar-se em profecia. De alguma maneira, encontramos materializado em Paul Auster aquilo que Gianni Vattimo designou por “liberdade problemática”. Quer isto dizer que a liberdade, tal como é tratada pelo escritor, se transforma quase sempre em algo insuportável, parte da curva de um labirinto maior onde a interpretação acaba por se esgotar, enclausurada que se sente por obsessões tão profundas que não cabem na cartografia das explicações.

A questão do terrorismo coloca-se igualmente neste tipo de parábolas actuais que disputam toda uma possível história do sentido. O mundo metaforizado por Paul Auster é, afinal, um mundo muito real, dominado por disjunções inexplicáveis e por ameaças maiores que, no entanto, nunca se tornam inteligíveis. O que acontece supera quase sempre a sua significação. É um facto que sempre existiu uma relação particularmente difícil entre a ética (o ‘dever ser’ interior) e as práticas do terror ou do mal. Susan Neiman afirmou que, desde o Iluminismo até ao presente, sempre existiram dois pontos de vista antagónicos a este respeito. O primeiro, que vai de Rousseau a Hannah Arendt, insiste que a moral nos obriga a tornar o mal inteligível. O outro, que vai de Voltaire a Jean Améry, insiste que a moralidade nos obriga a não o fazer. Esta ambiguidade traduz um campo fértil para a entrada em cena da personagem mais espessa do nosso espectáculo actual: a crise.

É difícil ter visto os arruaceiros que invadiram o Capitólio em Washington DC (e a complacência da polícia que os recebeu) e esquecer as incongruências anunciadas, anos antes, pelo mundo literário de Paul Auster. O incompreensível atrai sempre o sabor de uma impossibilidade que, de repente, já está a acontecer diante dos nossos olhos. É no movimento dessa atracção que reside justamente o que se entende por crise. Só que na realidade o acaso parece sempre premeditado como se fizesse parte de uma conjura maior, enquanto na ficção literária ele consegue ter um brilho próprio que se assemelha a uma promessa ou a uma velada predição.

Em ambos os casos é a “liberdade problemática” que age com as suas obsessões perigosas e irracionais, de que Trump será por estes dias a imagem mais evidente, mas também a figura que eu irei para sempre tratar ao nível do esquecimento compulsivo. Outra coisa não merece esse diabo.

14 Jan 2021

Teologia do acaso

[dropcap]U[/dropcap]m dos livros mais conhecidos de Paul Auster chama-se A Música do Acaso. Foi publicado em 1990 e de imediato a voz do escritor confundiu-se com este romance que tem uma leve herança da filosofia do Absurdo. Resumidamente, é a história de um bombeiro, Jim Nashe, que por circunstâncias várias se vê livre para prosseguir a sua vida da forma como entender. O livro é marcado por acontecimentos sem causalidade, onde o jogo, sorte, azar ou coincidências são o que determinam o percurso dos personagens.

Lembro-me de na altura ter ficado fascinado com o romance e de imediato me ter transformado num convicto adepto da Austeridade (perdoa o pobre trocadilho deste vosso escravo, ó leitor!). Anos depois voltei a lê-lo e as formulações já me pareceram cansadas e previsíveis – um pouco em contradição com o espírito da obra. Então porquê trazê-lo, agora e aqui?

Porque senti a sua falta, de outra forma que não literária. Olho à minha volta nestes dias e percebo que o acaso é algo que também é uma espécie em extinção. Deveria haver uma reserva natural para coincidências ou serendipismos neste mundo cada vez mais determinista. A ilusão de proximidade dada pelos algoritmos faz com que possamos saber ou prever com algum rigor passos mais ou menos decisivos das nossas vidas. E pior: que esses passos sejam almofadados por outros que sabemos terem visão semelhantes às nossas, tornando-nos assim ignorantes voluntários de opiniões e mundos distantes da nossa rua.

Nem o amor está a salvo. Através de um telemóvel escolhemos com conforto e distância quem achamos que irá preencher as nossas mais apaixonadas ânsias. O risco, a emoção do confronto com o desconhecido está a ser obliterada em nome de uma qualquer forma mais prática e anónima. O acaso, tão fundamental e precioso na emoção humana, tende a desaparecer.

