Somos ladrões

[dropcap]S[/dropcap]e conseguir escapar à proverbial (e desejável) ingratidão que rege a memória da música popular, a Canção Infinita de Manuel Fúria & Os Náufragos irá sobreviver-nos. Nesses seis minutos e dezassete segundos o cantor e autor faz uma viagem ao seu passado afectivo – as primeiras leituras, as primeiras audições, as cumplicidades juvenis que estão na base de todas as descobertas, a sua geografia de adolescente – e à sua condição de criador. Revisita heróis musicais, cita-os, invoca-os. A própria base harmónica da canção é construída deliberadamente sobre os mesmos acordes de Ceremony, tema incluído no primeiro single dos New Order, ex-Joy Division – o primeiro a ser editado depois da morte trágica de Ian Curtis e ainda com as suas palavras. Duas referências de Fúria, que depois de citar os primeiros versos de Curtis lança a extraordinária confissão e constatação: “Sou um ladrão!” , afirmação que pode ser aplicada ao longo da história da arte. Nada vem do nada e a criação artística, por mais rupturas que deseje fazer, não pode fugir a esta condição humana, felizmente humana.

Mas Canção Infinita lida também com a memória num estado particular – a nostalgia. Há um passado idealizado e a dor mansa de não lá poder regressar – no fundo o que está na etimologia da própria palavra: do grego nóstos (reencontro) e álgos (dor, sofrimento). E sempre foi algo em que não confiei. Ao longo do tempo, o próprio conceito (que foi outrora considerado condição patológica, como a melancolia) foi adulterado, tornado mercenário e mercantil. O mercado da saudade aumentou e a nostalgia perdeu a sua inocência mais ou menos contemplativa.

Por mim, se perguntado, respondo da mesma forma, com um neologismo pateta mas eficaz: sou agnostálgico. Quer dizer, preciso da nostalgia mas não a quero como normalmente me é entregue. O inebriamento de passado é perigoso pelo simples facto de que nos podemos esquecer de viver agora – e isso sim, é imperdoável. Sobre a nostalgia já fui mais inamovível: recusava-a, pura e simplesmente. Manifestações colectivas da coisa, como reuniões de bandas que admirei em jovem, eram evitadas com cinismo e precisão. De certa forma ainda o são. Lembro-me sempre das palavras de Eric Idle, um dos Monty Python, ditas aquando da mítica reunião do grupo de humoristas em 2014:«As pessoas não vêm ver um grupo de velhos a dizer piadas. Vêm para se lembrarem como eram quando eram novas».

Ainda acho que Idle tem razão. Mas a agnostalgia, tal como a entendo, não é um dogma mas uma atitude – e como tal falível. O único truque consiste em estar bem com essa falibilidade porque é de imperfeição de que somos feitos e queremos ser feitos. Há pouco tempo tive a oportunidade de pôr à prova esta teoria, durante um concerto em que tocou Fúria e logo a seguir um dos meus ídolos musicais: Johnny Marr, antigo guitarrista dos The Smiths, banda que atropelou a minha vida em 1983 e a de muita gente. Ainda continua a fazê-lo.

Preparei-me para o embate com a dignidade possível, mas durou pouco: o som da guitarra de Marr, os acordes de canções que sei de cor e com que ainda vivo deixaram-me literalmente em lágrimas.
Nostalgia ou não, sei que é bom isto acontecer. Que uma canção que nos comove é uma canção que nos redime. E assim aceito a nostalgia, nesta perspectiva de tornar a nossa existência menos sofrível. Somos ladrões, sim; mas também ladrões do tempo.

28 Nov 2018

Sintomas I

[dropcap style≠‘circle’]T[/dropcap]odo o conteúdo apresentado pode ser interpretado de diversas maneiras. Um dos modos é literal. “Verde” é verde. “Vermelho” é vermelho. “Amarelo” é amarelo. Outro dos modos é figurado. Como sinal, verde permite avançar, amarelo concentra a atenção e vermelho obriga a parar. A relação com os conteúdos apresentados não é apenas literal, portanto. Neste caso é uma relação simbólica. Para compreendermos todas as possibilidades simbólicas teríamos de perceber a sua génese e a sua fixação. Sem dúvida que há convenções, produtos do acaso. Alterações simbólicas para melhor compreensão. A notação aritmética e lógica sofreu alterações. Basta comparar o “peso” da proposta de Frege com a “elegância” das tabelas de verdade de Wittgenstein. O ponto que importa frisar é este. O conteúdo apresentado não se esgota no que efectivamente aparece. A forma da apresentação não é a que estrutura literalmente a apresentação. De qualquer modo, há sempre uma relação entre a forma normal com que estruturamos conteúdos e o conteúdo efectivamente apresentado. Se pusermos em comparação, por exemplo, o verde com a sua apresentação nas folhas das árvores na primavera, num semáforo ou com na bandeira portuguesa, podemos perceber que o que está apresentado excede o que é visto e que a própria forma de apresentação é maleável, flexível, susceptível de interpretação. Assim: verde como cor no espectro cromático, verde como permissão para andar, verde como esperança tem sentidos completamente diferentes, formas de conotação diferentes. A relação entre símbolo como significante: o verde e o simbolizado como o significado pode ser convencional, mas uma vez estabelecida parece que os sentidos possíveis explodem. O verde “literal” na sua forma de apresentação a cobrir a extensão dos objectos coloridos por verde parece ser uma entre muitas formas de apresentação. Símbolo e simbolizado estão numa relação intencional. Somos capazes de interpretar relações simbólicas, porque o olhar humano excede o visto. Nunca vemos apenas o que está apresentado. Na relação simbólica há uma heterogeneidade clara entre cor, cor verde, e “poder arrancar”, “haver esperança”, etc., etc..

