China e Vaticano mostram-se em sintonia, quase 70 anos depois

Em Macau, há muitas incertezas, mas o pré-acordo que levou ao reconhecimento de sete bispos da China pelo Vaticano é visto com esperança. Em Roma, nega-se a existência de uma vertente política que leve ao corte de relações com Taiwan. Contudo, o Cardeal Joseph Zen acusa o Papa Francisco de trair os crentes que se mantiveram fiéis ao Vaticano ao longo dos anos

[dropcap style≠‘circle’]A[/dropcap] China e o Vaticano chegaram a um acordo provisório e histórico, depois de mais de 70 anos de costas voltadas, e o Papa Francisco reconheceu com efeitos imediatos sete bispos, nomeados pelo Governo Central. A revelação sobre o acordo foi feita no sábado, pelo Vaticano, mas os detalhes não são ainda conhecidos.

Actualmente a Igreja Católica no Interior da China está dividida entre os fiéis que frequentam as igrejas da Associação Patriótica Católica Chinesa, cujos bispos e controlo está com o Governo Central, e os católicos fiéis a Roma, que frequentam igrejas consideradas ilegais pelas autoridades chinesas, cujos bispos são secretamente nomeados pelo Papa. Embora não haja números oficiais, estima-se que nas duas facções existam entre 10 e 13 milhões de católicos na China.

Até ser assinado este pré-acordo e haver o reconhecimento dos sete bispos da Associação Patriótica Católica Chinesa, os guias espirituais tinham sido excomungados e não eram reconhecidos pela Igreja Católica. A situação muda com este pré-acordo, que é visto como um primeiro passo para o restabelecimento das relações entre o Vaticano e a China.

“O Papa Francisco espera que com estas decisões seja dado início a um novo período, que permita que as feridas do passado sejam ultrapassadas e que resulte numa comunhão total entre todos os católicos chineses”, afirmou o Vaticano, em comunicado no sábado, depois de ter sido anunciado o acordo.

Também Greg Burke, assessor do Vaticano, veio a público fazer alguns esclarecimentos, face à pouca informação sobre o real teor do acordo assinado entre as duas pates.

“Isto não é o fim de um processo. É um começo”, começou por frisar o assessor. “O pré-acordo é o resultado de um diálogo, da existência de muita paciência em ouvir o outro, principalmente quando os dois lados têm pontos-de-vista muito diferentes”, acrescentou.

Política à parte

Porém, Greg Burke veio ainda negar o teor político do documento e um eventual corte nas relações diplomáticas com Taiwan e o consequente reconhecimento da República Popular da China. Actualmente, o Estado do Vaticano reconhece o Governo de Taiwan como a entidade com soberania política. “O objectivo do acordo não é político, mas pastoral e passa por permitir que os crentes tenham bispos em comunhão com Roma, mas que seja ao mesmo tempo reconhecido pelas autoridades chinesas”, clarificou.

Por sua vez, as autoridades do Continente foram mais comedidas na reacção ao acordo: “ A China e o Vaticano vão continuar a manter uma postura de comunicação e a promover o progresso de forma a melhorar as relações bilaterais”, foi escrito, num curto comunicado, no portal do Ministério para os Negócios Estrangeiros.

Segundo a informação disponibilizada pelas duas partes, não é claro quem terá a última palavra sobre a nomeação dos bispos, se será o governo de Pequim ou o Papa.

Macau aplaude

Segundo os padres de Macau ouvidos pelo HM, a notícia do pré-acordo é vista como positiva. Existe agora a expectativa que possa haver alterações para uma maior tolerância sobre a prática do catolicismo no Continente, mesmo que a situação seja vista como altamente complexa.

“É sempre positivo quando há um reatamento de relações entre entidades e quando esse reatamento pode contribuir para o bem-estar e diálogo entre os povos, entre as comunidades e instituições. É sempre um progresso para a Humanidade”, afirmou o padre Peter Stilwell, em declarações ao HM.

“O teor do conteúdo não é explícito. Sabemos que a Santa Sé reconheceu sete bispos, a quem faltava ter uma relação com o Vaticano. Agora, aguardamos para ver como as coisas vão evoluir”, acrescentou, de forma cautelosa.

