Sobre Buda

Crónica de Sofia Yao

O que aconteceu ao viajante? As nossas pernas já não precisam de aguentar a caminhada que nos trouxe até aqui? Os meus olhos já não são obrigados a suportar o peso de qualquer visão, a bem do futuro, é preciso calcar o passado.

Oh, Boddhisatva desta querida Terra, com tal força e ainda precisas de um protector. Choras pelos fracos que abandonaram o teu corpo? Desta vez o viajante não tinha crenças: uma jornada de vitória, uma manifestação de Canibalismo. Dentro do silêncio, afirmaste a tua narrativa. Suspenso, tu ponderas. Dizem que o pensamento é a arma mais poderosa. Quem? Quem precisa dos nossos pensamentos e são eles alguma vez transportados pelos lamentos, ou nunca podem escapar ao destino da tinta e do papel?

Só através do pensamento eu me torno o teu soldado e, no entanto, comecei a pensar porque prometeste libertar-me.

Secretismo dentro de montanhas, dentro de cavernas. O solilóquio é uma actuação; quem disse que eu queria vir a ter uma resposta? Ter companhia sem conversação, ter medo, mas também demonstrar força. Com os vapores dos cozinhados, todos regressamos ao vinho, à Terra.

Digo que existem suficientes pessoas sensatas neste Planeta! Tantas teorias, mas nenhum conteúdo. Não se pode atingir a sabedoria sem encontrar a solução para uma obsessão não resolvida. Para contemplar cada camada da nossa fixação: fascínio, paixão, limitação, co-existência. Temos de sair do nosso palácio não só para nos apercebermos de que existem outros reinos, mas para ver as pessoas, o invasor, o monge.

Lamento Boddhisatva, mas não tenho a tua força. Tenho de destruir o pedestal que distingue o corpo da mente. Sob a violência carnavalesca, o nosso corpo é destruído, sem que eu tenha possibilidade de ver a tua mente. Tenho de permanecer fiel às minhas sensações. Para deixar que o meu corpo faça voar um papagaio chamado mente.

Os comentários satíricos sobre os nossos actos de violência não justificam o acto em si. Porque é que nos sentimos confortáveis connosco próprios quando entramos na pele do “observador”? A câmara torna-se os nossos olhos renovados, sempre nítida, sem interferências da realidade permutável. Um gosto de beleza distorcido, onde um Buda na sua plenitude se torna indigno de nossa visão, porque a sua plenitude nos é incompreensível. Talvez precisemos da sua destruição para alcançar um sentimento de auto-piedade.

5 Set 2023

Os bugs da maré ansiosa

[dropcap]E[/dropcap]m meados dos anos sessenta do século XX, uma menina de mini-saia contida e de cabelos em ninho de cegonha anunciava, no branco e preto da TV, enceradoras, frigoríficos de cromado brilhante e móveis de mogno capazes de albergar uma telefonia e um gira-discos. Tudo isto atrás da montra que reflectia as muitas cores dos reclames luminosos que infelizmente desapareceram das nossas cidades em nome das higienes e das composturas contemporâneas (lembro-me de anúncios famosos que se moviam ao jeito de pirilampos gigantes: o Brandy Constantino, a Oliva, o Fósforo Ferrero, o Ovomaltine, o Ómega e sobretudo a capa e espada do bravo Porto Sandeman).

Essa menina congeminava desejos reprimidos e projectava uma espécie de direito natural à preguiça insossa e insonsa (e o que irradiasse do sexo não passava de nenúfares e de trinados da eurovisão). Todos esses electrodomésticos de luxo se cruzaram, ao longo de décadas, com revoluções de brado e com outras (paradoxalmente) pacíficas. O tempo passou e alguns desses electrodomésticos desapareceram ou abandonaram o epíteto do luxo e massificaram-se. Hoje em dia, já pouca gente sabe o que é uma telefonia, um transistor, uma enceraroda, a cabeça de um gira-discos, a fita acastanhada do gravador e muito menos quem foi o homem de capa e espada do Porto Sandeman (que se erguia das majestosas armações de metal que, de noite, sobre os telhados das cidades, contavam histórias de luz ao desalento sigiloso de que Ruy Belo tão bem deu conta nos seus poemas).

A democratização dos utilitários tecnológicos com funcionalidades e formatos novos (todo o caudal digital de aparelhamentos do dia-a-dia) tornou-se no dado mais óbvio da nossa vida. A menina de mini-saia contida e com cabelos em ninho de cegonha dos sixties respira hoje dentro de nós, como se a instantaneidade da tecnologia se confundisse, cada vez mais, com um pasmo liofilizado feito da magia ‘on’-‘off’. Os antigos reclames luminosos caíram para dentro do espectáculo individual dos telemóveis e o desalento foi rebaptizado a pensar em novas patologias de tipo compulsivo.

