Ana Cristina Alves Via do MeioO mal Existe o mal? Porque é que há gente má para si própria, para os amigos e para os outros em geral? Problemas como este diz-nos a filosofia pertencem ao domínio da ética. No oriente chinês os problemas éticos foram tratados com especial cuidado primeiro pelos pensadores confucionistas e numa fase posterior pelos neo-confucionistas. Se Confúcio nunca se pronunciou abertamente sobre a origem do bem e do mal na natureza humana, já o mesmo não se pode dizer sobre os seus dois maiores discúpulos: Mengzi e Xunxi. Este último terá vivido, tal como Mâncio, durante o conturbado período dos Estados combatentes (475-221 aC), mas ainda é questão controversa as datas da sua biografia. Estes dois filósofos são, e pela ordem exposta, o segundo e terceiro maiores filósofos confucionistas. Ambos elegeram, como não podia deixar de ser, sendo discípulos de quem eram, as questões ético-políticas para o centro das suas filosofias. Mâncio fez da benevolência o pilar da sua filosofia e, por isso, defendeu sempre que a natureza humana é boa. Nós possuímos duas virtudes universais, ou inatas, a benevolência e a rectidão ou justiça: “amar os pais é benevolência e respeitar o irmão mais velho é justo. Só estas duas virtudes, a benevolência e a justiça, virtudes universais” (Mencius, Sinolingua, Jinxin, 1ª Parte, 11, 1999). Aliadas às duas virtudes surgem outras, quase em pé de igualdade: a propriedade ou os ritos, e a sabedoria, porque muito embora todos nós possuamos a virtude inata da benevolência, explica o filósofo, ela é como uma semente, que precisa de amadurecer para dar os seus frutos, ora o amadurecimento faz-se precisamente através dos ritos e da sabedoria (Gaozi, 1ª Parte, 19). Muitos são aqueles que discordam desta teoria e, por isso, o filósofo vê-se forçado a defendê-la em vários passos da sua obra, como aquele onde explica o mal e compara da bondade natural do homem à natureza da água: “A natureza humana tende para o bem como a água tende para baixo. Não há natureza humana que não seja boa, assim como não há água que não corra para baixo. Claro que se batermos na água esta pode saltar até à nossa testa e se escoarmos a água ela pode correr em sentido contrário ou fluir até às montanhas. Mas até que ponto podem estes fenómenos ser atribuídos à natureza da água? A causa são as forças exteriores. O homem pode fazer mal porque a natureza, tal como a água, pode ser modificada por forças exteriores” (Gaozi, 1ª Parte, 2). Para Mengzi, nós somos bons, não podíamos ser melhores. A bondade é, como tal, uma virtude inata, que nos acompanha desde sempre e que, correctamente desenvolvida, a saber através dos ritos e da sabedoria, prepara e fortalece o nosso ser interior, no combate que este se vê forçado a travar contra as forças exteriores: os outros, enfim, todos os menos bons, mas, especialmente, aqueles que voltaram costas ou recusaram cultivar-se, e, também, como é óbvio, contra as circunstâncias. Diz-nos o filósofo que em anos de crise estatal os jovens tendem a ser rebeldes e em períodos de bonança, preguiçosos, não por causa da sua natureza, mas sim devido a influências exteriores, agudizadas por um grande desleixo no desenvolvimento do bem, a semente que todos transportamos. Como já tive oportunidade de referir num outro artigo, para qualquer filósofo que parta da defesa do bem inato ficará sempre por explicar a origem do mal, porque a tese das causas exteriores não justifica a entrada do mal no mundo. E a inversa também é verdadeira, quem parta da defesa de uma natureza humana má, tal como Xunzi, não conseguirá avançar com um argumento sólido para a origem e presença do bem entre nós. Xunzi faz um ataque cerrado a Mâncio, no que respeita às características originais da natureza humana. Para este filósofo, como viria a suceder mais tarde com Hobbes, somos inatamente maus. Não há nada