Contudo, para o padre, a reconciliação entre as duas igrejas no Interior pode colocar alguns desafios: “Não será fácil [a conciliação], porque há católicos que foram perseguidos e viveram na clandestinidade e outros que viveram de acordo com as posições do Governo, da chamada Igreja Patriótica. Fazer conseguir encontrar estas duas comunidades vai ser um grande desafio pastoral”, previu.

Por outro lado, Stilwell explicou que não espera alterações no panorama de Macau, devido ao facto da Igreja Católica do território estar sob a alçada do Vaticano, tal como acontece em Hong Kong.

“A nível de Macau não espero nenhum impacto directo. Macau é um território que está abrangido pela Lei Básica. Está previsto que a Igreja Católica tenha liberdade de culto e que continue a ter o mesmo regime que tinha, aquando da presença portuguesa. Durante este período de 50 anos não haverá efeitos”, explicou.

Patriotas e católicos

Também o padre Luís Sequeira vê o acordo como muito positivo, apesar de reconhecer as desconfianças que existem entre ambas as partes. “Parece-me um facto muito positivo. Claro que é um princípio de um processo que tem de ir mais fundo e ter um princípio maior de compreensão mútua da realidade”, apontou.

Sequeira frisou também que o patriotismo e o catolicismo não são características que se excluam mutuamente e que podem conviver. Porém, este facto reconhece que em certas situações podem gerar tensões. “A preocupação da igreja é mais espiritual, a do Governo é mais política. Se não houver uma compreensão para este facto, poderão surgir tensões. Mas nada impede que um católico possa ser patriota e um patriota possa ser católico e estar unido a uma Igreja universal”, defendeu.

O pré-acordo surge depois de recentemente terem circulado notícias de perseguições a católicos no Interior da China. Segundo alguns relatos, os crentes tinham mesmo sido obrigados a remover cruzes de igrejas. Contudo este ambiente de tensão entre católicos e o governo chinês não é novo.

Também segundo Luís Sequeira este cenário do Vaticano reconhecer bispos nomeados pelos governo não é novo, o mesmo aconteceu em Portugal e Espanha, durante as ditaduras de Salazar e Franco.

Já o ex-deputado e católico Paul Chan Wai Chi admitiu estar muito reticente com este acordo. “É complicado analisar o pré-acordo nesta altura porque os detalhes não são conhecidos. Por enquanto só posso rezar pela Igreja Católica. No futuro tudo pode acontecer, para melhor ou para pior”, disse.

“Considero que é necessário esperar pelo futuro, antes de ter uma opinião. Mas acredito que Deus controla tudo. Tenho alguma esperança na existência de uma maior liberdade religiosa para os católicos no interior da China, mas é preciso esperar para ver o que acontece”, acrescentou.

“Na boca do lobo”

Apesar de uma visão mais optimista sobre o acordo em Macau, o mesmo não sucedeu com o cardeal Joseph Zen, de 86 anos de Hong Kong, conhecido pelas suas posições contra a aproximação entre o Vaticano e o Governo Central.

“Estão a meter o rebanho na boca do lobo. É um acto incrível de traição”, afirmou Joseph Zen, de acordo com as declarações prestadas à agência Reuters. O facto dos detalhes do pré-acordo ainda não serem conhecidos, leva Zen a falar de um “pacto secreto”.

“As consequências desta traição vão ser trágicas e vão prolongar-se durante muito tempo, não só para a imagem da Igreja da China, mas para toda a Igreja porque atingem a credibilidade da instituição. Talvez seja por isso que mantêm o acordo em segredo”, considerou.

Ainda sobre o histórico pré-acordo, Zen acredita que vai ser visto como uma mancha negra no percurso do Papa Francisco. “Rendeu-se por completo. É uma traição (à nossa fé). Não tenho outras palavras para descrever este acordo”, frisou.


Benefícios para a USJ

Nos últimos anos a Universidade de São José tem tentado junto das autoridades do governo central ter autorização para aceitar inscrições de estudantes do Continente. Até hoje tal nunca foi possível, contudo este pré-acordo abre a porta para que a situação possa sofrer alterações: “Do ponto de vista da Universidade, pode ser que isto facilite o recrutamento de estudantes da China Continental, coisa que não nos tem sido permitido fazer até aqui”, reconhece. A USJ espera ter autorização para aceitar 100 inscrições em quatro cursos.


