O lugar-de-fala

Essa falácia que se chama “lugar de fala”, tal como está a ser entendida, significa, de modo caricato, que eu como branco não posso falar da injustiça cometida sobre um negro (pois sei lá eu do que falo), que a galinha não pode falar da terrível cárie do lobo, que só a mulher pode falar autenticamente do seu castigo em engomar a roupa da família e que só o monge trapista poderá falar do silêncio.

O último exemplo idiota é a situação em que se viu envolvida a jovem escritora holandesa Marieke Lucas Rijneveld, que, dada a controvérsia inflamada, desistiu de traduzir  holandês o poema recitado por Amanda Gorman na cerimónia da tomada de posse do presidente norte-americano Joe Biden. Segundo o The Guardian, Marieke Lucas Rijneveld — que já ganhou o International Booker Prize — foi escolhida pela editora Meulenhoff  para traduzir o poema Hill We Climb, escolha que a americana aceitou com regozijo. No entanto, Janice Deul, uma jornalista e activista dos Países Baixos, resolveu “falar pela outra” e reinvidicar a dor que Gorman não manifestou, levantando a polémica. Janice defendia que o tradutor de um poema destes devia ser como Gorman, “um artista local, jovem, uma mulher assumidamente Negra”.

O “lugar de fala” é tão duro de ouvido que esqueceu duas qualidades essenciais ao humano e que são anteriores à sua origem étnica ou à braguilha do seu género: a) aquilo que em sociologia se chama «compreender com» e, b) o que é fulcral ao equilíbrio interelacional no quotidiano e nas sociedades, ou seja, «a empatia».

Exclui também, quer a possibilidade de juízos universais, quer o Outro como constituinte da nossa própria identidade – isto é, abole o que é intrínseco à nossa própria formação. Mais redutor e impregnado de má-fé seria difícil.

Passou-se da “autenticidade” da cultura do Outro no Multiculturalismo (que, convenhamos, o mais das vezes não serviu senão de um álibi para a nossa falta de curiosidade quanto ao diverso) para a morte do Outro, que amputamos em nós.

Relembro que mesmo as noções de identidade mais integristas estão reféns, por incapacidade de manifestarem-se senão por constraste a outras. Uma boa fábula para esta doença seria a do homem cuja maior ambição fosse caiar a sua sombra para que ela desaparecesse e afinal descobrisse a meio da sua missão que ela agora se projecta no branco da cal.

E afinal, diga-se, o “lugar de fala” mais não é que a vigência da verosimelhança que já Aristóteles exigia à contrução dos personagem. A tolice é que agora se quer pregar como moral excludente, e assim, com o “lugar de fala” também se multiplicam os equívocos. No meio disto outra tristeza se revelou: a fragilidade com que Marieke Lucas Rijneveld cedeu à pressão. Era uma boa ocasião para as duas autoras darem a mão e darem uma bofetada na tolice que atravessa o mundo.

O filósofo brasileiro Paulo Ghriraldelli fez um magnífico vídeo sobre o que tem de erróneo o “lugar de fala”. E dá um exemplo certeiro com o hífen que toma a parte pelo todo, no afro-brasileiro. Quando a comunidade afro-descendente faz do hífen a reivindicação suprema está a fechar-se numa clausura étnica que esquece dois princípios que são anteriores à sua pertença étnica: o de que é brasileira e o de que existe uma Constituição que como brasileira devia exigir ser cumprida. E aí aliena um combate político que, para resultar em mudanças visíveis, pede um empenhamento total em vez de um interesse parcelar.

Ou seja, paradoxalmente, quem reclama a atitude exclusivista de uma pertença étnica, está a assumir um lugar de subalternidade, para desde esse palanque reclamar os seus direitos. É absurdo.

Os grandes problemas de racismo, no Brasil, nos EUA, na Europa, na Ásia, em Moçambique, são sistémicos, e não dirigidos a um estrato étnico. O racismo, na maior parte dos lugares, é sobretudo dirigido aos pobres.

O “lugar de fala” torna-se então o palanque para dar voz ao fogo de artifício da rendição. É como nos embrulhamos na retórica, para pedinchar quotas, quando há direitos consagrados numa Constituição por cumprir.

Pelas “leis” do “lugar-de-fala” eu só teria legitimidade para defender os direitos da “comunidade lgbt” se pertencesse a um dos seus segmentos, porque não poderia falar por direito próprio. Ora, posso, por conceber o amor para além dos seus géneros e considerar aviltante a mais mínima coacção sobre os direitos e dignidade que cabem ao amor, mesmo que suceda entre um periquito e um ferro de engomar.

A poesia, a arte, a literatura, o teatro ensinam-nos precisamente a tornar porosa a sensibilidade de modo a podermos percepcionar esses outros modos de vida, auto-transformando-nos de um jeito que nos permite «compreender com» e sintonizar outras pautas culturais de seres humanos diferentes de nós.

Ao invés, o “lugar de fala”, como tem sido propagado, é uma versão doce do racialismo; a qual se resume a uma reacção simétrica do apartheid.

Na literatura moçambicana há uma guerra subterrânea entre alguns escritores e Mia Couto por considerar-se que Mia invade o território que é “deles”, e que Gungunhana, como motivo e personagem, só a “eles” pertence.
Pelos princípios do “lugar de fala”, Eurípedes não deveria ter escrito a Medeia (uma apropriação), nem Sófocles a Antígona (outra apropriação), nem Aimé Césaire a sua Tempestade (apropriação de Shakespeare), nem Joyce Carol Oates os magníficos ensaios sobre boxe. Ora, diante de tais bacoquices, só me apetece dizer como o Alfred Jarry: merdra!

Como “lugar de fala”, autêntico, só existe um: o do combate político contra os males estruturais das sociedades hodiernas, e estes não se compadecem com as distracções identitárias.

Só há um limite para a empatia: no umbral da dor estamos irrediavelmente sozinhos e, nesse sofrimento, não há nem cores de pele nem características de género.

4 Mar 2021