Só percebemos o que se nos está a escapar quando somos invadidos pelo que se nos escapa. Há alguns dias, por acaso e sem marcação prévia, fui parar a um bar de jazz onde estava a decorrer uma jam session. De repente, vindo não se sabe de onde, apareceu aquele que considero um dos melhores saxofonistas nacionais – Ricardo Toscano. A noite agigantou-se com o inesperado, aliás em ligação perfeita com o jazz que por definição é uma arte do improviso. E é destes acasos que a alma pode e deve alimentar-se.

Voltaire dizia que aquilo que chamamos acaso não é senão a causa ignorada de um efeito conhecido. Acredito. A vida tem mesmo uma ordem secreta e misteriosa que urge preservar cada vez mais, mesmo contra a corrente. Proclamo aqui a necessidade de uma teologia do acaso, algo que nos redima com urgência e doçura.

3 Jul 2019

A inocência e a plenitude

27/01/2019

 

[dropcap]U[/dropcap]ma rede de olhares mantém unido o mundo, não o deixa cair. As palavras são forcas onde aos poucos penduro a razão. Pago em goles de sangue pela respiração. Temos sede, pressa e golpeamos com o osso de uma flor na treva. O cervo vai a beber e na água aparece o reflexo de um tigre: o cervo bebe a água e a imagem e torna-se igual ao seu inimigo; só damos vida ao que odiamos.

Todos os que têm pontos de referência no espírito, quero dizer de certo lado da cabeça, em zonas bem delimitadas do cérebro, todos os que dominam a sua linguagem, todos aqueles para quem as palavras têm sentido, quantos crêem que existem alturas na alma e correntes no pensamento, os que são o espírito da época e assim designaram essas correntes de pensamento, penso nos seus trabalhos precisos e nesses guinchos de autómato que a todos os ventos empresta o seu espírito – são uns porcos.

Esta rede de versos e estrofes de diversos poetas que traduzi e que montei acima é a minha rede de caboclo que não deixa cair o meu mundo. Durante dois ou três anos traduzi dezenas de poetas e várias línguas, só para não me exasperar e recuperar o humor nas flutuações da minha vida em Maputo: os poemas funcionam como respiradores. Um terço deles, num volume de quase duzentas páginas, onde antologio vários dos meus poetas hispânicos, vai conhecer edição, pela Letra Livre, que agora me propôs isso. Foi um bom convite.
Aqui deixo dois poemas transcriados por mim e de que gosto muito. O primeiro é de José Ángel Valente:

ÚLTIMA REPRESENTAÇÃO
A parlar d’ira, a ragionar di morte.
Rime:CCCXXXII

Os deuses/ desta Primavera/ não me foram propícios/ e cautelosamente os execro, mãe/
incógnita, blasfémia, fonte do rogo.//

Dispuseram os seus praticáveis negros/ sobre o tablado./ Começa o espectáculo,/ mas só um final se representa. //

Ao centro da cena, um homem/ ou a figura de um homem/ de macilentos zigomas ostenta/ uma pesada cornadura./ Por cada um dos cornos/ faz beber sujos detritos líquidos/ à sua exânime estirpe.//

Excremental o homem./ Nada / com ele nem nele podia/ crescer, multiplicar-se./ Nem sequer o pranto./ Povoai a terra./ Oh deuses,/ desatino sem fim, sem fundo, o deste sonho. //

Fita as lamparinas, deslumbrada,/ a mulher nua que alumia/ com uns límpidos e ofuscados olhos o nada. //

Começa a cair o pano./ A sombra/ ameaça cair outra vez sobre a sombra. //

Só eu aplaudo, na sala apinhada/ de espectadores mortos.