Papa cria diocese de Chengde

Além do reconhecimento de sete bispos, o Papa criou igualmente uma diocese na cidade de Chengde, na província de Hebei. A decisão foi justificada com o desejo do Papa Francisco de promover “os cuidados pastorais pelo rebanho do Senhor”, assim como promover uma maior eficácia do “espírito do bem”. No comunicado publicado no portal do Vaticano é ainda explicado que a catedral vai ficar situada na Divisão Administrativa de Shuangluan e que foi criada com o apoio e autorização da Sé de Pequim.


Reconhecimento póstumo

Além dos sete bispos reconhecidos pelo Papa Francisco, houve um oitavo que foi reconhecido a título póstumo. Anthony Tu Shihua foi o bispo reconhecido, depois de ter morrido a 4 de Janeiro do ano passado, com 98 anos. Anthony Tu foi ordenado padre em 1944, mas perdeu o mandato papal em 1959, devido ao facto de ter ingressado na Associação Patriótica Católica Chinesa. Mesmo assim, na altura da sua morte, expressou o desejo de se reconciliar com a Igreja de Roma. A reconciliação chegou agora, por decisão do Papa Francisco, quase dois anos após a sua morte.

25 Set 2018

Vaticano | Papa aconselha terapia para crianças com tendências homossexuais

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]papa Francisco recomendou aos pais o recurso à psiquiatria assim que estes se apercebam de tendências homossexuais dos filhos durante a infância, noticiou ontem a agência de notícias France-Presse (AFP). “Quando [a homossexualidade] se manifesta na infância, a psiquiatria pode desempenhar um papel importante para ajudar a perceber como as coisas são. Mas é outra coisa quando ocorre depois dos vinte anos”, respondeu o papa a um jornalista, a bordo do avião que o transportava da Irlanda para Roma. Questionado sobre o que diria aos pais com filhos homossexuais, o representante máximo da Igreja Católica afirmou que lhes pediria “que rezem, que dialoguem e que entendam, mas que não condenem”. Por fim, defendeu que o “silêncio nunca será uma cura” porque, sublinhou, “ignorar um filho ou uma filha com tendências homossexuais revela falta de paternidade ou maternidade”.

28 Ago 2018

Crime | Ex-núncio acusa o Papa de conhecimento de abusos sexuais

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]ex-núncio nos Estados Unidos Carlo Maria Viganò pediu a renúncia do Papa, assegurando que Francisco conhecia desde Junho de 2013 as acusações de abusos sexuais sobre o cardeal Theodore McCarrick, sancionado em Junho pelo pontífice.
O arcebispo Viganò, de 77 anos, escreveu uma carta de 11 páginas publicada ontem por alguns meios de cariz conservador em vários países, na qual o prelado acusa outros membros da Curia de formarem um ‘lobby gay’ e de encobrirem as acusações contra o cardeal norte-americano. A carta baseia-se em acusações pessoais e o prelado não aponta qualquer documentação ou prova.
O embaixador do Vaticano escreve que Francisco conheceu o caso a 23 de Junho de 2013, porque ele próprio o comunicou “e continuou a encobrir o cardeal ex-arcebispo de Washington, McCarrik”. Em Junho passado, McCarrik, de 88 anos, foi afastado do colégio cardinalício e o Papa argentino “ordenou a sua suspensão do exercício de qualquer ministério público, assim como a obrigação de permanecer em casa que lhe será destinada para uma vida de oração e penitência”.
Viganò explica que em 2013 foi o mesmo pontífice quem lhe perguntou: “Como é o cardeal McCarrick?, ao que o informou que aquele “corrompeu gerações de seminaristas e sacerdotes e que o papa Bento XVI o mandou retirar-se para uma vida de oração e penitência”. Informou também que havia informação de tudo na Congregação para os Bispos.
Francisco passou 90 minutos no sábado a falar com oito vítimas de abuso, incluindo duas que foram forçadamente dadas para adopção quando nasceram, porque as mães não eram casadas. São alguns dos milhares de adoptados irlandeses, cujas mães solteiras foram forçadas a viver em casas de trabalho.