Comparar épocas tão distintas – e afinal separadas por apenas meio século – é um ofício parecido com o do carpinteiro José a tentar explicar aos vizinhos por que razão não era o pai de Jesus. Seja como for, a actual revolução tecnológica também teve já os seus lances proféticos falhados (ou, se se preferir, os seus telhados esvaziados de ilusões luminosas). Há duas décadas, na passagem do ano de 1999 para o ano 2000, todas as vozes autorizadas garantiam que a simples mudança de dígito iria gerar um crash global. Uma espécie de 09/11 informático antes de tempo. Esse Millenium Bug chegou a ser tratado, numa das Newsweek do fim de 1999*, através da expressão “banho de sangue”. As estimativas retiradas dessa mesma publicação eram e são, no mínimo, curiosas e, claro, tremendistas:

1º – Segunda Grande Guerra Mundial II – 4,200 biliões de dólares.
2º – Reconversão informática mundial do ano 2000 – 600 biliões de dólares.
3º – Guerra do Vietname – 500 biliões de dólares.
4º – Terramoto de Kobe – 100 biliões de dólares.
5º – Terramoto de Los Angeles – 60 biliões de dólares.

Às vertigens das viragens tecnológicas corresponderá o sorriso congelado da nossa menina de cabelos em ninho de cegonha (que cantarolaria as ventanias de Eduardo Nascimento). A memória avança na nossa direcção com o objectivo de devorar, é certo. E fá-lo para que se perceba – e para que se volte sempre a perceber – a impossibilidade de se ser e de se estar em tempos diferentes.

Presos ao futuro (e ao encanto dos seus pequenos projectos), os humanos viajam num ‘agora’ em movimento, mas um ‘agora’ que nunca se converte num outro ‘agora’ de modo nenhum. Uma tragédia em si mesma, dir-se-á.

Se Ruy Belo falava das tragédias de uma determinada época (Morte ao Meio dia, por exemplo, é um poema revelador dos sixties portugueses -“No meu país não acontece nada/ à terra vai-se pela estrada em frente/ Novembro é quanta cor o céu consente/ às casas com que o frio abre a praça”*), outros poetas houve que expressaram tão bem esta tragédia de fundo que consiste, ao fim e ao cabo, em não se ser de tempo nenhum. Razão por que se fala sempre do “meu tempo”, essa ilha isolada do existir a que nunca se regressa e para que nunca mais se caminha. No Fausto, Pessoa repisava o tema: “Tudo que vemos é outra coisa./ A maré vasta, a maré ansiosa,/ É o eco de outra maré que está/ Onde é real o mundo que há”*.

Fiquemos, pois, com o eco, esse espanto inexplicável que é olhar para a fotografia do Rossio da Lisboa dos anos sessenta e crer que ele nunca terá realmente existido. Esse, sim, é o verdadeiro bug. E ali ao pé do café Gelo, com o Diário Popular debaixo do braço, lá vou eu, mão na mão, aconchegadinho, com a menina de cabelos em ninho de cegonha a saborear-lhe o rouge. E o vento mudou e ela não voltou.


*Beyond 2000 em Newsweek, NY, November 8,| Vol. 154 No. 19, 1999.
*Belo, Ruy; Home de Palavra(s), Assírio e Alvim, (1970) 2016.
*Pessoa, Fernando; Fausto, Tinta da China, Lisboa (1907-1933) 2018.

11 Abr 2019

O lago na Feira da Exposição Industrial

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]obre Macau, o jornal A Pátria de Janeiro de 1926 refere, “que os atractivos diurnos não eram de grande monta. De feito, não temos para oferecer aos estudiosos e investigadores uma biblioteca pública, um museu; um parque bem ensombrado e de ruas asfaltadas ou cimentadas, facilitando o passeio a pé e onde não houvesse tanques sem os beneméritos peixes que devoram as larvas dos mosquitos; lanchas a motor ou embarcações a remos, de aluguer, que permitissem o passeio na Baía da Praia Grande. Oh! A bela baía que estamos em riscos de perder conspurcada pelo aterro a que Carlos da Maia sempre se opôs por destruir toda a linda perspectiva do lugar, não só pelas futuras construções, como também pela maculante modificação do conjunto. A linda avenida marginal onde se pode contemplar a sua curva graciosa de 1300 metros de extensão” iria ser “sacrificada à execução de uma ideia por alguém sugerida de uma avenida de luxo rectilínea e de mais um campo desportivo”. Então “o que nos resta para oferecer ao turista como passatempo às horas do dia? … E a noite?” Contradizendo este texto de Gregório Fernandes, o próprio, a 24 de Abril, durante a quarta reunião da Comissão, apresentou “a proposta de que fosse coberto, pelo menos com óla o coreto de música do Jardim Vasco da Gama, não só para conforto dos músicos, abrigando-os da chuva, como também por motivos de condições acústicas”.