O segundo é de um tremendo poeta flamengo, Hugo Claus:

Sexta, 14 de Novembro, aniversário de Dante,/ laureava no meu jardim, o crepúsculo estava clemente,/ e cismava em Dante. /Sou assim feito, penso em Dante sem parar./
Tenho qualquer coisa dele, acho. Em moderado.//

Então chegaram os dogues voadores numa nuvem de enxofre/ penas e ganidos, mesmo aos meus pés. /Vazados, como num fragmento de Canto, / essa corja abateu-se sobre o meu relvado / e pôs-se a esgaravatar e a gralhar num chavascal / odioso, um verdadeiro pesadelo,/ as penas espalhavam-se ao quintal dos vizinhos/ entre os seus moinhos miniatura e os seus gnomos./ Depois, de repente, eclipsaram-se. Uma verdadeira visão de Dante.//

Escutem, eles deviam evidentemente ter-se contido./ Acreditem-me, uma fúria daquelas,/ aquela crepitação de garras e asas, mais a berraria / e o pivete que se entranhou por semanas no vestuário,/ não, como erudito, aquilo agradou-me pouco.//

Sobretudo, e é disso que se trata, que o meu móbil / tenha passado por um momento tão indigno, que digo eu,/ eles chamaram-lhe um figo – tragaram-no.//

Tinha-o construído eu mesmo, à Calder, airosa e / ingenuamente suspenso em cores primárias,/ um triângulo, um círculo e um quadrado: eis tudo,/ que era também, por acaso, o tudo/ a que eu chamava o meu “Universo”, /pois não simboliza o triângulo o corpo/ físico, oral e mental, / e não é o quadrado a água o ar e o fogo e a terra, / e não é o círculo, digo bem, o círculo, unicamente / a realidade terminal? / Aos três elementos, ligados por um esvoaçante fio de ferro,/ tinha-os pintado de rosa, a dar para o salmão, /com o seu quê de elegante.//

Como eu disse aos polícias: «Essa bicheza / comezinha e irresponsável não apenas demoliu / e se empanturrou com uma obra onde eu in-ves-ti / anos de trabalho manual,
mas também com a projecção da minha alma e da minha ética./ E quem, meus Senhores, me poderá alguma vez indemnizar?»//

«Caro Senhor», disseram os polícias, «o infinito / contém em si múltiplos elementos informes».//
Eles anotaram a minha queixa. Queixa /contra uma grandeza desconhecida /de digestão infinita. / Odeio a minha mulher e os meus rebentos./ Dante é a minha única consolação.

28/01/2019

Escreveu Paul Auster: «Aquilo que admiro em Perec é a rara combinação, na sua obra, de inocência e de plenitude. É raro encontrar estas duas qualidades juntas num mesmo autor. Cervantes possuía-as, Swift e Poe também; e há vislumbres delas em Dickens e Kafka. Por inocência entendo uma pureza de intenção absoluta. A plenitude traduzo-a por uma fé absoluta na imaginação. É uma literatura caracterizada pela efervescência, um riso demoníaco, a alegria. Não é a única experiência que podemos obter com os livros, mas é a experiência fundamental, aquela que rende possível todas as outras», e eis, aliás, o que eu gosto nos dois. E é o sentimento de termos logrado esta feliz combinação que pode tornar jubilosa a conclusão de um romance.

Foi o que me aconteceu agora com A Porta Entornada, o romance que dei por terminado, onde pela segunda vez julgo ter conseguido criar um mundo autónomo, com personagens à altura dessa dimensão “marciana”.
Estou um pouco arrombado, mas feliz.

31 Jan 2019

Man Booker Prize | Paul Auster, Ali Smith e George Saunders entre os finalistas

Os escritores Paul Auster, Emily Fridlund, Mohsin Hamid, Fiona Mozley, George Saunders e Ali Smith são os seis finalistas do Prémio Man Booker. No próximo mês, é distinguida a melhor obra de ficção do ano escrita em língua inglesa

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] anúncio foi feito ontem e a lista inclui “4 3 2 1”, de Paul Auster (ver texto nestas páginas), “History of Wolves”, de Emily Fridlund, “Exit West”, de Mohsin Hamid, “Elmet”, de Fiona Mozley, “Lincoln no Bardo”, de George Saunders, e “Outono”, de Ali Smith. Entre as obras finalistas, estão publicados em Portugal os livros de Paul Auster, Ali Smith e George Saunders.

Nesta edição do Man Booker prize, ficaram para trás “Days Without End”, de Sebastian Barry, “Solar Bones”, de Mike McCormack, “Reservoir 13”, de Jon McGregor, “O Ministério da Felicidade Suprema”, de Arundhati Roy, “Home Fire”, de Kamila Shamsie, “Swing Time”, de Zadie Smith, e “A Estrada Subterrânea”, por Colson Whitehead.