27 Ago 2018

Vaticano | Papa responde ao Cardeal Zen sobre a Igreja Católica na China

Quando o Papa Francisco consegue passos importantes para uma reconciliação com Pequim , o Cardeal Zen resolveu incendiar a internet

[dropcap]O[/dropcap] director da Sala de Imprensa do Vaticano, Greg Burke, divulgou na terça-feira, 30 de Janeiro, uma declaração na qual afirma que o Papa Francisco está bem informado sobre a situação da Igreja Católica na China e que é “lamentável” que algumas “pessoas da Igreja” afirmem o contrário, causando “confusões e polémicas”.

A declaração afirma que “o Papa está em constante contacto com os seus colaboradores, em particular da Secretaria de Estado, sobre as questões chinesas, e é informado por eles de forma fiel e pormenorizada sobre a situação da Igreja Católica na China e sobre os passos do diálogo em andamento entre a Santa Sé e a República Popular da Chinesa, que ele acompanha com especial solicitude”. “Por isso é um surpresa e lamentável que se afirme o contrário por parte de pessoas de Igreja e se alimentem assim confusões e polémicas”, concluiu.

Embora não tenha mencionado, a declaração ocorreu um dia depois que o Bispo Emérito de Hong Kong, Cardeal Joseph Zen Ze-kiun, publicou no seu portal uma carta na qual explica e analisa a difícil situação da Igreja Católica na China, em particular os bispos, ante as pressões e a perseguição do governo.

Na carta publicada no seu portal, o Cardeal recordou que nos últimos dias a imprensa informou que o Vaticano pediu a um bispo para que renuncie e a outro bispo para que aceite a sua renúncia a fim de permitir que os bispos relacionados ao governo assumam os seus cargos.

A carta é bem crítica em relação às negociações do Vaticano com o governo chinês, na qual também denuncia vários problemas sofridos pelos prelados católicos no país: “Vi directamente a escravidão e a humilhação à qual os nossos irmãos bispos estão submetidos”, assinala. O Bispo Emérito pergunta: “Acreditaria que o Vaticano está a vender a Igreja Católica na China? Sim, definitivamente, se estão a ir na direcção na qual estão segundo o que eles estão a fazer nos últimos anos e meses”.

As relações diplomáticas entre a China e o Vaticano foram cortadas em 1951, dois anos depois da chegada ao poder dos comunistas que expulsaram os clérigos estrangeiros. Desde então, a China permite o culto católico unicamente à Associação Patriótica Católica Chinesa, subordinada ao Partido Comunista da China, e recusa a autoridade do Vaticano para nomear bispos ou governá-los. Há alguns anos, a Santa Sé trabalha num acordo para o restabelecimento das relações diplomáticas com a China, uma aproximação incentivada pelo Papa Francisco.

Entretanto, o Papa Francisco prometeu analisar o caso dos dois bispos chineses reconhecidos a quem a Santa Sé havia pedido para se afastar e abrir caminho a prelados ordenados ‘ilicitamente’. A Santa Sé pediu que Dom Zhuang Jianjian, da Diocese de Shantou, de 88 anos e que vive na província de Guangdong, e Dom Vincent Guo Xijin, da Diecese de Mindong, de 59 anos, morador da província de Fujian, se aposentassem das suas funções eclesiásticas. Ambos são reconhecidos por Roma.

Zhuang recebeu o pedido para dar espaço a Dom Huang Bingzhang, da Diocese de Shantou, de 51 anos, ilicitamente ordenado e que está excomungado. Guo recebeu o pedido para se afastar a fim de dar lugar ao bispo sancionado pelo governo, Dom Zhan Silu, da Diocese de Mindong, de 57 anos, que também fora ordenado ilicitamente.

O Cardeal Zen foi a Roma após uma solicitação de Zhuang para “levar ao Santo Padre a sua resposta à mensagem que recebeu da Santa Sé por uma delegação vaticana em Pequim. O cardeal disse ter tido sucesso em transmitir ao “Santo Padre as inquietações dos seus filhos fiéis na China” e pediu-lhe que considerasse o assunto.