Mas alarguemos o âmbito da significação. É certo que a interpretação simbólica não é meramente perceptiva. Isto é, não é o presente sincrónico com o seu conteúdo apenas o que está em jogo quando vemos o jogo das cores nos semáforos. É a antecipação de parar, continuar, arrancar, acelerar ou abrandar. Compreendemos claramente o perigo que há em avançar com o vermelho e em ficar parado com o verde. A dimensão do futuro está a criar pressão de antecipação de conteúdos.

Quando vemos um bilhete de um espectáculo a que fomos ou uma fotografia de tempos idos, o que vemos não são apenas os conteúdos que estão presentes: um bilhete e uma foto. Somos remetidos para aquele dia em que fomos com A, B e C assistir a um concerto, numa época determinada da nossa vida, passaram-se décadas, era o tempo da nossa juventude. A disposição que se sente não é apenas a sentida no passado. Agora, percebemos que o tempo passou e que houve tempo em que era tempo. O mesmo se passa quando vejo uma fotografia minha da infância em família e com amigos. Os rostos eram jovens, as pessoas todas estavam vivas, os tempos tinham futuro. A disposição invade com nostalgia o presente, sentimos saudades e tristeza. O horizonte do presente fica inundado. A fotografia alastra para lá dos seus conteúdos fotografados para a percepção com os seus conteúdos percepcionados. A disposição alaga todo o meu presente e não dou atenção ao que está presente perceptivelmente. Há conteúdos que são dados a ver no presente que têm o condão de nos transportar para o passado. Não há aqui nenhuma relação simbólica. Há uma remissão retrospectiva e retroactiva que nos faz retroceder para um passado que foi presente. Sentimos o presente como foi vivido. A conotação não é aqui simbólica. Resulta também porém de uma capacidade excessiva de nos relacionarmos com conteúdos. Qualquer conteúdo perceptivo pode remeter-nos para o passado, lembrar-nos de momentos passados, por associação directa ou à distância. A invasão do olhar como que traz até nós sentimento que determinada o espírito da época.

Mas um bilhete para um espectáculo ou para um meio de transporte colectivo pode também ser dado a ver numa percepção e indicar um futuro. O conteúdo presente é um prospecto para um conteúdo futuro. Dizem que todas as viagens têm um elemento predominante e preponderante de antecipação. A preparação dos itens para fazermos malas, a antecipação de pessoas que vamos conhecer, aventuras que vamos ter ou só o que estamos à espera que aconteça está dado implicitamente a ver num bilhete ou só na lembrança futura de que vai acontecer a viagem. Mas também todas as formas de registar marcações futuras: profissionais, exames, aulas, horas de atendimento, conferências; médicas: consultas, análises; desportivas: treinos e provas. Os próprios calendários com números para os meses com nomes e os dias com números da semana. Os horários que nos dividem os dias conforme as tarefas. Um olhar breve a dada altura no dia permite perceber o que vamos fazer em antecipação, uma antevisão, um prognóstico, como um boletim meteorológico. Estamos depostos num futuro que não sabemos se irá ser como achamos tendencialmente que vai ser. Não sabemos sequer se irá ser, se chegamos ao fim do dia, se quem está connosco chega ao fim do dia.

Nenhuma forma de apresentação se esgota do presente em que se apresente. A sua forma de eficácia é retroactiva e “pro-activa”, retrospectiva e “prospectiva”. E cada um de nós? Não é verdade que cada um de nós está presente a sincronizar e a coexistir na coincidência ou simultaneidade de todos os conteúdos simultâneos? Ou estamos esticados na direcção do passado e do futuro, a antecipar em previsão explícita ou implicitamente o que vai acontecer na escuridão do vasto espaço, como se a nossa cabeça fosse a cabeça de um cometa? E não é verdade que o nosso passado é a cauda da cabeleira de um cometa, também ele a estabelecer a fronteira entre o aquém da luminosidade e o além da escuridão?

13 Abr 2018