O júri do prémio Man Booker deste ano é presidido por Lola Young, antiga professora de Estudos Culturais da Universidade de Middlesex e responsável cultural da Autoridade da Grande Londres.

Entre os membros do júri encontram-se ainda as escritoras Lila Azam Zanganeh e Sarah Hall, bem como o artista Tom Phillips e o presidente da Real Sociedade Literária britânica, Colin Thubron.

Os membros do júri consideraram que os romances, cada um à sua maneira, desafiam e alteram suavemente os preconceitos – sobre a natureza do amor, sobre a experiência do tempo, sobre questões de identidade e até mesmo a morte.

A lista dos finalistas, que apresenta três mulheres e três homens, abrange uma ampla gama de assuntos, desde a luta de uma família que tenta manter a sua auto-suficiência na Inglaterra rural, até uma história de amor entre dois refugiados que tentam fugir de uma cidade sem nome, na agonia de guerra civil.

No quarto ano em que o prémio foi aberto a escritores de qualquer nacionalidade, a lista é composta por dois escritores britânicos, um britânico-paquistanês e três americanos.

Livros do desafio

“Com seis livros únicos e audazes que colectivamente pressionam as fronteiras da convenção, a lista curta deste ano reconhece autores estabelecidos e introduz novas vozes na cena literária. Jocosos, sinceros, inquietantes, ferozes: aqui está um conjunto de romances de tradição, mas também radicais e contemporâneos. O alcance emocional, cultural, político e intelectual destes livros é notável, e as formas como desafiam o nosso pensamento são um testemunho do poder da literatura”, considerou Lola Young.

Ali Smith faz parte da lista do Booker pela quarta vez, enquanto Fiona Mozley figura como a mais jovem autora da lista, com 29 anos, e uma das duas estreantes na corrida ao prémio, juntamente como Emily Fridlund, de 38 anos.

Os outros dois autores americanos são Paul Auster e George Saunders, o primeiro, de 70 anos, com o romance mais longo da lista, que lhe levou três anos e meio, trabalhando seis dias e meio por semana, a ser escrito, enquanto George Saunders, contista, se estreia com o seu primeiro romance.

O prémio Man Booker, no valor de 50 mil libras, distingue anualmente um livro de ficção escrito em inglês e publicado no Reino Unido no ano do galardão, independentemente da nacionalidade do autor. O vencedor vai ser anunciado no dia 17 de Outubro.

Em 2016, o Prémio Man Booker foi atribuído ao norte-americano Paul Beatty, com o romance “O Vendido” (“The Sellout”).

 

Quatro caminhos para um só homem no novo livro de Auster

O autor Paul Auster afirmou que a sua obra mais recente, “4 3 2 1”, resulta da combinação de circunstâncias inesperadas com o material genético, pré-existente, que compõe todos os seres humanos.

Paul Auster considerou, num encontro com jornalistas no âmbito do Festival Internacional de Cultura, que o romance procura responder à pergunta “E se…?”, delineando quatro caminhos distintos para um mesmo personagem, Archie Ferguson: “Em inglês há o termo ‘nature nurture’, que surge [da combinação] do ser natural e genético, com a maneira como se é educado ou o ambiente em que se cresce”, realidades que “estão interligadas e são impossíveis de separar”.

Este foi o mote fornecido pelo escritor norte-americano, de 70 anos, para abordar as questões feitas acerca do processo de escrita do romance, precedido por um hiato de sete anos, em que “a frequência com que algo inesperado acontece” foi, à semelhança de outras das suas obras, o dilema “que sempre o preocupou”.

Na opinião de Auster, o princípio de que diferentes circunstâncias conduzem, necessariamente, a pessoas de personalidades distintas, revela a importância de “dar espaço ao inesperado para viver a vida com algum tipo de coerência”. Como tal, aquilo a que gosta de chamar “os mecanismos da realidade” difere das crenças “no destino, na fé e na intervenção divina”, concepções nas quais o romancista recusa acreditar.

Ao escrever “4 3 2 1”, nomeado como candidato ao prémio Booker deste ano, Auster quer provar que “o estranho faz parte da normalidade” e que, no papel de arquitecto das suas narrativas, este “não manipula as personagens”, optando por “lhes dar vida” para depois “as seguir, sem as guiar” a um caminho concreto.