“A Sua Santidade disse: ‘Sim, eu disse a eles (Cúria Romana) para não criarem um outro caso Mindszenty’”, escreveu Zen. “Penso que foi muitíssimo significativo e apropriado o Santo Padre fazer esta referência histórica ao Cardeal Jozsef Mindszenty, um dos heróis da nossa fé”.

Mindszenty era o cardeal primaz da Hungria sob os anos de perseguição comunista. Após ser condenado à prisão perpétua em 1949, foi libertado na Revolução Húngara de 1956 e recebeu asilo na embaixada americana de Budapeste, onde viveu por 15 anos. Sob pressão do governo, a Santa Sé ordenou-lhe deixar a Hungria em 1971 e, imediatamente, nomeou-lhe um sucessor segundo o gosto do governo húngaro.

Em Outubro passado, a Santa Sé contactou Zhuang, quando este procurou a ajuda de Zen. O cardeal enviou a carta do bispo ao prefeito da Congregação para a Evangelização dos Povos, anexando uma cópia ao Santo Padre. Na época, Dom Savio Hon Tai Fai ainda estava em Roma e levou os dois casos – de Shantou e Mindong – ao conhecimento do papa, quem ficou surpreso e prometeu olhar o assunto com atenção.

De acordo com a imprensa católica, Zhuang foi forçado a ir para Pequim em Dezembro de 2017 para se reunir com uma delegação vaticana liderada por um “prelado estrangeiro do alto escalão”. Pediram-lhe que renunciasse e passasse o seu episcopado a Huang.

Guo ficou detido pelo governo por um mês na época da Semana Santa do ano passado, quando lhe solicitaram para assinar um documento afirmando que se “voluntariava” para sair como condição para o reconhecimento do governo. Zen destacou que “o problema não é a renúncia dos bispos legítimos, mas o pedido para abrir caminho a bispos ilegítimos e mesmo excomungados”.

Para ele, “com base em informações recentes, não há motivos para mudar de opinião”, já que o governo está a criar regulamentos mais severos que limitam a liberdade religiosa e que “a partir de 1 de Fevereiro, frequentar a missa clandestina [missa não autorizada pelo Estado chinês] não será mais tolerado”.

“Será que pode haver algo realmente ‘mútuo’ com um regime totalitário?”, perguntou Zen. “Pode-se imaginar um acordo entre São José e o Rei Herodes?”

2 Fev 2018

Papa Francisco | Às portas da estreia do filme na Ásia, religiosos elogiam “coração simples”

De uma espontaneidade inconfundível e carregado de bom humor são algumas das características atribuídas ao Papa Francisco por religiosos locais. Com dois anos de pontificado e um filme sobre si a estrear este mês, o Papa Francisco trouxe mudanças que outros papas nunca conseguiram. O segredo é a sua simplicidade, defendem devotos

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]último tweet assinado pelo próprio Papa Francisco diz: “Que todas as paróquias ou comunidades religiosas na Europa recebam uma família de refugiados”. Com direito a ‘hashtags’, os perfis da rede social Twitter do Papa existem em quase todas as línguas.
Jorge Bergoglio, ou Papa Francisco, é já considerado o Papa mais social de toda a história dos Sumo Pontífices. Mas este foi apenas um dos seus muitos momentos que causaram estranheza e surpresa na sociedade mundial. Sem passar indiferente a ninguém, religiosos ou não, Bergoglio conseguiu o que “muitos outros Papas não conseguiram”, como defende a directora do Centro do Bom Pastor, Juliana Devoy.
Foi em Março de 2013, depois do segundo dia de conclave, que, pelo fumo branco, se anunciou a nomeação de um novo Papa, lugar deixado em aberto por Bento XVI, ou Joseph Ratzinger, por questões de saúde.
Bergoglio tornou-se assim o primeiro jesuíta a ser eleito Papa, assim como o primeiro originário do continente americano, tornando-se assim o primeiro Papa não europeu em mais de 1200 anos. Pela primeira vez foi também feita a escolha do nome Francisco. Bergoglio explicou que a escolha se baseou em Francisco de Assis, padroeiro de Itália e fundador da família franciscana, pela sua simplicidade e dedicação aos pobres.
“Foi a escolha do Espírito Santo e o Espírito Santo escolhe sempre a pessoa mais apropriada para o momento”, começa por explicar o Padre José Mario Mandía ao HM, quando questionado se, de facto, este Papa terá sido a melhor escolha para a Igreja Católica.