Em 1926, era extraordinário o número de novas construções. “Num abrir e fechar de olhos surgem-nos grandes edifícios e novas ruas, sobretudo para os lados de Patane, onde a Avenida Lacerda, que se estende até às alturas da Ilha Verde, já se vê literalmente ladeada de grandes fabricados, servindo quase todos de estaleiros”. Era a géneses da nova cidade de Macau, fora da parte cristã, ainda muralhada no tempo do Governador Ferreira do Amaral quando, após Portugal ser instado a tomar posse de Macau e torná-la independente da China, se não, esta seria ocupada por outra potência europeia, este mandou abriu as primeiras estradas fora das portas da cidade, expandindo-a. Tudo isso, aliado ao isolar o Campo de Mong-Há do Bazar Chinês e a constante violação das sepulturas dessa área pelos ingleses, que por aí gostavam de passear a cavalo, tal como Ferreira do Amaral, cujo hábito de cavalgar sozinho por essas paragens em 1849 lhe custou a vida e a cabeça. Era a China a mostrar de quem era Macau, cuja sua terra não era alienável. José Coelho do Amaral, Governador de Macau entre 1863 e 1866, continuou a obra de Ferreira do Amaral, abrindo uma estrada, inicialmente baptizada com o nome de Estrada do Mong-Há e depois, Estrada Coelho do Amaral e que ia da Avenida de Horta e Costa à do Coronel Mesquita.

O lago da Feira

A Exposição Industrial e Feira de Macau realizou-se no Campo de Mong-Há, vulgarmente denominado Campo dos Aviadores, onde a 1 de Maio de 1926 aterraram vindos de Hanói o aviador espanhol, Capitão E. Gallarza e o mecânico Arosameña, no voo Madrid-Manila. O recinto com 8 hectares era parte do terreno com aproximadamente 360 mil metros quadrados expropriado em 1901 aos chineses locais, graças ao prestígio e influência de Lu Cao. Essa zona, de várzeas, prédios, casebres e barracas, compreendida entre as estradas da Flora, Adolfo Loureiro e Coelho do Amaral e a povoação de Mong-Há, devido ao sistema de cultura era a causa do paludismo e febres, que atacavam os locais. Por isso, em 1901 planeava-se, depois de saneado o terreno, construir ruas, largos e avenidas, devendo-o transformar num bairro que podia vir a ser o mais belo de Macau. Mas parte desse terreno em 1926 encontrava-se ainda livre de construções e por isso, foi decidido usá-lo como local para o recinto da Feira e Exposição. Situado entre a Rua Conselheiro Ferreira de Almeida e as avenidas Coronel Mesquita, Sidónio Pais e Horta e Costa, havia na parte NE do seu interior um lago situado em frente à entrada do Kun Iam Tong. Este lago foi criado a partir de uma depressão que formara uma lagoa e pertencia à bacia hidrográfica de Mong-há, tal como o do Jardim do Sr. Lu-Lim-Ioc, sempre cheio de água corrente renovada diariamente e por isso não eram estes de água estagnada. O médico subchefe dos Serviços de Saúde, o Dr. Nascimento Leitão refere numa entrevista de 1926, “Os terrenos baixos e alagadiços do vale, ou melhor, da bacia de Mong-há, impropriamente conhecida pela designação de várzeas, que ainda há vinte anos se estendiam de Long-Tin-chin até ao rio (Xijiang), tem ido pouco a pouco desaparecendo sob os aterros de um bem necessário saneamento. Havia naqueles terrenos quatro depressões, permanentemente cobertas de água, que os aterros têm poupado, circunscrevendo-os num contorno mais ou menos caprichoso. Três destas depressões estão transformadas em lagos de jardins particulares, restando ainda uma delas, a mais vasta, cortada por duas estradas em três porções, uma das quais foi, por feliz ideia, convertida em lago de diversões da presente Exposição”. É este lago alimentado pela drenagem pouco profunda dos terrenos circundantes, sendo a génese da sua água nada mais do que dos poços naturais e era com ela que contavam os Serviços de Incêndios colocados no recinto da Feira.

Visita aos pavilhões

À entrada do recinto da feira, situada na Avenida Horta e Costa, pela forma original impunha-se o pavilhão nº 9 da Portugal-Oriente, expondo produtos de origem portuguesa. Recebeu o segundo lugar dos pavilhões com Diploma de Medalha de Ouro. Em primeiro ficou o Holland Pacific Trading Co. que levantou na ilha do lago um imponente moinho holandês com casa anexa. “Estas duas construções imprimem à feira uma nota original, quer pela sua forma, quer pelo feliz local escolhido. Expõe produtos de origem holandesa, como leite condensado, chocolates, etc.. Esta firma, que é também agente de várias companhias de navegação, apresenta várias fotografias de vapores. No meio da casa, toda ladrilhada, vê-se um pequeno monte de carvão de Moçambique que o Sr. Van Genepp”, representante em Macau da Companhia, pretende aqui introduzir. Já o terceiro lugar coube à Companhia Netherlands Harbour Works. Desde Maio de 1923 adjudicatária das Obras dos Portos, fez-se representar por um pavilhão também de gosto holandês, tendo em exposição vários modelos de barcos, gruas das obras feitas em H.K., assim como um gráfico com as diferentes fases dos trabalhos realizados no porto de Macau. Estes alguns dos pavilhões que participaram comercialmente na Feira da Exposição Industrial.

25 Nov 2016