No decorrer da conversa, Auster frisou que “não escolheu tornar-se um escritor”, sendo que foi a profissão que o escolheu a ele: “Não se trata de uma opção. (…) Ser um artista de qualquer tipo é como apanhar uma doença da qual nunca se recupera. [Ser escritor] é uma obrigação.”

Na óptica de Auster, “o papel [social] da escrita mantém-se o mesmo há 500 anos”, algo que se complementa com o processo de leitura, “uma experiência muito íntima” que se faz individualmente. Posteriormente, ressalva que ler histórias “é uma forma excelente de confrontar medos ou ansiedades em relação ao mundo, de modo seguro”.

 

Auster avisa que Donald Trump está “apenas no início”

O escritor Paul Auster afirmou, de passagem por Portugal, que o mundo “entrou numa nova era” com o Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, mas que “ainda não é possível fazer arte” baseada no Governo que este constituiu.

Num encontro com jornalistas, no âmbito do Festival Internacional de Cultura com o propósito de debater os temas suscitados pela sua nova obra, “4 3 2 1”, Auster debruçou-se sobre o panorama político do seu país de origem, voltando a tecer críticas a Trump, uma figura que classifica como um indivíduo “furioso, irracional, instável e narcisista: um perigo que se alimenta da atenção” que o mundo lhe dá.

O autor afirmou que Trump “está apenas no início”, o que impede reflexões artísticas exactas. Na óptica do escritor, primeiro cabe “aos jornalistas apurarem a verdade de tudo o que se passa agora”, partindo do princípio que o “bom jornalismo” é o “trabalho mais importante para o bem-estar do mundo”.

Auster adianta que a mesma profissão está “sob ataque”, colocando em risco “a fé das pessoas na verdade”, numa fase em que nunca os jornalistas foram tão necessários, numa discussão dentro do contexto da narrativa quadripartida do romance mais recente, em que uma das quatro versões do protagonista, Archie Ferguson, toma a decisão de enveredar pelo universo jornalístico.

O escritor, vencedor de múltiplos prémios literários, receia que Trump continue “a persuadir as pessoas de que as mentiras [que conta sejam] verdade”, já que o 45.º Chefe de Estado norte-americano utiliza “as mesmas tácticas que os Nazis nos anos 1930 e 1940”, tornando-se “uma pessoa perigosa para governar o país mais poderoso do mundo”.

Um país à parte

Apesar de todos os tumultos sociais que acontecem, diariamente, Auster insiste que a inspiração para as narrativas de ficção não parte do mundo exterior, mas antes “do inconsciente”, que depois se mistura com os factores sociais “de um país construído por imigrantes”, no qual Nova Iorque funciona como um antídoto contra a crescente divisão visível nos Estados Unidos.

“Nova Iorque é encarada como a cidade representante do ideal norte-americano, [sendo que] 40 por cento dos seus habitantes nasceram noutros países [mas], às vezes, acho que a cidade devia abandonar os Estados Unidos e transformar-se num estado separado, porque o resto do país não percebe [o que o local simboliza]”, disse.

Questionado mais directamente quanto às falhas do Partido Democrata, de acordo com Auster “tudo se alinhou perfeitamente” a favor do magnata, reduzindo as hipóteses de Hillary Clinton, que perdeu votos devido “a um país misógino”.

O romancista “queria que Hillary percorresse o país da mesma forma que Martin Luther King [aquando do Movimento dos Direitos Cívicos]”, contrastando com o método de Trump, ao escolher “incitar o pior da natureza humana”, com “30 a 35 por cento do país a adorar aquilo que ele faz”. Estas são as razões que levam Paul Auster a concluir que “uma grande percentagem do eleitorado americano jamais votaria” em Hillary Clinton.

Portugal foi o sétimo país europeu por que passou, no espaço de um mês, para promover “4 3 2 1”, algo que levou o autor a verificar que as mudanças e a “nova era” de que fala se tratam de “um fenómeno global” que coloca a Europa e os Estados Unidos em posições similares, seja devido aos resultados do Brexit [referendo que determinou a saída do Reino Unido da União Europeia], ou devido à vitória de Donald Trump.

14 Set 2017