Um caminho diferente

Pouco depois da nomeação, Francisco começou a surpreender a sociedade, crentes e não crentes, a começar pela abdicação de toda a ostentação que durante anos caracterizou o Vaticano e seus representantes. Vestes simples, sem ouro, sem tecidos caros, e uma cadeira modesta foram algumas das medidas logo impostas pelo novo Chefe do Estado do Vaticano. Também os carros com tejadilho e vidros à prova de bala foram dispensados e muitos foram os passeios dados por Francisco. Uma tentativa de levar uma “vida normal” marcada pelos seus hábitos e momentos rotineiros era o que o novo Papa defendia.
“Gosto imenso dele. Muita gente gosta dele, o seu jeito simples conquistou, ele não finge ser, ele é e isso não se consegue esconder”, defende a irmã Juliana Devoy.
As acções simples e caridosas mantiveram-se. E agora, dois anos e meio de pontificado, a colecção já vai longa. No início deste ano morreu Willy Herteller, um sem-abrigo que vivia há 25 anos no Vaticano e que muito se dedicava à propagação da religião. Em sua memória, o Vaticano – o Papa – decidiu que Willy deveria ser sepultado no cemitério reservado para os membros da Santa Sé, o Campo Santo Teutónico, localizado, claro, junto da Basílica de São Pedro.
A porta do Vaticano foi também aberta para os transexuais e homossexuais. Depois de receber uma carta de Diego Lejárraga, um devoto espanhol que se viu muitas vezes rejeitado pela própria paróquia da sua cidade natal, Francisco decidiu receber o transexual, acompanhado pela sua namorada, no próprio Vaticano. “Claro que és filho da igreja”, foram as palavras do Papa para com o jovem. Segundo o jornal El Mundo, foi o próprio Papa que ligou a Diego depois de ter lido a sua carta, passando-lhe a mensagem que estava a par da sua situação e a convidá-lo então para a visita.
Em 2013, depois de visitar o Brasil, o Papa Francisco, durante a viagem de avião, explicou aos jornalistas presentes que não seria ele que iria julgar os homossexuais. “Se uma pessoa é homossexual e procura Jesus, e tem boa vontade, quem sou eu para julgá-la? O catecismo diz que não se deve marginalizar essas pessoas por isso. Elas devem ser integradas à sociedade. O problema não é ter esta tendência. Devemos ser irmãos”, disse.

Muito de muita coisa

Ainda dentro dos assuntos polémicos, Francisco tomou uma posição firme quanto à questão da pedofilia que envolveu vários membros da igreja católica. “Corresponde aos Bispos diocesanos e aos superiores maiores a tarefa de verificar que nas paróquias e nas outras instituições da Igreja se garante a segurança das crianças e dos adultos vulneráveis”, apontou numa mensagem enviada aos bispos de todos os países, frisando que “não existe qualquer espaço no sacerdócio para pessoas que abusam de menores”.
No mesmo documento, Bergoglio explicava que depois de vários encontros com as vítimas, a emoção foi incontrolável. “Esta experiência reafirmou a minha convicção de que devemos fazer tudo o que for possível para livrar a Igreja do flagelo do abuso sexual de menores e abrir caminhos para a reconciliação e cura dos que foram abusados”, defendeu.
Os jovens e as mulheres têm sido também uma grande área de dedicação do Chefe do Estado do Vaticano que muita preocupação tem mostrado para com os mais carenciados. “As mulheres são a coisa mais bela que Deus fez”, afirmou ao jornal italiano Il Messagero, referindo-se ao papel necessário da mulher na Igreja.
No início deste mês, o Papa Francisco chocou quando ofereceu o perdão às mulheres que abortaram e aos presos que “tomaram consciência da injustiça cometida”. Rasgando uma postura sempre defendida pela Igreja – a de rejeição do aborto – Francisco vem atribuir agora o perdão a todas as mulheres que abortaram, indicando que todos os padres católicos o deverão fazer.
“Ele não está a dizer que a Igreja passa a aceitar ou que pode ser feito, o que está a fazer é a perdoar. Porque todos nós erramos. O Vaticano, a Igreja, os seus membros também erram. Somos humanos e é isso que este Papa não esconde, é isso que ele mostra ser: humano”, defende Juliana Devoy.