a fazer de início. Começamos egoístas e em estado de guerra permanente, pois só pensamos no nosso próprio umbigo ou benefício. Além disso, somos invejosos e odiamo-nos uns aos outros. Por isso “quando cada um segue a sua natureza e liberta as suas inclinações naturais, a agressividade e a ganância desenvolvem-se. O que é acompanhado pela violação das distinções entre classes sociais e pelo lançar da ordem natural em anarquia, donde resulta uma tirania cruel” (Xunzi, Human People´s Publishing House, Foreign Languages, Press, 1999, A Natureza do Homem é má, 23.2). São, portanto, necessários modelos, regras, leis, princípios e ritos estabelecidos pelos reis-sábios e bons professores para transformar a maldade inata em bondade adquirida ou social. Daí também que seja preciso um bom tirano, um sábio, claro, a quem todos devem obedecer incondicionalmente, para pôr ordem no mundo. Chegamos à ordem social e política, aos princípios e valores morais pelo exercício da razão. Todos nascemos com uma matéria, que nos é dada através do corpo: os desejos e as emoções e com uma mente, ou poder formal, que tem a capacidade de criar modelos, regras ou leis tanto naturais como morais e, por isso, se define como a capacidade de distinguir entre o virtuoso e o baixo e, também, entre o certo e o errado. Xunzi considerava que vivia num período onde reinava incondicionado o mal, porque faltavam professores sérios, ninguém seguia as boas teorias ou modelos dos reis-sábios, logo os homens portavam-se de um modo perverso, rebelde, desordenado. Poucos eram os que escapavam. Ainda assim havia alguns. “Os homens de hoje que são transformados pelos seus professores e pelo modelo, que acumulam uma boa forma e aprendizagem e que são guiados pelo Caminho dos princípios rituais e pelo dever moral tornam-se homens de bem (junzi).” (A Natureza Humana é Má, 23.3). O homem de bem de Xunzi é capaz de operar o milagre, com a ajuda do sábio, de transmutar uma matéria má numa obra boa, à maneira do oleiro, como adianta o filósofo, que faz do barro um bela vasilha por causa da sua arte (23.7), sem que isso signifique que possua quaisquer virtudes inatas. O problema é essencialmente o mesmo que se coloca a Mengzi. Mas para Xunzi a pergunta é diferente: Como é que os primeiros modelos de bem surgiram no mundo? Ora esta pergunta só surge porque ambos os filósofos tentam explicar as origens daquilo que lhes interessa, a um, o bem, a outro, o mal. Na verdade, é difícil explicar como começou o bem ou o mal na natureza humana. Pela minha experiência pessoal, posso garantir, que, ao nível meramente fenomenal, nunca lidei nem com os anjos de Mâncio, nem com os demónios de Xunzi. Somos todos mais ou menos e eu não me excluo do rol. Sem abandonar o critério da minha experiência, há pessoas com quem me dou melhor e que, por isso, tendem a desenvolver o meu lado virtuoso e há criaturas com quem me dou pior, essas provocam-me grandes alterações de humor, sabe deus, e a idade, controladas com que esforço. Por isso, e abandonando a tentativa de explicar as origens do bem e do mal, ou refugiando-me numa perspectiva filosófica mais moderada, e mais à maneira do que sabemos que o próprio Confúcio defendeu, temos um corpo e uma mente, enfim, somos seres com faculdades, ou antes, acrescento, dotados de energia inteligente. Essa energia permite-nos, pela sua própria especificidade, desenvolver teorias, modos de ser, comportamentos quer bons, quer maus. Logo podemos sempre optar por praticar o bem ou o mal. Se calhar, e voltando às origens – essa grande tentação metafísica – somos neutros à nascença. Daí que, em primeira e última análise, a responsabilidade seja nossa, porque acredito que temos liberdade para ser aquilo que quisermos e é essa liberdade, apesar de todos os condicionalismos, que nos dá o direito de optar, tornando-nos diferentes dos outros seres naturais.