Um Papa diferente

Questionada sobre o rumo diferente que Francisco trouxe à Igreja e à própria religião, Juliana Devoy não tem dúvidas. “Ele é totalmente diferente de outros Papas. Claro que cada um tem a sua personalidade e, por isso, todos tiveram o seu próprio estilo, mas eu gosto deste. O Papa [Francisco] tem um estilo diferente, algo muito próprio. Acho que ele sabe muito bem como comunicar com as pessoas, acho que ele é altamente verdadeiro e focado nos objectivos, por isso, diz coisas que muitas pessoas não diriam em voz alta. Ele não se importa, porque ele não está a fingir ser qualquer coisa, ele é íntegro, assume os seus defeitos, e da Igreja, e quer resolvê-los”, argumentou.
Para o Padre José Mario Mandía, talvez a mudança mais forte seja a capacidade que o Papa tem em mostrar como colocar a teoria em prática. “Ele é o próprio exemplo, um modelo, ele cumpre aquilo que diz. A doutrina é passada por acções que se tornam exemplos para qualquer pessoa”, defendeu.
Pegando no exemplo dos refugiados, sendo que esta semana o Papa pediu que todas as paróquias da Europa recebam pelo menos duas famílias de refugiados tal como o Vaticano vai fazer, o Padre José Mario Mandía mostra a postura de exemplo que este Papa pretende ser.
“Se todas as paróquias católicas em Espanha, Itália, Alemanha e França responderem à sua sugestão e receberem estas famílias, isto poderá significar que mais de 75 mil famílias encontrem um lar na Europa”, frisa.
Na terça-feira passada, o Papa decidiu reformular o procedimento da própria igreja na anulação dos matrimónios, tornando-o mais rápido e simples. Agora, segundo um “motu proprio”, uma carta papal, uma sentença será suficiente para anular o casamento, ao contrário do que acontecia anteriormente, em que eram necessárias duas sentenças. Todo o processo será ainda, decidiu Francisco, grátis.
“O conselho aos casais que ele deu [foi] ‘ganhem o hábito de dizer estas três palavras, Por favor, Obrigada, Desculpa’”, relembrou o também director do jornal O Clarim.
Para o padre, o Papa Francisco não veio mudar a doutrina da Igreja em nada, mas veio, sim, “mostrar em acções concretas o que significa colocá-la em prática”.

Um bom tipo

Numa entrevista ao jornal argentino Voz del Pueblo, o Papa Francisco reforçou o seu jeito simples e bem-humorado. “Quero ser lembrado como um bom tipo”, foi a resposta quando questionado sobre a imagem que quer deixar no fim do seu papado. Assumindo-se como alguém que pouco segue o protocolo, Francisco diz-se um cobarde quanto sente dores físicas. O “indisciplinado”, como o tratam no Vaticano, tem saudades de ir comer pizza à rua, mas mais que isso, sente falta dos seus passeios lá fora.
“Quando era cardeal adorava caminhar pela rua, andar de autocarro e de metro. A cidade encanta-me, sou citadino de alma (…) Não conseguiria viver no campo”, admite.
Antes de dormir, lê São Silvano do Monte Athos, que considera ser “um grande mestre espiritual”. No fim do papado, apenas quer ser recordado como “um bom tipo que tentou fazer o bem. Não tenho outra pretensão”, argumentou na entrevista, citada pelo Observador.
Numa das suas viagens, durante este ano, sobre a sua morte, Francisco terá dito “dois ou três anos e depois vou ter com o Senhor”. Uma previsão que pouco agrada aos seus seguidores que consideram que ainda “muito há a fazer”.
“Bergoglio, o Papa Francisco” ou “Papa Francisco: A História do Papa Francisco”, um filme de 2015, estreou no passado Julho na Argentina e estreia já este mês nos cinemas na Europa e na Ásia, com data marcada para 30 de Setembro nos cinemas das Filipinas.

9 Set 2015